O Servidor Público e o crime de desobediência previsto no artigo 330 do Código Penal Brasileiro


PorJeison- Postado em 30 novembro 2012

Autores: 
GOULART, Henrique Gouveia de Melo.

 

Introdução

O objetivo deste trabalho é de analisar se o servidor público, na acepção mais ampla, é capaz de cometer o crime de desobediência, previsto no artigo 330[1] do Código Penal Brasileiro – Decreto-Lei n 2.848, de 07 de dezembro de 1940.

O mesmo Código Penal, em seu artigo 327, traz o conceito de servidor público para efeitos penais, vejamos:

Funcionário público

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público. (Incluído pela Lei nº 6.799, de 1980)

Pela redação do dispositivo acima, é fácil perceber o elastecimento do conceito, muito mais amplo que o conceito de servidor público defendido pela doutrina administrativista.

Outro ponto que merece destaque é a localização topográfica do dispositivo dentro do Código Penal. O artigo 327 está localizado no “Capítulo I – dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral”, que por sua vez fica no “Título XI – dos crimes contra a administração pública”.

Passadas as considerações preliminares, avancemos às particularidades do assunto em tela.

Da conduta do servidor público

Um primeiro ponto a ser destacado diz respeito à localização topográfica do crime de desobediência. Tanto o conceito de servidor público (art. 327, CP) quanto o crime de desobediência ficam localizados “Título XI – dos crimes contra a administração pública”. Mas enquanto o conceito de servidor público está hospedado no “Capítulo I – dos crimes praticados por funcionário público contra a administração em geral”, o crime de desobediência fica inserido no “Capítulo II – dos crimes praticados por particular contra a administração em geral”.

À primeira vista, portanto, esse é um argumento que milita pela impossibilidade da prática do crime de desobediência pelo servidor público.

O Superior Tribunal de Justiça, nessa linha, já produziu alguns julgados que reconheciam a atipicidade da conduta do servidor público, no que se refere à suposta prática do crie de desobediência, verbis:

PENAL. PROCEDIMENTO CRIMINAL. INSTAURAÇÃO CONTRA PSICÓLOGO CONTRATADO POR PREFEITURA. ORDEM JUDICIAL. RECUSA. DESOBEDIÊNCIA. ATIPICIDADE.

Não configura o crime de desobediência o eventual descumprimento à ordem judicial quando esta é dirigida a quem não tem competência funcional para dar cumprimento às providências legais exigidas.

Os funcionários contratados por Prefeituras Municipais, no exercício de funções pertinentes aos serviços de saúde pública, atuam como agentes públicos, e nessa qualidade não cometem o crime de desobediência, pois tal delito pressupõe a atuação criminosa do particular contra a Administração.

Precedentes deste Tribunal.

Habeas corpus concedido.” ( RHC 9189 / SP – Ministro VICENTE LEAL - SEXTA TURMA- DJ 03/04/2000 p. 168).(sem grifos no original)

Ocorre que o mesmo STJ, mais recentemente, passou a reconhecer que o servidor público pode sim ser sujeito ativo do crime de desobediência. Vejamos:

CRIMINAL. RECURSO ESPECIAL. DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL, POR SECRETÁRIO DE SAÚDE DO ESTADO DE RONDÔNIA. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. POSSIBILIDADE DE CONFIGURAÇÃO. RECURSO PROVIDO.

O funcionário público pode cometer crime de desobediência, se destinatário da ordem judicial, e considerando a inexistência de hierarquia, tem o dever de cumpri-la, sob pena da determinação judicial perder sua eficácia. Precedentes da Turma.

Rejeição da denúncia que se afigura imprópria, determinando-se o retorno dos autos ao Tribunal a quo para nova análise acerca da admissibilidade da inicial acusatória.

Recurso especial provido, nos termos do voto do relator.

(REsp 1173226/RO, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 17/03/2011, DJe 04/04/2011) (sem grifos no original)

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ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO. PENSÃO POR MORTE. PARCELAS DEVIDAS APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO DO ACÓRDÃO QUE RECONHECE O DIREITO À INTEGRALIDADE. PRECATÓRIO. DESNECESSIDADE. DECISÃO DE CARÁTER MANDAMENTAL. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. SUJEITO ATIVO. FUNCIONÁRIO PÚBLICO. ADMISSIBILIDADE. CRIME DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. PRISÃO EM FLAGRANTE. IMPOSSIBILIDADE. LEI 9.099/95. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

1. A decisão que determina o pagamento da integralidade da pensão por morte possui caráter mandamental, motivo pelo qual a execução das parcelas vencidas após seu trânsito em julgado independe de precatório. Precedentes.

2. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento firmado no sentido da possibilidade de funcionário público ser sujeito ativo do crime de desobediência, quando destinatário de ordem judicial, sob pena de a determinação restar desprovida de eficácia.

3. Nos crimes de menor potencial ofensivo, tal como o delito de desobediência, desde que o autor do fato, após a lavratura do termo circunstanciado, compareça ou assuma o compromisso de comparecer ao Juizado, não será possível a prisão em flagrante nem a exigência de fiança. Inteligência do art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95.

4. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(REsp 556.814/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 07/11/2006, DJ 27/11/2006, p. 307) (sem grifos no original)

 Há que se ressaltar, no entanto, que o Tribunal da Cidadania parece restringir a configuração do crime de desobediência aos casos de descumprimento de ordem judicial.

E também não se pode afirmar, categoricamente, que o entendimento consolidado da Corte Superior é o de que o servidor público pode ser sujeito ativo do crime de desobediência, eis que os julgados mais recentes são todos da Quinta Turma.

Assim, para se afirmar que a posição do Tribunal passou a seguir essa orientação, a Sexta Turma (que no ano 2000 entendeu ser a conduta atípica) também deve apresentar uma mudança de entendimento.

Conclusão

A eficácia de uma decisão judicial está adstrita ao seu cumprimento. Em outras palavras, uma decisão judicial não cumprida é o mesmo que a ausência da própria decisão.

Para garantir tal medida, o Código Penal prevê a possibilidade de cometimento do crime de desobediência, nos exatos termos do art. 330. É importante ressaltar que o crime de desobediência pode se configurar quando há recusa injustificada no cumprimento de qualquer ordem emanada de servidor público, não apenas nos casos de decisões judiciais.

O Brilhante Ministro Hamilton Carvalhido[2], no julgamento do Habeas Corpus nº 17.121, ensina que “para a configuração do delito de desobediência, imprescindível se faz a cumulação de três requisitos, quais sejam, desatendimento de uma ordem, que essa ordem seja legal, e que emane de funcionário público”.

Mas a questão se torna um pouco mais complexa quando o descumprimento se dá por outro servidor público. Não é novidade que a administração pública, ainda que apresente uma melhora organizacional ano a ano, ainda se vê impossibilitada de dar pleno cumprimento a decisões judiciais.

Essa preocupação não fugiu aos olhos do poder judiciário, que passou a entender que o servidor público pode ser sujeito ativo no crime de desobediência, quando descumprir ordem judicial.

Mas não podemos deixar de registrar, como já advertido em linhas anteriores, que esse não é o entendimento consolidado da Corte Superior, mas apenas uma tendência de posicionamento daquele Sodalício.

Notas:

[1] Desobediência

Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:

Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

[2] HC 17.121/ES, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 04/09/2001, DJ 04/02/2002, p. 566

 

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