Os planejamentos sucessórios sob a ótica da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais


Portiagomodena- Postado em 10 junho 2019

Autores: 
Ricardo Alexandre Hidalgo Pace

RESUMO: O objetivo do presente trabalho é analisar precedentes selecionados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, no intuito de identificar se estabelecem critérios claros e objetivos que permitam diferenciar planejamentos sucessórios lícitos daqueles ilícitos à luz do disposto no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional – CTN. Em um primeiro momento, cuida-se de definir institutos e conceitos fundamentais para a compreensão do que é planejamento sucessório e o seu aspecto tributário, e do delineamento da pesquisa a ser realizada na base de dados de jurisprudência do sítio do CARF. Em seguida, explicitam-se os critérios de pesquisa e demonstra-se o resultado da pesquisa empreendida, com a seleção dos precedentes. Logo após, de posse dos precedentes selecionados, realiza-se a análise objeto deste trabalho.

 

 

 


INTRODUÇÃO

 

O trabalho versa sobre um problema específico referente aos planejamentos sucessórios. O problema da pesquisa a ser abordado diz respeito à interpretação que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais –  CARF vem dando a planejamentos sucessórios do ponto de vista do parágrafo único do artigo 116 do CTN[1].  O art. 25, II, do Decreto n.º 70.235/72 dispõe que o CARF é um órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com atribuição de julgar recursos de ofício e voluntários de decisões de primeira instância, bem como recursos de natureza especial. Noutras palavras, o CARF é o órgão julgador de última instância administrativa, responsável pelo controle de legalidade dos atos administrativos praticados na esfera federal, possuindo competência, no que aqui importa, para julgar recursos em relação à cobrança de tributos federais, especialmente aquela decorrente de acusação de simulação em planejamentos sucessórios/tributários.

O trabalho pretende responder a seguinte pergunta: a jurisprudência do CARF estabelece critérios claros e objetivos que permitam diferenciar planejamentos sucessórios lícitos daqueles ilícitos "vis a vis" o disposto no referido dispositivo legal? Apesar dos aspectos tributários de um planejamento sucessório poderem abranger as esferas federal, estadual e municipal, o trabalho se propõe a analisar precedentes do CARF mediante os quais exerceu o controle de legalidade de lançamentos fiscais tendo por objeto negócios jurídicos praticados por contribuintes, questionados com base no referido dispositivo legal.

Por escolher esta forma de abordar a questão, o trabalho não terá a pretensão de se aprofundar no estudo de planejamentos sucessórios ou tributários, e nem nos conceitos a eles conexos, o que é usual na produção acadêmica, mas sim avaliar precedentes do CARF sobre a matéria.

Para a delimitação do tema, a abordagem proposta parte do pressuposto de que a tributação assume crucial importância num planejamento sucessório. Testamentos, doações e estruturas societárias não podem ser concebidos sem prévia avaliação das consequências tributárias, as quais devem ser cuidadosamente verificadas por todo e qualquer profissional que se proponha a elaborar um projeto de planejamento sucessório. Por exemplo, não se realiza uma doação sem ponderar o imposto incidente, o seu valor, o prazo para pagamento etc. Também não se faz uma integralização de bem ao capital social de uma sociedade sem ponderar o custo de aquisição deste bem na declaração de imposto sobre a renda do sócio e o valor pelo qual o mesmo bem será integralizado na sociedade, pois a diferença positiva pode ser caracterizada como ganho capital tributável pelo IRPF[2] ainda que se trate de integralização de bem ao capital social de sociedade, em princípio imune à tributação pelo ITBI[3].

Pelo alto custo que envolve, a tributação é capaz de influenciar a tomada de decisões e o próprio planejamento, e também de fulminá-lo (na prática) caso o Fisco o compreenda como uma forma de dissimulação da ocorrência da hipótese de incidência do tributo ou da natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária; portanto, assume um papel central a interpretação que vem sendo dada pelo CARF ao parágrafo único do artigo 116 do CTN ao revisar, em última instância na esfera federal, lançamentos tributários através dos quais as autoridades administrativas questionaram negócios praticados por contribuintes num contexto de planejamento sucessório.

É de se esperar, sendo esta a hipótese do trabalho, que os pronunciamentos do CARF, que formam uma jurisprudência orientadora de condutas dos contribuintes e do Fisco, e de futuras decisões daquele próprio órgão julgador, em prol da segurança jurídica e da previsibilidade da ação do Estado, estabeleçam critérios claros e objetivos que permitam extremar planejamentos sucessórios lícitos daqueles ilícitos. Como sustentado pela Conselheira Relatora Susy Gomes Hoffmann no acórdão 9202-002.063 "são necessários critérios na jurisprudência que permitam ao intérprete conhecer os requisitos mínimos para o reconhecimento da licitude dos chamados planejamentos tributários.".

 As pesquisas de doutrina realizadas indicam a existência de poucas obras sobre a tributação em planejamentos sucessórios, e de apenas um trabalho que analisou os precedentes do CARF, mas em planejamentos tributários de forma geral e não especificamente em planejamentos sucessórios[4]. Ou seja, aparentemente a literatura especializada ainda não manifestou preocupação em analisar precedentes do CARF referentes a planejamentos sucessórios, ao menos segundo o viés aqui exposto.

As obras, apesar de indicarem um aparente acordo sobre a definição dos conceitos pertinentes a planejamentos tributários, apresentam divergência se alguns deles de fato têm embasamento legal, como é o caso dos conceitos de abuso de forma em estruturas societárias e de propósito negocial, os quais, nada obstante, são utilizados pelo CARF na avaliação desse tipo de planejamento. Além disso, apesar da questionável constitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN, é grande a quantidade de lançamentos fiscais lavrados com base na referida regra legal, o que é comprovado pela elevada quantidade de precedentes[5] localizados na base de dados de jurisprudência do sítio do CARF, muitos deles mantendo tais lançamentos de ofício.

As pesquisas realizadas naquela base de dados indicam a existência de poucos precedentes específicos sobre planejamentos sucessórios (usando como critério de pesquisa “planejamento sucessório”), mas muitos precedentes de planejamentos tributários (quando se utiliza critérios mais genéricos, mais diretamente relacionados a planejamentos tributários), o que sugere a necessidade de avaliação destes últimos precedentes, na medida em que planejamentos sucessórios, em se tratando de julgamentos dos efeitos tributários deles decorrentes, podem ter sido tratados como planejamentos tributários.

Para demonstrar a hipótese será necessário o desenvolvimento de estudos a respeito de planejamentos sucessório e tributário, e de alguns conceitos relacionados ao assunto, os quais, inclusive, serão utilizados como critério de pesquisa na base de dados de jurisprudência no sítio do CARF: elisão fiscal, evasão fiscal, elusão fiscal, dolo, fraude, simulação, dissimulação, fraude à lei, abuso de direito, negócio jurídico indireto, abuso de forma e propósito negocial e holding. E isso com a função de se construir conhecimento mínimo a respeito da norma jurídica prevista no parágrafo único do artigo 116 do CTN.

Pretende-se com o trabalho contribuir para o conhecimento da tributação em planejamentos sucessórios a partir do entendimento firmado pelo CARF em processos que questionem esses tipos de planejamento. Supõe-se que a obtenção de conhecimento a respeito dos critérios utilizados pelo CARF para divisar planejamentos sucessórios lícitos daqueles ilícitos contribua para a idealização e execução de planejamentos sucessórios que, do ponto de vista tributário, sejam menos passíveis de questionamentos por parte do Fisco Federal, ou ao menos mais defensáveis.

É íntima a relação do tema com o direito societário, pois, como exposto anteriormente, os planejamentos sucessórios são muitas vezes realizados tendo como mecanismo de execução reorganização societária, v.g., através de constituição de estruturas societárias (empresas familiares) para administração de bens familiares e/ou controle de outras empresas familiares operacionais ou patrimoniais, além do que é possível que o planejamento sucessório tenha por objeto empresas familiares já constituídas valendo-se também de outras ferramentas (testamento, doação com reserva de usufruto vitalício, etc.).

Finalmente, é de bom tom ressaltar que os planejamentos sucessórios vêm ganhando cada vez mais importância em função do reconhecimento de que não é saudável deixar de programar a sucessão. Muitas vezes, o patrimônio familiar é complexo a ponto de compreender diversos tipos de bens e direitos, e especialmente o poder de controle de empresas familiares operacionais ou patrimoniais. Neste caso, tal como sustentado por José Henrique Longo, a prática vem demonstrando que é inviável não programar a sucessão do controle de empresas familiares, pois, do contrário, podem ser assumidas por herdeiros ou familiares sem preparo, o que significa provável ruína do negócio e do próprio patrimônio familiar[6].

O trabalho está estruturado em três capítulos.

O primeiro capítulo tem por objeto definir o conceito de planejamento sucessório, tratar da empresa familiar como objeto deste tipo de planejamento, e também cuidar do planejamento tributário e de conceitos diretamente relacionados. Tal desenvolvimento se mostra necessário na medida em que são justamente esses conceitos que servirão de critérios de pesquisa para o levantamento dos precedentes na base de dados de jurisprudência do sítio do CARF, e também de suporte para a avaliação destes mesmos precedentes, considerando o escopo do trabalho.

O segundo capítulo tem por objeto explicitar quais serão os critérios de pesquisa a serem utilizados na pesquisa da base de dados do sítio do CARF e apresentar por critério de pesquisa os precedentes localizados, fazendo-se a devida depuração selecionando aqueles que serão estudados.

Por fim, no terceiro capítulo serão analisados os precedentes selecionados de maneira a se identificar se estabelecem ou não critérios claros e objetivos que permitam diferenciar planejamentos sucessórios lícitos daqueles ilícitos.

 


CAPÍTULO I-- DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS DE PLANEJAMENTOS SUCESSÓRIO E TRIBUTÁRIO, E DE OUTROS AFINS

 

1. DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO E INSTRUMENTOS PARA SUA IMPLEMENTAÇÃO

 

Planejar significa ato de fazer plano, de programar ou projetar. Ou seja, o ato de planejar pode ser entendido como ação ou conjunto de ações destinados à concepção de etapas voltadas para se atingir alguma meta[7].

Não se pode desconsiderar que o problema do planejamento se conecta à própria impossibilidade de delimitação de efeitos futuros de atos praticados no presente. Cria-se no presente a antecipação de um futuro e a esse "futuro" atribui-se determinadas qualidades. Mas, como toda tentativa de antecipação de futuro, o planejamento não é capaz, assim como a comunicação não é, de abranger todas as faces da coisa, que sempre se apresenta mais complexa e contingente que o suposto. Essa circunstância explica em larga escala a possibilidade do planejado não se concretizar ao se implementar o planejamento, no qual problemas não previstos, v.g., podem se materializar. A complexidade e a contingência em torno desta estratégia ainda são agravadas quando num mesmo planejamento (como é o sucessório) são tratadas realidades já suficientemente complexas e contingentes de forma isolada tais como família, patrimônio, sucessão e empresa[8].

Sucessão, por sua vez, corresponde à transmissão de patrimônio aos herdeiros pela morte do de cujus. Dá-se (a sucessão) com a morte do autor da herança. Com a morte todos os bens são transferidos aos herdeiros (art. 1784 do Código Civil). Como essa transferência muitas vezes acontece sem um planejamento, costuma a criar o cenário propício para desentendimentos e disputas entre os herdeiros a respeito de bens e direitos sobre os quais não houve uma prévia definição de destinação, inclusive em torno do comando de empresas familiares cujas participações societárias são objeto do espólio[9].

Sendo assim, planejamento sucessório pode ser entendido como um encadeamento de atos preordenados voltados a organizar a transmissão dos bens do de cujus para os seus herdeiros; tornar mais fácil a transição dos negócios e a utilização/movimentação dos bens, evitando sua dilapidação; e, minorar conflitos entre os herdeiros realizando-se entre eles ajustes de interesses[10].

O planejamento sucessório deve levar em consideração não somente a vontade do sucedido, mas também as características da família e dos seus integrantes, e seus interesses muitas vezes ocultos e que surgem por ocasião da sucessão, senão antes. O que significa ponderar aptidões, vontades e interesses dos herdeiros. Deve também ser fruto de consenso entre as gerações, estabelecendo regras exequíveis e, em alguma medida, flexíveis, que permitam o prosseguimento dos negócios familiares, sem solução de continuidade.

Os planejamentos sucessórios refletem preocupações quanto à transferência em vida do patrimônio e sua administração por pessoas que tenham capacidade de gestão, e ao mesmo tempo com a manutenção, aos sucedidos, de uma reserva de patrimônio que lhes permita um fim de vida com dignidade e autonomia, na linha do que dispõe o art. 548 do Código Civil (nulidade de doação de todos os bens sem reserva de parte para a subsistência do doador). Ou seja, o planejamento sucessório não deve ser visualizado apenas a partir da perspectiva do sucessor, mas também do sucedido[11].

Os planejamentos sucessórios não têm um formato certo, pois famílias também não o têm, na medida em que os seus integrantes possuem educação, cultura, costumes, valores e interesses diversos e, algumas vezes, divergentes[12].

Os planejamentos sucessórios podem ser implementados de diversas formas, v.g., mediante testamento, doação de bens com usufruto vitalício, estabelecimento de bem de família com restrições de livre disposição (inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade), dentre outros, e incluindo a constituição de empresa familiar para administração de bens familiares e/ou controle de outras empresas familiares operacionais ou patrimoniais. Também pode ser realizado tendo como objeto empresas familiares operacionais ou patrimoniais já constituídas, com o uso de estruturas societárias ou de outros mecanismos não societários, tais como os acima expostos, dentre outros[13].

As holdings familiares, enquanto pessoas jurídicas (sociedades limitadas ou sociedades por ações) cujo capital social é subscrito e integralizado com participação societária de outra pessoa jurídica, comparecem como indispensáveis estruturas societárias destinadas a viabilizar o planejamento sucessório com a manutenção do patrimônio e do controle de empresas operacionais (concentração de voto e convergência de interesses), separação do patrimônio imobiliário das atividades de tais empresas, simplificação do processo de inventário, evitando o condomínio indiviso em relação a inúmeros bens e direitos. Dois tipos de holding merecem destaque: a holding de participações (detém participações noutras sociedades) e a holding imobiliária (detém patrimônio imobiliário)[14].

O acordo de sócios também é um instrumento de grande importância para o estabelecimento de direitos e de obrigações entre os sócios de um mesmo grupo familiar, e pode estabelecer inúmeras regras destinadas à harmonização das relações entre os integrantes, v.g., as que criam condições para o ingresso de herdeiros em cargos executivos. Tal instrumento é utilizado para tratar de matérias que os sócios entendam impertinente constarem dos atos constitutivos, e é um relevante instrumento para que familiares ajustem regras para otimizar as atividades da empresa[15].

Os protocolos familiares sistematizam os princípios, valores, regras e missão da família, e procuram assegurar a governança familiar, além de disciplinar inúmeras outras questões, tais como condições de ingresso de familiares na empresa, fixação de metas, regras para casamento pelos herdeiros, dentre outras disposições[16].

Além disso, os conselhos (consultivos, de administração e familiar) assumem relevante função de desenvolver a governança familiar eficaz, e executar o plano estratégico da empresa familiar[17].

 

2.  A EMPRESA FAMILIAR COMO OBJETO DE PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO

 

No Brasil, considerável parcela das empresas, inclusive de grande porte, são controladas por grupos familiares, o que, diga-se de passagem, longe de ser uma desvantagem muitas vezes é o motivo do sucesso de um negócio[18].

Não se ignora que o conceito de família (que interfere na compreensão do conceito de empresa familiar) vem experimentando sucessivas modificações em virtude dos avanços da compreensão da entidade familiar (homoafetiva, união estável equiparada a casamento para fins sucessórios, v.g.), todavia neste trabalho tal problemática não será enfrentada. O conceito de empresa familiar aqui tratado, não obstante a sua imprecisão semântica, será amplo, isto é, não restrito apenas ao vínculo de parentesco existente entre os sócios, mas também tendo em mente como se dá o exercício do poder de controle; leva em conta o fato da empresa ser iniciada por membro da família, ter membros dela detendo poder de controle e/ou administrando o negócio, e ter valores que se identificam com a história, valores e tradição familiares[19].

A sucessão numa empresa familiar de longe se apresenta como um dos eventos mais importantes para a sua história e, em virtude disso, é cada vez mais comum que as famílias se preparem para esse evento, tendo em foco a necessidade de manutenção do patrimônio familiar, e dos herdeiros manterem-se no poder com condições de conduzir com eficiência o negócio. A cada dia que passa os fundadores de empresas familiares adquirem mais consciência quanto à inviabilidade de não se programar a sucessão, pois a sua ausência pode ocasionar a derrocada da empresa familiar pela necessidade, em caso de falecimento, de inventário sem prazo certo para acabar e no curso do qual herdeiros despreparados podem assumir o poder de controle. A sucessão sem um mínimo preparo pode colocar o negócio familiar em sério risco[20].

Talvez as grandes indagações de fundadores de empresas familiares sejam as seguintes:  se os herdeiros terão condições de dar seguimento aos negócios, e como planejar o futuro visando a união familiar e não a sua desintegração.

É inegável que a relação do fundador com o negócio, o qual concebeu e construiu despendendo tempo, recursos e energia, é distinta daquela dos herdeiros, que anseiam em receber uma empresa pronta e lucrativa. Assim, é natural que os fundadores temam que sem planejamento um negócio familiar próspero possa deixar de existir por, na maioria das vezes, estar identificado com a sua pessoa, e segundo os seus princípios e valores. Vai daí uma crescente preocupação em aprontar o negócio para a próxima geração com a preparação de sucessores, sem se valer exclusivamente de critérios de familiaridade, mas sim de meritocracia, e compatibilizando, de um lado, a procura incessante pela eficiência dos negócios; e, de outro lado, as expectativas e as necessidades de todos os interessados, não misturando a gestão dos negócios familiares com discussões sobre herança. É justamente neste sentido que surge a necessidade de um planejamento sucessório voltado a evitar que o patrimônio familiar seja desfalcado com a disputa de poder entre os herdeiros, a inexperiência de vida e/ou profissional e o desconhecimento a respeito dos negócios familiares, ou com o deslumbramento com o fato de uma hora para outra assumirem um vasto patrimônio para cuja constituição não contribuíram[21].

O planejamento sucessório deve ser capaz de equalizar as quase sempre complexas relações familiares, cujas dificuldades normalmente se espraiam e se amplificam dentro de tais empresas familiares, apresentando-se nos mais diversos formatos, tais como conflitos em torno de poder político e sua transferência de geração para geração, remuneração, distribuição de lucros, privilégios etc.[22].

 

3. DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS DE PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO (E DE OUTROS CORRELATOS)

 

Ao idealizar e implementar um planejamento sucessório vem à tona uma miríade de questões jurídicas envolvendo movimentação e avaliação de bens, segregação de atividades, reorganização societária, disposições testamentárias, etc. Estes eventos realçam o caráter interdisciplinar dos planejamentos sucessórios e, dentre os aspectos jurídicos envolvidos, notadamente o familiar e o societário, ressai o tributário a ser ponderado[23].

O planejamento tributário nada mais é do que uma das facetas do planejamento sucessório, a tal ponto que não se realiza um planejamento sucessório sem ponderar o seu impacto tributário. Essa constatação justifica neste trabalho o estudo do planejamento tributário, e de seus conceitos correlatos.

Planejamento tributário é uma atividade preventiva lícita desenvolvida pelo contribuinte que concretiza a elisão fiscal entendida como um procedimento que tem como objetivo evitar a ocorrência da hipótese de incidência tributária e com isso reduzir legalmente carga tributária incidente em determinados negócios jurídicos[24].

Elisão e evasão fiscais são conceitos conexos ao conceito de planejamento tributário.

A elisão fiscal efetiva importantes princípios constitucionais tributários, valendo citar os princípios da propriedade privada, da capacidade contributiva, da estrita legalidade em matéria tributária e da proporcionalidade[25].

Entre as premissas subjacentes ao conceito de elisão fiscal, podem ser destacadas as seguintes: a) tratando-se o tributo de um gasto redutor de patrimônio do sujeito passivo, natural que este queira reduzir seu encargo tributário sempre que possível; b) o cidadão tem o direito de se organizar e conduzir os seus negócios da melhor forma possível; c) ninguém pode ser obrigado a pagar mais tributos, se pode licitamente pagar menos ou deixar de pagá-los para viabilizar determinada atividade econômica; e, d) a lei não pode substituir a autonomia das vontades pela vontade do Estado na celebração de negócios jurídicos, para impor aos contribuintes exação tributária indevida, ou seja, se as partes podem celebrar um negócio jurídico que acarrete menor carga tributária, não podem ser obrigadas a celebrar outro mais oneroso tributariamente[26].

Ou seja, elisão fiscal significa evitar ou reduzir de forma lícita o montante do tributo, ou retardar o seu pagamento, por ato ou omissão do sujeito passivo, antes da ocorrência da hipótese de incidência tributária, com base no valor da liberdade fiscal[27].

Evasão fiscal, por outro lado, significa evitar o pagamento do tributo devido por ato ou omissão do sujeito passivo, após a ocorrência da hipótese de incidência tributária, momento em que não há mais liberdade por parte do sujeito passivo em praticar elisão fiscal. Enquanto a elisão fiscal dá-se antes da ocorrência da hipótese de incidência tributária, a evasão fiscal dá-se após. E isso porque o tributo só é devido após a ocorrência da hipótese de incidência tributária, conhecida como “fato gerador” (arts. 113, § 1º, 114 e 116, caput, do CTN). A ocorrência da hipótese de incidência tributária é um importante critério legal para diferenciação entre planejamentos lícitos e ilícitos[28].

A evasão fiscal é relacionada com a prática de condutas ilícitas (por meio dos elementos típicos conhecidos por simulação, dolo, fraude; e, atípicos do ponto de vista da legislação complementar tributária, conhecidos por fraude à lei, abuso de direito e abuso de forma) voltadas para o não pagamento de tributos devidos[29].

De forma sintética, simulação pode ser entendida como um ajuste entre as partes com a finalidade de iludir terceiros, evidenciando um desacordo entre a vontade querida e o ato praticado visando exteriorizar a vontade. É diferente de dissimulação, que visa ocultar negócio jurídico existente, e em prejuízo de terceiros. Esse vocábulo foi empregado pelo legislador no art. 116, parágrafo único, do CTN no sentido de ocultar, disfarçar ou simular a ocorrência da hipótese de incidência tributária, e acaba por abranger o conceito de simulação, mas não abarca os conceitos de abuso de direito, fraude à lei, negócio jurídico indireto e propósito negocial[30]. Aliás, justamente por esse motivo, a norma jurídica em questão não pode ser considerada antielisiva, mas sim antievasiva. Negócios jurídicos verdadeiros não se encaixam na hipótese normativa, de maneira que o dispositivo legal não proíbe, a nosso ver, planejamento tributário.

Simulação não se confunde com negócio jurídico indireto, através do qual há utilização de um instituto jurídico para atingir finalidades diversas da que lhes são próprias, o que não é vedado pelo ordenamento jurídico e não caracteriza de per si conduta ilícita, a não ser que o fim visado pelas partes contratantes seja ilícito[31].

Dolo é a intenção subjetiva manifestada em atos das partes de causar dano a terceiros, sendo o elemento constitutivo da simulação e da fraude. Causa engano ao terceiro a tal ponto que a manifestação de vontade da outra parte seria outra, caso tivesse ciência[32].

Já a fraude é a conduta que visa alterar ou ocultar a realidade e com a intenção de enganar terceiros, ou seja, é a inverdade sobre o fato. Não se confunde com o conceito de fraude à lei as partes objetivam driblar o comando normativo através de negócios cujos resultados contornam de forma indireta a prescrição legal (art. 166, VI, do Código Civil)[33].

Finalmente, no abuso de direito o negócio jurídico apesar de encontrar respaldo na lei vai além do exercício regular de um direito, excedendo o seu fim econômico e social, a boa-fé e os bons costumes (art. 187 do Código Civil). A propósito, deve ser considerada a importância que o legislador no Código Civil deu ao motivo do negócio jurídico (art. 166, III)[34].

A teoria do abuso de forma vem ao encontro com esses conceitos, e sustenta a impossibilidade de se utilizar de uma forma não usual para um determinado negócio jurídico (distorção entre forma e conteúdo) se esta conduta permitir ao sujeito economia no pagamento de um tributo. Entendendo-se ter ou não fundamento na teoria da interpretação econômica do direito, a teoria do abuso de forma tem respaldo na legislação de direito privado a qual atribui efeito à distorção entre forma e conteúdo através de abuso de direito, fraude à lei ou simulação[35]. Sem embargo, parte da doutrina, como é o caso de Edmar Oliveira Andrade Filho, sustenta que tal teoria não encontra ressonância no sistema tributário brasileiro, norteado pelo princípio da legalidade em matéria tributária[36].

Já a teoria do propósito negocial ("business purpose test"), que tem origem numa contraposição ao formalismo jurídico, baseia-se também numa interpretação econômica do direito e se relaciona diretamente com os conceitos de planejamento tributário e elisão fiscal. Visa analisar se os negócios jurídicos praticados pelo sujeito passivo têm um objetivo negocial como fundamento e se não visavam exclusivamente pagar menos tributo. Negócios jurídicos sem intenção negocial e que objetivam apenas a economia tributária são elementos que para essa teoria permitem ao aplicador do direito ignorar a forma jurídica adotada pelo sujeito passivo, se tal forma implicar em menor carga tributária. Apesar do estudo da causa ser relevante na teoria dos contratos, a doutrina, de um modo geral, apresenta severas críticas a essa teoria diante do princípio da legalidade tributária e da vedação de que o emprego da analogia possa implicar exigência de tributo sem previsão legal. Além disso, o propósito exclusivamente tributário de evitar a incidência tributária coincide com objetivo de qualquer empresa de obter lucro[37].

Os conceitos de fraude à lei e de abuso de direito propiciam um incremento de complexidade conceitual que levou a doutrina a criar um conceito intermediário entre elisão e evasão fiscais denominado elusão fiscal. A elusão fiscal trata-se de um conceito autônomo que se refere a condutas do sujeito passivo voltadas para reduzir carga tributária através de negócios jurídicos lícitos, todavia com fraude à lei e de abuso de direito[38].

No nosso entendimento, o legislador criou uma permanente insegurança jurídica ao atribuir ao agente fiscal (art. 116, parágrafo único, do CTN) a possibilidade de desconsiderar operação legal praticada pelo contribuinte ao argumento de que poderia praticar outra conduta capaz de gerar mais recursos aos cofres públicos. É de duvidosa constitucionalidade e utilidade o dispositivo legal, na medida em que não poderia violar o princípio da legalidade tributária, além do que o Fisco já dispunha de mecanismos para cobrar tributos em caso de simulação antes mesmo da entrada em vigor do referido dispositivo legal (como será demonstrado no capítulo II).

Os conceitos de abuso de direito, abuso de forma e fraude à lei não estão previstos em lei complementar, tal como exigido pelo art. 146, II e III, da CF/88, sendo, destarte, questionável, no nosso entender, a sua utilização pelo Fisco para fundamentar a desconsideração de planejamentos tributários. Não custa lembrar que o parágrafo único do art. 116 do CTN possui como elemento normativo central a prática de atos ou negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, o que não se confunde com aqueles conceitos. O mesmo raciocínio pode ser utilizado com relação à exigência de propósito negocial em planejamentos tributários[39].

Seja como for, há ineficácia técnica da norma jurídica prevista no parágrafo único do art. 116 do CTN pela falta de regulamentação do referido dispositivo legal por lei ordinária (a MP n.º 66/02 que previa a regulamentação não foi convertida em lei)[40].

Como se pode perceber, a fronteira entre o lícito e o ilícito é o ponto decisivo para se avaliar a legalidade de um planejamento tributário pelo contribuinte, cujo direito é assegurado constitucionalmente através dos princípios da livre iniciativa econômica, da legalidade tributária e da impossibilidade de tributação por analogia; ou melhor, a ilegalidade do planejamento tributário "ao contrário" realizado pelo Fisco para exigir tributos alegando abuso de formas[41].

A insegurança jurídica que permeia o assunto por si só reforça a necessidade de se atentar para o aspecto tributário no planejamento sucessório, para que expectativas e negócios não sejam frustrados com questionamentos por parte da autoridade fiscalizadora culminados em lançamentos de ofício, ao argumento de que atos ou negócios jurídicos no contexto de um planejamento sucessório foram praticados com o intuito de dissimular a ocorrência da hipótese de incidência tributária ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária[42].

A questão primordial é de interpretação, e o órgão a quem compete em última instância (administrativa) a interpretação sobre a exigência de tributos federais no âmbito de um planejamento tributário é o CARF. Tendo o legislador (art. 116, parágrafo único, do CTN) deferido ao agente fiscal a competência para desconsideração de negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo, e competindo ao CARF em última instância (administrativa) o controle de legalidade dos lançamentos tributários, percebe-se a importância da avaliação dos precedentes do CARF a respeito da matéria e dos critérios utilizados pelos seus julgadores para discernir entre elisão e evasão fiscais, conceitos estes carregados de forte carga de indeterminação, e na abordagem dos conceitos jurídicos correlatos[43].

 

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