O tempo rege o ato


Portiagomodena- Postado em 06 maio 2019

Autores: 
Luiza Steele

Com o advento da Lei n° 13.467/2017, alguns juízes trabalhistas têm indeferido petições iniciais que não apresentam valores líquidos, mesmo nos casos daquelas ações propostas antes de 11 de novembro de 2017, quando a reforma trabalhista começou a viger. Fiam-se na regra do §1° do art. 840 dessa Lei, que manda a parte trazer ao juízo pedido líquido[1]. Invariavelmente, contra essa determinação, os empregados têm impetrado mandado de segurança perante a SEDI[2] dos tribunais, com expressivo percentual de êxito.

O art. 1º do DL. nº 4.657/1942[3] diz que, “salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”.  O art.6º da L.nº 13.467/2017 diz que a reforma entraria em vigor depois de decorridos cento e vinte dias de sua publicação. Como foi publicada em 14/7/2017, uma sexta-feira, entrou em vigor em 11/11/2017, um sábado, porque a contagem do prazo começou em 14/7/2017 e terminou em 10/11/2017 (sexta-feira).

A L. nº 13.467/2017 revogou a CLT nos pontos em que o disse expressamente[4] e naqueles em que se mostrar incompatível com ela ou regular inteiramente a mesma matéria.

Essa é a regra geral.

A doutrina é unânime ao dizer que a lei processual se aplica aos processos em curso. Salvatore Satta[5] diz que “...norma processual é aquela reguladora do processo”. Ou seja: lei processual é a que regula o processo. Satta adverte[6] que deve, porém, se tratar “de lei reguladora do processo e não daquela que rege a relação substancial, ainda que influa sobre o processo”. Quando se diz que a lei processual se aplica aos processos em curso, o que se afirma é que a lei dispõe para o futuro e tem efeito imediato e geral. Efeito imediato e geral significa que a lei está vigendo desde o momento em que foi publicada, tem eficácia cogente e se aplica a todos. Mas, isso não quer dizer que seja retroativa.

Pois bem. A CLT não é um código de processo, mas uma consolidação de leis. O que nela se contém de regras processuais é muito pouco e, ainda assim, regulado pela L. nº 6.830̸80 por autorização do art.889[7]. A L. nº 13.467̸̸2017 não regula processo, mas o direito material trabalhista. Aplica-se imediatamente ao processo do trabalho não porque seja uma “lei processual”, mas porque é lei, e toda lei publicada vige imediatamente e toma os processos no estado em se encontrem no momento da sua publicação.

A lei estabelece sempre ad futuram, e como o processo se realiza no tempo, uma lei nova pode colhê-lo enquanto ainda tramita. Daí dizer-se que o processo é regulado pela lei nova tão logo essa lei nova entre em vigor[8]. Como regra, as leis ditas processuais não têm efeito retroativo[9]. Simplesmente apanham o processo no estado em que estiver, no momento de sua entrada em vigor, mas somente regulam os atos processuais dali para a frente. Os atos processuais já praticados antes que a lei nova entre em vigor são mantidos incólumes em todos os seus efeitos e se regram pelas leis que vigoravam quando esses atos foram praticados. Apenas os atos posteriores à entrada em vigor da nova lei é que serão regulados por ela[10]. Em regra, portanto, a lei nova aplica-se, apenas, aos processos novos, assim entendidos aqueles ajuizados após a sua entrada em vigor.

O art.6º do DL. nº 4.657/42, que define quando e em quais situações a lei nova pode retroagir, explica cada um desses conceitos. É possível que uma lei nova alcance processos antigos, ajuizados antes de sua vigência, se disser expressamente que o faz e se respeitar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada[11].  Ato jurídico perfeito é aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou; consideram-se adquiridos os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, bem assim aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo ou condição pré-estabelecida inalterável pela vontade de outrem; e, por fim, que coisa julgada é o efeito de uma decisão judicial contra a qual não já não caiba nenhum recurso. Esses são, portanto, os limites da aplicação retroativa da lei nova.

 

Prevalece no nosso ordenamento jurídico a máxima “tempus regit actum”, isto é, o tempo rege o ato[12]. A doutrina[13] adota três sistemas para resolver os problemas de direito intertemporal:

1º  —    Sistema da unidade processual;

2º  —    Sistema das fases processuais;

3º  —    Sistema do isolamento dos atos processuais.

Segundo o primeiro sistema (unidade processual), o processo é um todo encadeado para um único fim, que é a sentença sobre o mérito. Assim, ainda que em curso, a lei nova apanha o processo nesse estado e passa a disciplinar as suas fases, tornando ineficazes todos os atos praticados na constância da lei antiga. Para o segundo sistema (fases processuais), o processo, embora uno, é uma soma de fases autônomas: postulatória; probatória; decisória e recursal. Cada uma dessas fases constitui-se de um conjunto inseparável de atos que, ao fim, formarão o processo como instrumento da jurisdição. Por último (sistema do isolamento dos atos processuais), o processo é uma unidade que busca um fim (sentença), mas os atos encadeados podem ser considerados isoladamente para a aplicação da lei nova. Para esse sistema, como a lei nova tem efeito imediato e geral e apanha o processo em seu desenvolvimento, mas respeita a eficácia e os efeitos dos atos já praticados na constância da lei velha, apenas os atos processuais que ainda tiverem de ser praticados serão alcançados pela disciplina da lei nova. É o sistema acolhido pelo nosso direito[14] segundo a regra “tempus regit actum”[15].

A decisão que manda ajustar a inicial ao §1° do art. 840 da CLT, com a redação da L. nº 13.467/2017, quando os fatos da lide e a propositura da ação foram anteriores ao seu advento, é arbitrária, ilegal e desafia mandado de segurança.


Notas

[1] Art. 840 - A reclamação poderá ser escrita ou verbal.

§ 1o Sendo escrita, a reclamação deverá conter a designação do juízo, a qualificação das partes, a breve exposição dos fatos de que resulte o dissídio, o pedido, que deverá ser certo, determinado e com indicação de seu valor, a data e a assinatura do reclamante ou de seu representante (negritei).

[2] Seção Especializada em Dissídio Individual.

[3] Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (redação dada pela L.nº 12.376/2010 à antiga “Lei de Introdução ao Código Civil — LICC”).

[4] Art.5º.

[5] Salvatore Satta. Direito Processual Civil.Editor Borsoi:RJ, 1973, 7ª ed., p.266.

[6] Satta, cit., p.270.

[7] “Art. 889 - Aos trâmites e incidentes do processo da execução são aplicáveis, naquilo em que não contravierem ao presente Título, os preceitos que regem o processo dos executivos fiscais para a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal”.

[8] Satta, cit., p.269.

[9] CPC, art.14.

[10]Moacyr Amaral Santos. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. Saraiva:SP, 1º vol., 15ª ed.,p.31.

[11] DL. nº 4.657/1942, art.6º.

[12] CPC/2015, art. 1.047: “As disposições de direito probatório adotadas neste Código aplicam-se apenas às provas requeridas ou determinadas de ofício a partir da data de início de sua vigência”.

[13] Moacyr Amaral Santos, cit., p.31/36.

[14] “Art.14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.

[15]“Art.1.046.Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973”(CPC).