O trabalho do menor em atividades artísticas e desportivas à luz do ordenamento jurídico nacional


Pormarina.cordeiro- Postado em 21 março 2012

Autores: 
ARAÚJO, Paulo Henrique Figueredo de

1. DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA.

A doutrina da Proteção Integral apregoa a absoluta prioridade em todos os aspectos que possibilitem a elaboração de diretrizes e concretização dos direitos da criança e adolescente, a fim de permitir o seu pleno desenvolvimento.

Nos dizeres de ISHIDA (2010, p. 02), "constitui uma nova forma de pensar, com o escopo de efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente". Em nosso ordenamento jurídico, consubstancia-se principalmente no caput do art. 227 da Constituição Federal de 1988, o qual se transcreve:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A doutrina da Proteção Integral ganhou amplitude a partir da década de oitenta, com a crise da ditadura militar, consequente redemocratização e incremento das teorias sobre os direitos fundamentais. Houve grande reforço jurídico oriundo da Convenção Internacional dos Direitos Humanos da Criança, editada pela ONU em 1989 (ratificada no Brasil pelo Decreto n° 49/90), bem como pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 (Lei n° 8.069/90).

A referida doutrina protecionista, ao determinar absoluta prioridade aos direitos de que trata, constitui ruptura ao antigo paradigma utilizado no Brasil para assuntos envolvendo as crianças e adolescentes: a doutrina jurídica da Situação Irregular, que inspirou a elaboração do Código de Menores de 1979 (Lei n° 6.697/79). Segundo o ideário da Situação Irregular, o menor somente seria objeto de interesse do direito a partir do momento em que não se enquadrasse nos padrões socialmente aceitáveis. Constituía uma sistemática onde se considerava o menor como objeto, e não sujeito de direitos. Excludente em sua natureza, somente abarcava, na prática, o menor necessitado ou autor de ato delinquente. Enfim, "limitava-se basicamente a 3 (três) matérias: (1) menor carente; (2) menor abandonado; (3) diversões públicas" (ISHIDA, 2010. p. 02).

A consolidação da doutrina da Proteção Integral originou diversos princípios no ordenamento jurídico, dos quais vale citar para o escopo do presente trabalho o Princípio do Melhor Interesse da Criança. Este já existia sob a égide da legislação menorista (Código de Menores de 1979), insculpido no seu artigo 5°, determinando que "na aplicação desta lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado". É de salientar, contudo, que tendo em vista tal disposição estar inserida num contexto de tutela excludente da criança e adolescente, não possuía o escopo abrangente que atualmente sustenta.


2. O TRABALHO DO MENOR EM ATIVIDADES ARTÍSTICAS, DESPORTIVAS E SIMILARES.

O ordenamento jurídico brasileiro atual é farto ao regulamentar, em disposições gerais, o trabalho do menor. A Constituição Federal de 1988, no art. 7°, XXXIII, contém permissivo para trabalho do adolescente a partir dos quatorze anos, na condição de aprendiz, e dos dezesseis anos nas demais formas de labor, com exclusão trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos.

A legislação infraconstitucional acresce ao referido rol outros impedimentos: o Estatuto da Criança e Adolescente dispõe ser também proibido o trabalho penoso (art. 67, II), o realizado em locais prejudiciais à formação do menor e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social (art. 67, III), bem como o realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola (art. 67, IV). A Consolidação das Leis do Trabalho, por sua vez, adita ainda mais o referido rol, dispondo que o trabalho do adolescente não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a frequência à escola (art. 406, Parágrafo único), nem em locais ou serviços prejudiciais à sua moralidade (art. 405, II), exemplificando tais serviços prejudiciais à sua moralidade (art. 405, §3°).

Todavia, o ordenamento jurídico nacional é deveras omisso na regulamentação do trabalho do menor artista ou atleta. Identificam-se sobre a matéria somente os dispositivos legais previstos na CLT, constantes das vedações do parágrafo 3°:

§ 3º Considera-se prejudicial à moralidade do menor o trabalho: (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)

a) prestado de qualquer modo, em teatros de revista, cinemas, buates, cassinos, cabarés, dancings e estabelecimentos análogos; (Incluída pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)

b) em emprêsas circenses, em funções de acróbata, saltimbanco, ginasta e outras semelhantes; (Incluída pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)

c) de produção, composição, entrega ou venda de escritos, impressos, cartazes, desenhos, gravuras, pinturas, emblemas, imagens e quaisquer outros objetos que possam, a juízo da autoridade competente, prejudicar sua formação moral;(Incluída pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)

Em análise à farta legislação citada, conclui-se que o ordenamento jurídico pátrio impôs diversas limitações ao trabalho infanto-juvenil, orientadas, originariamente, no intuito de proteger o desenvolvimento moral, físico e psíquico do menor.

Porém, como é de se esperar de tais normas, as mesmas somente devem subsistir em se vislumbrando o real prejuízo do menor advindo do labor. Verificando-se que o trabalho não implica qualquer dano ao desenvolvimento do sujeito, mas ao contrário, implica-lhe benefícios, seja por ensinar-lhe um ofício, ou por propiciar-lhe remuneração que, na maioria das vezes, é crucial ao seu sustento, não subsiste o motivo da vedação à atividade laboral do menor.

É a aplicação da própria razoabilidade à interpretação da norma: Se a intenção do dispositivo legal é proteger o menor, e sua aplicação o prejudica, deve-se afastar a aplicação daquele, sob pena de estar-se diante uma atitude que foge aos postulados da razoabilidade e proporcionalidade. Saliente-se que para uma conduta ser lícita, não deve somente obedecer à norma escrita, mas também estar em consonância com os princípios aplicáveis à matéria e de acordo com os referidos postulados.

Esse é o juízo de deve ser levado em consideração ao tentar avaliar se o trabalho do menor em atividades artísticas ou desportivas deve ou não ser permitido, mesmo em se tratando de criança ou adolescente com idade inferior a quatorze anos.

Assim, acreditamos ser interpretação mais condizente com os objetivo da norma aquela que preconiza a aplicação das limitações laborais às crianças e adolescentes causidicamente. Ou seja: Não se deve visualizar as proibições de forma abstrata, implicando no entendimento de que são vedações absolutas. É interessante que se visualize o real prejuízo ou benefício que o trabalho trará ao menor. Dessa forma admite-se, exemplificativamente, labor ao menor de quatorze anos, desde que as circunstâncias específicas da atividade desenvolvida demonstrem claramente benefícios seu desenvolvimento.

Partindo para uma análise legal do tema, suportando a possibilidade de crianças e adolescentes laborarem em atividades artísticas, o único dispositivo legal aplicável nacionalmente é o artigo 8° da Convenção n° 138 da OIT, que trata das idades mínimas do menor para admissão no emprego, verbis:

Artigo 8º

1. A autoridade competente, após consulta com as organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas, se as houver, podem, mediante licenças concedidas em casos individuais, permitir exceções à proibição de emprego ou trabalho disposto no artigo 2º desta Convenção, para fins tais como participação em representações artísticas.

2. Permissões dessa natureza limitarão o número de horas de duração do emprego ou trabalho e estabelecerão as condições em que é permitido.

Como se observa, a Convenção n ° 138 abre exceção no concernente às atividades artísticas, desde que autorizadas mediante licenças individuais. Tendo em vista ter o referido documento entrado no ordenamento jurídico através do Decreto n° 4.134/2002, a priori, sustentaria o caráter de lei ordinária (Leading case: STF. RE 80.004/SE, Rel. Min. Cunha Peixoto. Julgado em 01/06/1977). Contudo, por versar sobre direitos humanos, teria, segundo a atual posição do Supremo, caráter de supralegalidade (Leading case: STF. RE 349703/RS. Rel. Min. Carlos Britto. Julgado em 03/12/2008), revogando toda legislação infraconstitucional. Todavia, ocorre que continua a subsistir o óbice constitucional, previsto no supracitado art. 7°, XXXIII. Resta aqui empreender, como já explanado, uma interpretação razoável do dispositivo, a fim de resguardar os reais interesses do menor, tendo em vista a doutrina da Proteção integral e o Princípio do Melhor Interesse, bem como os anseios e expectativas sociais quanto à norma.

Percebe-se, claramente, omissão do documento convencional quanto às atividades desportivas, mas que, pela similitude com as atividades artísticas, devem seguir sua sorte.


3. PROJETO DE LEI DO SENADO N° 83 DE 2006 – A BUSCA POR UMA REGULAMENTAÇÃO NACIONAL

Sobre a temática abordada no estudo, salutar expor a iniciativa legislativa do Senador Valdir Raupp, que através do Projeto de Lei do Senado n° 83 de 2006, busca indicar limites expressos para o trabalho infanto-juvenil. O referido possui somente um artigo regulando a matéria, com o seguinte teor:

Art. 1° É vedado o trabalho como ator, modelo, e similares, em cinema, teatro, televisão, anúncios publicitários de pessoa maior de catorze e menor de dezoito anos de idade, sem autorização expressa do detentor do poder familiar.

Parágrafo único. Os menores de catorze anos poderão atuar, se judicialmente autorizados.

O Senador, ao propor tal disposição, justifica o projeto de lei, ao afirmar que "não raro são estabelecidos limites, como o de 25 anos, para a atuação de modelos em anúncios publicitários, novelas e programas de televisão". Todavia, sustenta que "não é válida nem aceitável a exigência de idade superior a 18 anos para o exercício de determinada atividade, pois o Código Civil (art. 5°) fixa em 18 anos completos a maioridade civil, idade a partir da qual a pessoa natural fica habilitada a praticar todos os atos da vida civil".

Conclui com as seguintes considerações: "A presente iniciativa visa assegurar a crianças e adolescentes o direito de exercerem as atividades de atores, condicionado, porém, em razão da idade, a expressa autorização do detentor do poder familiar, para os maiores de catorze anos, e de autorização judicial, para os situados abaixo dessa idade".

Sobre o Projeto de Lei n° 83 de 2006, interessantes as seguintes considerações:

Ao determinar a obrigatoriedade de autorização judicial aos menores de catorze anos, acreditamos que a "idade fronteira" não foi escolhida de forma aleatória. Basta observar ser esse o período esperado para a conclusão do ensino fundamental pelo adolescente. Assim, visou o projeto de lei a impor requisitos mais formais à autorização para trabalho da criança e adolescente nessa idade, a fim de não prejudicar tão importante fase da educação.

Urge salientar que a Constituição, ao prever o acesso da população aos diversos níveis de educação, prescreveu como universal e obrigatório somente o ensino fundamental. O ensino médio universal constitui objetivo programático da Carta Magna, enquanto os níveis mais elevados do ensino não são universais, somente acessíveis segundo a capacidade de cada um. Transcrevem-se os dispositivos correlatos:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996)

II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 14, de 1996)

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; (grifei)

Pelos mesmos motivos expostos, relaxam-se os requisitos aos maiores de catorze anos, bastando somente, além de completa a idade, autorização expressa do detentor do poder familiar. Acreditamos que ao escolher tal idade, teve-se em escopo que a Constituição, apesar de dedicar importância a tal fase do aprendizado, reconheceu estar o ensino médio em importância inferior ao fundamental.

Claro, não se pode esquecer o critério orçamentário para tal escolha constitucional: À época que a Carta de 1988 foi elaborada, claras eram as deficiências no ensino pátrio. Uma mudança radical na estrutura educacional demandaria décadas de investimentos constantes. Tendo em vista tal quadro, o legislador constituinte preferiu, acertadamente a nosso ver, priorizar o ensino básico, para que, sanadas as mazelas deste, pudesse prosseguir ao melhor aparelhamento dos níveis mais avançados.

Retomando o debate referente ao projeto de lei, este teve sua redação original modificada pela Comissão de Educação do Senado, para alterar a possibilidade permissiva aos menores de catorze anos: somente seria permitido o trabalho até tal idade mediante a autorização dos detentores do poder familiar, desde que acompanhados por um dos pais ou responsável no local a ser exercida a atividade artística, desportiva ou afim. Na ausência do acompanhante, dispõe que seria exigida autorização judicial.

A Comissão de Educação do Senado promoveu também alteração relativa ao trabalho para o adolescente com mais de quatorze e menos de dezoito anos de idade, determinando que a autorização deixará de ser válida se for descumprida a frequência escolar mínima prevista no art. 24 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Não estipulou tal exigência para o ensino fundamental, a nosso ver, pelo fato deste ser, ex lege, obrigatório, o mesmo não ocorrendo com o ensino médio.

O Projeto de Lei n° 83 de 2006, com a referida alteração pela Comissão de Educação do Senado, recebeu voto favorável da Comissão de Direitos Humanos e Legislação, estando atualmente na pendência de realização de Audiência Pública, com finalidade de instruir a matéria (Movimentação de 04/02/2010).


4. CONCLUSÃO

Clara é a omissão legislativa quanto ao trabalho do menor e atividades esportivas e artísticas. As vedações ao trabalho do menor consubstanciadas nos diversos níveis legais do ordenamento jurídico não devem ser interpretadas literalmente, mas em combinação os a doutrina da Proteção Integral e o Princípio do Melhor Interesse. Somente deve-se vedar tal labor na tenra idade quando advir prejuízos ao desenvolvimento da criança ou adolescente, sob pena da própria vedação constituir o malefício que desejar-se-ia evitar. Também não se deve olvidar que devem ser utilizados os postulados da razoabilidade e proporcionalidade na interpretação das restrições ao labor dos menores, tendo em vista que, na atual conjuntura do ordenamento constitucional, a interpretação que não obedece a tais preceitos é tida como ilícita, e assim vedada.

Por fim, salientou-se a existência de louvável iniciativa legislativa pelo Congresso Nacional, que, se aprovada, trará a regulamentação merecida do tema.


5. REFERÊNCIAS

ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente: doutrina e jurisprudência. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

Sobre o projeto de Lei n° 83, 2006:

http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/Detalhes.asp?p_cod_mate=77337 . Acesso em: 29/03/2010.