A política é a guerra continuada por outros meios?


Pormarianajones- Postado em 23 maio 2019

Autores: 
Bruno Silveira Rigona

Sistema Penal & Violência Revista Eletrônica da Faculdade de Direito Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS Porto Alegre • Volume 8 – Número 2 – p. 210-219 – julho-dezembro 2016

Criminalização da Política

A política é a guerra continuada por outros meios? Is politics the war continued by other means?

Bruno Silveira Rigon

Editor-Chefe José Carlos Moreira da Silva Filho Organização de Rogerio Dultra dos Santos Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR ISSN 2177-6784 http://dx.doi.org/10.15448/2177-6784.2016.2.25422 Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 210-219, jul.-dez. 2016 211

Criminalização da Política

Criminalization of Politics

A política é a guerra continuada por outros meios?

Is politics the war continued by other means?

Bruno Silveira Rigona

Resumo

O presente artigo busca analisar as dinâmicas atuais das relações de poder no campo jurídico-político brasileiro, problematizando o ambiente histórico atual com a proposta de inversão da clássica tese de Clausewitz (“A guerra não é mais que a continuação da política por outros meios”) que Michel Foucault realiza (“a política é a guerra continuada por outros meios”), bem como investigar o contexto brasileiro marcado pelo fanatismo na polarização política e sua relação com a criminalização da política.

Palavras-chave: Clausewitz; Foucault; política; guerra; criminalização.

Abstract The present article seeks to analyze the current dynamics of power relations in the Brazilian legal-political field, questioning the current historical environment with the reversal proposal of the classic thesis of Clausewitz (“War is nothing more than the continuation of politics by other means”) that Michel Foucault performs (“politics is war continued by other means”), as well as investigating the Brazilian context marked by fanaticism in political polarization and its relation to the criminalization of politics.

Keywords: Clausewitz; Foucault; politics; war; criminalization.

a Advogado. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais, Especialista em Ciências Penais e Mestre em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor no Curso de Direito da Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (FISUL). Rigon, B.S. A política é a guerra continuada por outros meios? Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 210-219, jul.-dez. 2016 212

Introdução

Para entender as dinâmicas do poder político em nossa realidade brasileira atual faz-se essencial pensar a partir de Michel Foucault. O filósofo francês, no curso lecionado no Collège de France nos anos de 1975- 1976, publicado no país sob o título Em defesa da sociedade, propôs a inversão da clássica proposição de Clausewitz (“A guerra não é mais que a continuação da política por outros meios”) para a seguinte fórmula: “a política é a guerra continuada por outros meios” (1999, p. 22). O atual cenário político brasileiro, como veremos, parece confirmar sua tese. Se partirmos da hipótese de que a política é uma guerra continuada por outras maneiras, temos que levar em consideração que a guerra sempre é dirigida contra um inimigo. Já diria Umberto Eco que: “o inelutável da guerra corresponde ao inelutável da caracterização e da construção do inimigo” (2011, p. 32). Aqui não podemos ignorar a história da ideia de inimigo no pensamento jurídico-político ocidental (FRANÇA, 2012; ZAFFARONI, 2007; PINTO NETO, 2012), na qual cumpre destacar o teórico político que trabalhou com a tese de que a diferenciação especificamente política é aquela entre inimigo e amigo: Carl Schmitt, o jusfilósofo que apoiou abertamente o nacional-socialismo. Segundo o autor, as características diferenciadoras do soberano seriam seu poder de decisão a respeito do estado de exceção e sobre o jus belli. Portanto, o soberano teria o poder de suspender a legalidade da ordem jurídica interna em vigor e de apontar quem é o inimigo público. As consequências seriam a possibilidade de declaração de guerra e o poder de expor a perigo e sacrificar vidas humanas, ou seja, a sujeição a um poder político ilimitado e arbitrário (SCHMITT, 2008). Além disso, outra coisa que assusta no pensamento do jusfilósofo é a tese de que a crise de representatividade da democracia liberal levaria necessariamente a um poder total (SÁ, 2012, p. 32-39). Essa antiga crise de representatividade parece ser o núcleo que liga os movimentos de indignação no exterior (Occupy Wall Street, Primavera Árabe, etc.) e em nosso país (Jornadas de Junho de 2013, Não vai ter copa, etc.), que, em nossa realidade, acabaram culminando nas recentes manifestações a favor do impeachment, por um lado, e contra o golpe, por outro.

1 O fanatismo da polarização política

A polarização política é um defeito grave. É um ataque à ideia da reflexão e do raciocínio. Ela qualifica, ela grita, ela pensa pouco, ela julga. (...) Polarização não significa que a gente não possa ter opinião divergente, o que é muito bom, mas que ninguém mais escuta ninguém (KARNAL, Leandro. O mal da polarização política atual). O diagnóstico schmittiano da crise de representatividade das democracias liberais1 assume especial importância em nosso contexto histórico atual, marcado profundamente pela polarização, pelo maniqueísmo e pelo fanatismo no discurso político, que gera como efeito uma cegueira ideológica, uma intolerância à opinião divergente e uma onda de ódio coletivo que, não raro, descamba para a violência. Não há mais reflexão nas narrativas políticas, somente adjetivações. O debate público é esvaziado e o grito assume o seu lugar. Ambos os lados políticos qualificam-se mutuamente com palavras desrespeitosas e 1 Ressaltamos que o limite máximo até onde se pode ir junto com a teoria schmittiana é o seu diagnóstico da crise das democracias ocidentais, já que o autor, depois de afirmar que isso desemboca em um poder total, acaba por legitimar um Estado Total, o que consideramos inconcebível e abominável. Rigon, B.S. A política é a guerra continuada por outros meios? Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 210-219, jul.-dez. 2016 213 pejorativas (de um lado “coxinhas”, de outro “petralhas”), ignorando uma grande parcela da população que não se identifica com tais polos políticos. Quem tenta pensar o cenário para além das dicotomias muitas vezes acaba sendo rotulado de um lado ou outro, a depender daquele que faz a imputação. Embora esse maniqueísmo tente empurrar qualquer posicionamento com toda força para um dos polos, a tarefa do intelectual é resistir a essas correntezas ideológicas e, com serenidade, não abdicar de seu maior trunfo: o pensamento. Não é preciso aderir às narrativas para ter posição (BRUM, 2016a). Isso porque o ódio recíproco entre os inimigos busca simplesmente a destruição alheia, se não física pelo menos simbólica. A cegueira ideológica não permite que eles vejam qualquer qualidade no outro grupo e que reconheçam direitos e garantias inerentes a todos nós. O outro é a encarnação do mal, que precisa ser exorcizado e combatido. Trata-se de uma visão cultural de uma guerra do bem contra o mal,2 em que cada lado se vê como herói (defensor da democracia ou defensor da nação) e enxerga no outro o vilão (golpista ou corrupto). Qualquer posicionamento filosófico, jurídico ou político acaba sendo engolido por essa polarização. Nessa batalha discursiva alguns fantasmas são ressuscitados: o comunismo e o fascismo. Para alguns fanáticos o governo do partido dos trabalhadores precisava sair do poder para evitar-se um golpe comunista que transformaria a república em um regime bolivariano como em alguns países latino-americanos. Já para os defensores do governo do partido dos trabalhadores e alguns defensores da legalidade democrática tratouse de uma tentativa ilegítima de chegarem ao poder, através de uma espécie de golpe apoiada por parte da população, sendo que muitos possuíam uma mentalidade fascista. Os termos “comunismo” e “fascismo” são significantes vazios (LACLAU, 2013) que estão inseridos no contexto de uma luta entre fantasmas. No fundo, seja de qual lado for o acusador projeta no outro o seu próprio autoritarismo, representado pelas sobreditas ideologias. Não se pode negar, no entanto, que existe uma preocupante ascensão de um fascismo social, não entendido simplesmente enquanto regime político, mas como um fenômeno que vem da própria sociedade (SANTOS, 2003). Entretanto, o que vemos usualmente é uma tentativa desesperada de imputar o título de fascista ou comunista a todos àqueles que possuem ideias opostas às suas, o que se mostra por deveras perigoso.

2 O vazio político: do culto ao herói ao populismo togado

Esse cenário político é preocupante porque as massas não se sentem representadas e, historicamente, quando se abre esse vazio político quem costuma crescer no prestígio da população para ocupar o espaço que está aberto são os extremismos e alguns fanatismos. Podemos verificar isso na ascensão política da extrema direita na Europa, assim como na disputa eleitoral nos Estados Unidos na América com o candidato do partido republicado, Donald Trump. O caricato representante de extrema direita na política brasileira pode ser considerado o deputado federal Jair Bolsonaro, que não cansa de defender o autoritarismo em suas declarações públicas. Tal movimento político extremista trata-se de uma espécie de populismo permeado por discursos de ódio, de lei e ordem, defesa da “moral e dos bons costumes”, racismo, xenofobia, entre outros tantos preconceitos e clamores por violação do direito das minorias. O populismo, entretanto, não se encontra mais simplesmente no legislativo ou no executivo. Em nosso país há um culto à figura do herói salvador da nação. Getúlio Vargas já ocupou esse lugar, assim como o próprio Lula e, mais além, o ex-Ministro Joaquim Barbosa quando do 2 Na concepção de Baratta, é o princípio do bem contra o mal que, dentre outros, sustenta a ideologia da defesa social (2002). Rigon, B.S. A política é a guerra continuada por outros meios? Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 210-219, jul.-dez. 2016 214 julgamento da AP 470 (BARBOSA; FRANK JUNIOR, 2013). Agora, quem ocupa esse papel no imaginário social é o juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato.3 Vivemos hoje uma época que o populismo usa toga. Não é a toa que o magistrado clama por apoio popular para respaldar suas decisões judiciais, vaza informações processuais sigilosas e pede desculpas aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, consagrando um verdadeiro processo penal do espetáculo (RUBENS CASARA, 2016). Além disso, é possível perceber o messianismo que a figura do magistrado representa quando manifestantes foram às ruas protestar com camisetas cujo escrito é “In Moro We Trust”, uma evidente referência aos dizeres “In God We Trust” presentes nas notas de dólares. Ou seja, o juiz encarna o lugar do próprio Deus. Trata-se, portanto, de nosso messias. O grande herói e salvador da pátria. O problema disso é que, se o magistrado é Deus, os acusados são o demônio e seus advogados, consequentemente, não passam de advogados do diabo. Existe na sociedade brasileira uma visão muito forte de que o advogado tenta atrapalhar a realização da justiça. Ele é um verdadeiro obstáculo à punição dos (presumidos) culpados. Esse imaginário social concebe o advogado enquanto um empecilho para o “correto” funcionamento do sistema de justiça criminal. Como consequência desse senso comum tem-se a transferência dessa mentalidade para parte do imaginário dos juristas, sobretudo nos órgãos estatais responsáveis pelo controle do crime: polícias, ministério público e poder judiciário. O sintoma disso? A interceptação telefônica de 25 advogados determinada na Operação Lava Jato, o que pode ser considerado como um dos maiores atentados às prerrogativas da advocacia no período democrático. No entanto, não se pode cair na tentação de tratar o juiz Sérgio Moro como um bode expiatório (GIRARD, 2004). É preciso levar em consideração a cultura institucional na qual o magistrado encontra-se inserido, assim como no contexto social em que vivemos. Em primeiro lugar, é possível verificar uma cultura autoritária no habitus institucional do poder judiciário brasileiro que passa desde uma cultura jurídica bacharelesca (ADORNO, 1988) até ao papel desempenhado na ditadura civil-militar (PEREIRA, 2010). Enquanto o Estado brasileiro e suas instituições se proclamam democráticos em seus discursos, observa-se na prática o inverso, ou seja, uma atuação institucional estatal marcadamente autoritária, o que leva Débora Regina Pastana a afirmar que “(...) democracia, para nós, tem servido apenas como retórica” (2009, p. 30). Na justiça criminal os ideais democráticos são deixados de lado e entram em cena mecanismos autoritários, violentos e desumanos, para dizer o mínimo. O que ocorre na realidade é que a repressão penal operada contra a população mais pobre permite sustentar que as periferiais e algumas prisões em nossa realidade marginal acabam por configurar verdadeiros espaços de exceção (FRANÇA e RIGON; 2014, p. 197-218), para utilizar a terminologia do filósofo italiano Giorgio Agamben (2010). Isso ocorre historicamente contra os estratos sociais mais vulneráveis, mas agora, ao que parece, a sistemática violação de direitos e garantias 3 Ressalvamos, no entanto, que o populismo que se pode atribuir aos ex-presidentes Getúlio Vargas e Lula é diverso daquele mencionado anteriormente, que se refere ao movimento político de extrema direita e conta com um discurso repleto de características próprias (discurso de ódio, racismo, xenofobia, etc.), e também difere do atual “populismo togado”, cujos maiores representantes na história brasileira atual podem ser considerados o ex-Ministro Joaquim Barbosa e o juiz Sérgio Moro. Embora tenhamos empregado o termo populismo ao referirmo-nos aos representantes da extrema direita em um aspecto que pode ser considerado “negativo”, sobretudo devido ao perigo que os projetos democráticos sofrem quando tais movimentos chegam ao poder (como a história do século XX nos ensinou), é preciso advertir que o populismo é uma forma de construção da política, como propõe Laclau. Segundo o autor, o populismo não é bom ou ruim em si mesmo. Trata-se de uma lógica política, que não possui orientação ideológica determinada, tanto que pode operar com orientações ideológicas e bases sociais distintas (de direita ou de esquerda). De acordo com ele: “o populismo não necessariamente implicaria uma manipulação cínica ou instrumental por parte dos políticos. Desse modo, o populismo não se caracteriza como uma ‘constelação fixa’, mas sim como um arsenal de ferramentas retóricas (‘significantes flutuantes’) que podem ter os usos ideológicos mais diversos” (LACLAU, Ernesto. A Razão Populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013. p. 237). Sendo assim, é nesse sentido que o texto faz referência aos ex-presidentes supramencionados. Além disso, é preciso destacar uma grande diferença quando o populismo relaciona-se aos políticos que integram o legislativo ou o executivo e quando está atrelado ao judiciário. No último caso, não há qualquer legitimidade na postura de um magistrado que assume uma postura populista (aqui empregado mais no sentido comum do termo de “jogar para o povo”), pois o seu papel é de assegurar os direitos e as garantias fundamentais resguardadas constitucionalmente e convencionalmente, e não decidir de acordo com seus interesses particulares ou conforme demanda da opinião pública. Rigon, B.S. A política é a guerra continuada por outros meios? Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 210-219, jul.-dez. 2016 215 fundamentais está sendo estendida aos grupos que não eram clientes preferenciais do sistema penal: os criminosos de colarinho branco. A crítica criminológica demonstrou que o sistema penal opera de forma seletiva, sempre selecionando os grupos mais vulneráveis, e que somente excepcionalmente uma pessoa não atingida pelo poder punitivo é criminalizada: quando perde uma luta de poder contra outra pessoa mais poderosa, que é a chamada de criminalização devido à falta de cobertura (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, 2006, p. 48-50). A tese de Walter Benjamin parecia explicar o fenômeno punitivo perfeitamente: “A tradição dos oprimidos ensina-nos que ‘o estado de exceção’ em que vivemos é a regra” (2012). Agora a análise de Eliane Brum (2016b), ao comentar sobre repercussão imagética da condução coercitiva do ex-presidente Lula, se mostra ainda mais adequada ao momento atual: A imagem de Lula (...) não mostra que a lei vale inclusive para ícones populares e ex-presidentes. Mas que a lei também não vale para ícones populares e ex-presidentes. Que o abuso e a violação de direitos, cuja maior representação são os milhares de presos sem julgamento atirados em penitenciárias medievais, assim como os negros humilhados pelas polícias nas periferias, são a regra para todos – ou quase todos. Se nos séculos passados houve um predomínio do poder legislativo e, após, do poder executivo agora parece que há uma prevalência do poder judiciário em nossas sociedades, o que é capaz de caracterizar um autêntico governo dos juízes. Vivemos uma era que se diferencia pelo ativismo e pela discricionariedade judicial, em que vigora um “estado de exceção hermenêutico” (STRECK, 2014 e 2011). Os limites à interpretação, inclusive semânticos, são ignorados. A interpretação judicial encara as formas legais como meros “conselhos normativos” ao magistrado (GLOECKNER, 2015), ignorando que, em matéria penal, as formas são as garantias que asseguram o cumprimento de determinado princípio (constitucional) ou de um conjunto deles (BINDER, 2003, p. 42). Nesse estado de emergência interpretativa, Lenio Streck, ao comentar a Operação Lava Jato, está certo quando diz que “existem juristas mais moristas que o próprio Moro” (2016). O próprio magistrado admitiu que a interceptação da conversa entre Lula e Dilma foi “irregular”, mas justificou sua necessidade em virtude do interesse público. Irregular não passa, pois, de um eufemismo para ilegal. Ademais, é importante destacar que justificativas para a violação de direitos fundamentais individuais sempre foram utilizadas pelos mais diversos tipos de autoritarismos com base na retórica que invoca o interesse público, o bem comum, o interesse coletivo, o interesse nacional, etc4 . Não podemos, entretanto, negar que a filosofia política base das teorias da democracia desde os gregos até ao constitucionalismo contemporâneo está fundada na ideia de bem comum. Contudo, é preciso indagar o que é este bem comum? Segundo Foucault, o bem comum é, essencialmente, a obediência e a submissão à lei do soberano (seja ele terreno ou divino). A finalidade da soberania é circular, pois o “bem é a obediência à lei, portanto o bem a que se propõe a soberania é que as pessoas obedeçam a ela” (FOUCAULT, p. 167). Se os juízes assumem o status jurídico-político de soberanos com um poder ilimitado de interpretação e, portanto, de decisão sobre a vida das pessoas, suspendendo os direitos fundamentais individuais inerentes ao direito penal e processual penal democrático, não estamos mais numa relação entre o cidadão e o Estado, mas 4 Nesse sentido, Emerson Affonso da Costa Moura constatou em sua pesquisa histórica acerca da noção de interesse público no direito brasileiro que: “o interesse público atua como instrumento ideológico de legitimação da ordem estatal e da autoridade pública” e seguiu afirmando que “o conceito de interesse público antes de garantir a demarcação independente das necessidades da própria sociedade, delimitou a assimilação, dependência e repetição das estruturas políticas, administrativas e sociais do Estado Português, resultou na apropriação de tal expressão como forma de legitimar o patrimonialismo e o autoritarismo sob o manto da Administração Pública” (2014, p. 85). Rigon, B.S. A política é a guerra continuada por outros meios? Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 210-219, jul.-dez. 2016 216 sim entre a vida nua e o poder soberano. Abre-se, assim, uma zona de indiferença entre as questões jurídicas e as questões de fato, na qual a vida (nua) é abandonada pelo direito. Não se trata mais de uma relação de direito, mas de uma relação de exceção (AGAMBEN, 2013).

3 A crise de legitimidade: sobre a necessidade de repensar a democracia

O estado de exceção não é interior nem exterior ao ordenamento jurídico, mas sim essa zona de indistinção de surge com a suspensão da norma. A norma, embora suspensa, não é abolida, não deixa de estar vigente. Ou seja: a norma não se aplica, mas permanece em vigor. O estado de emergência abre um espaço em que, de um lado, a lei permanece em vigor, mas sem aplicabilidade (pois não tem “força”), e, de outro, atos que não têm validade legal adquirem sua “força”. Sendo assim, o estado de exceção se mostra como um espaço de anomia em que vigora uma “força de lei” sem lei (AGAMBEN, 2004, p. 58-63). O judiciário brasileiro cada vez mais acaba por abraçar a exceção e torná-la a regra para todos que cheguem perto da cega justiça. Embora estejamos vivendo uma profunda crise de legitimidade no seio de nossas instituições, na qual nenhuma parece escapar ilesa, não podemos perder em mente que os poderes não estão deslegitimados porque caíram na ilegalidade, mas a ilegalidade é tão generalizada porque as instituições perderam a consciência de sua legitimidade. Por esse motivo “é inútil acreditar que se possa enfrentar a crise das nossas sociedades por meio da ação – certamente necessária – do poder judiciário: uma crise que investe contra a legitimidade não pode ser resolvida apenas no plano do direito” (AGAMBEN, 2013). A crise, antes de tudo, é ética e política. A simples defesa da legalidade, apesar de necessária, acaba por confundi-la com a legitimidade. O que poderia ser o lado mais valioso e necessário da Operação Lava Jato, fomentar a necessidade do debate acerca da reinvenção e do aperfeiçoamento nosso modelo democrático, não é sequer pensado, quem dirá debatido. O que resta é somente a visão míope do pensamento fanático. Nessa conjuntura política, a leitura de Bertrand Russel mostra-se muito apropriada: “O fanático não consegue reconhecer que a supressão de um mal verdadeiro, caso seja realizada de um modo por demais drástico, produz outros males ainda de maiores proporções” (2010, p. 116). Ninguém em sã consciência é a favor da corrupção, só que é preciso ter em mente que as “pedaladas” constitucionais, convencionais e legais são tão prejudiciais quanto, quiçá até piores, que o mal – corrupção – que se pretende combater. Com o pretexto de combater a corrupção acaba-se por admitir a corruptibilidade das formas (que garantem o cumprimento de direitos fundamentais), como diria Ricardo Jacobsen Gloeckner (2015). Precisamos rever o mito de que somente é possível investigar, processar e julgar crimes envolvendo corrupção através da flexibilização, supressão ou suspensão das normas constitucionais. É perfeitamente possível que a atuação estatal se paute com respeito aos direitos e garantias fundamentais individuais na investigação dos suspeitos, no processamento dos réus e na execução dos condenados. É possível punir e garantir ao mesmo tempo, como nos ensina Aury Lopes Jr (2010). O magistrado que acredita nesse mito corre o risco de igualar-se àquele mal que quer combater, pois estaria cometendo ilegalidades sob o pretexto de combater quem cometeu ilegalidades. O juiz que se depara com esses casos nunca poderia deixar de lado a advertência de Nietzsche: “Quem enfrenta monstros deve ficar atento para não se tornar também um monstro” (2006, p. 75).

Conclusão

Se a proposição foucaultiana parece se aplicar nas relações do poder político brasileiro (“a política é a guerra continuada por outros meios”), temos que lembrar que mesmo nas guerras algumas Rigon, B.S. A política é a guerra continuada por outros meios? Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 210-219, jul.-dez. 2016 217 normas devem ser respeitadas. Ainda que o panorama político atual possa ser considerado como uma espécie de guerra civil simbólica, precisamos reconhecer que as regras do jogo democrático devem ser respeitadas, pois o seu cumprimento é o único remédio que pode conferir legitimidade ao fim almejado, do contrário teríamos que aceitar que os fins justificam os meios e, a partir disso, aceitar as consequências dessa escolha, isto é, que qualquer meio é legítimo para a obtenção de uma suposta demanda por justiça. É preciso resgatar a legitimidade das instituições democráticas e resistir à lógica de guerra que as relações de poder do campo político brasileiro impõem em nossa sociedade. E isso deve se dar através do respeito às normas de nossa democracia constitucional. Não há espaço em uma sociedade democrática, tampouco qualquer legitimidade no atuar de um populismo togado, pois o papel do magistrado é de assegurar os direitos e as garantias fundamentais resguardadas convencionalmente e constitucionalmente, e não decidir de acordo com a demanda da opinião pública ou conforme seus interesses particulares. Se existe algum poder em nossa república que não possui a legitimidade política de aderir ao populismo e que não poderia ingressar no fanatismo da polarização política, este poder é o judiciário, já que ele é justamente o poder que possui um papel contramajoritário. Contudo, não podemos confundir legalidade e legitimidade e acreditar que a crise somente poderá ser resolvida por meio do direito e do poder judiciário. A cegueira ideológica, a intolerância à opinião divergente, a onda de ódio coletivo, a violência advinda desse ódio decorrem do maniqueísmo e do fanatismo no discurso político. Somente poderemos enfrentar essa crise política e ética se voltarmos o olhar a nós mesmos e refletirmos com seriedade para além das narrativas políticas polarizadas, sem cair na lógica da guerra do bem contra o mal, do amigo versus inimigo, dos rótulos pejorativos e do bode expiatório. Precisamos pensar com urgência na democracia, em formas de aperfeiçoa-la e consolida-la, para conseguirmos escapar do espectro do autoritarismo. Luis Alberto Warat lembra-nos que o fantasma do retorno do terror sempre está presente por mais que vivamos em regimes com aparência de democracia (2010, p. 47). Precisamos, no entanto, alertar que a exceção já está aqui, convive há muito tempo no ambiente democrático e, talvez, o pior seja essa aparência democrática que certa maquiagem lhe confere (MARTINS, 2011). Nossa tarefa é passar um demaquilante na face dessas práticas de exceção com aparência democrática a fim de tirar-lhes a maquiagem que esconde a velha, antiga e feia cara do autoritarismo. A criminalização da política que ocorre atualmente em nossa sociedade sob o pretexto de combate a corrupção não é o marco que abre um estado de exceção em nosso país, mas simplesmente a lógica histórica do funcionamento de nosso sistema de justiça criminal. A diferença, agora, é que a exceção, antes reservada aos pobres e aos oprimidos, para lembrar a tese de Benjamin, parece ter se alastrado por todo o mundo jurídico, atingindo também aos considerados poderosos e, antes, inatingíveis. O problema que resta é que, ao invés de assegurarem os direitos e garantias fundamentais a todos os cidadãos, sejam ricos ou pobres, acabaram por democratizar a violação das normas constitucionais. Agora há igualdade, pois a violação de direitos é para todos. A lição que fica é que a exceção é muito difícil de ser controlada e limitada, razão pela qual se mostra uma grande ameaça à democracia. Quem conhece a história da exceção sabe de seus perigos. Por isso, nesses momentos é preciso resistir e transcender a polarização política, assumindo uma posição em defesa das regras do jogo, como diria Bobbio (2010), e também da imperiosa necessidade de se repensar nosso modelo democrático e nossas instituições, buscando expandir e solidificar ainda mais a democracia, sob pena de perpetuarmos o estado da crise de representatividade e legitimidade que, mais cedo ou mais tarde, acaba por ser um solo fértil ao crescimento de toda forma de autoritarismo. Rigon, B.S. A política é a guerra continuada por outros meios? Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 210-219, jul.-dez. 2016 218

Referências

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