O processo coletivo e sua relação com a reserva do possível e a concessão de medicamentos


PorJeison- Postado em 25 fevereiro 2013

Autores: 
SILVA, Guilherme Ferreira.

 

RESUMO: O trabalho apresenta pontos conceituais acerca das ações coletivas latu sensu, diferenciando uma das outras. Também discorre a respeito do denominado princípio da reserva do possível, para que ao final seja analisada a aplicação de tal princípio frente as ações que versem sobre concessão de medicamentos. Por último, é feito uma relação destas ações com os procedimentos coletivos de ações estudado no início do trabalho, para que ao final haja uma crítica sobre tais relações.

 

Palavras-chave: Princípio da reserva do possível; Procedimentos coletivos; medicamento.

 

ABSTRACT: The paper presents conceptual points about collective actions in the broadest sense, differing from each other. Also talks about the so-called principle of reservation as possible, so that the end is analyzed applying this principle opposite actions that deal granting medicines. Finally, we made a list of these actions with the procedures of collective actions studied in early labor, so that at the end there is a criticism of such relationships.

 

Keywords: Principle of reservation as possible; collective Procedures; medicine. 


 

INTRODUÇÃO

 

O trabalho visa apresentar alguns pontos básicos sobre a temática de processos e direitos coletivos (latu sensu), tendo como objetivo específico distinguir as três principais modalidades, quais sejam, direitos coletivos (strictu sensu), direitos difusos e direitos individuais homogêneos.

 

Em seguida é trabalhado o princípio da reserva do possível, que está intimamente ligado à atuação da administração pública na efetivação de direitos sociais, assim, sendo um standard argumentativo muito usado nas ações coletivas, por isso, sua relação com os direitos coletivos. Adentrando na matéria da reserva do possível a pesquisa passa a posicionar-se se é legítima sua utilização quando o pedido for a concessão de medicamentos.

 

OS DIREITOS COLETIVOS NO DIREITO BRASILEIRO

 

Os direitos coletivos traduzem uma nova sistemática ao processo civil brasileiro, especialmente por ter uma essência privatista, como visto no artigo 6º do Código de Processo Civil, que possibilita o exercício do direito de ação apenas pelos titulares dos respectivos direitos.

 

A mudança surge principalmente com anseios trazidos pela mudança da Constituição Federal que, por meio de princípios e regras, extrapolou a noção de relações e direitos privados concebidos pelo modelo liberal, adicionando princípios como a da justiça distributiva, da igualdade material, da defesa dos direitos sociais, e pela primeira vez, acrescentou ao capítulo dos Direitos Fundamentais os direitos coletivos. Ademais, essa horizontalização dos direitos privados, conciliada com o princípio da inafastabilidade do pode judiciário, concluíram na tutela de anseios da sociedade como um ente coletivo, além da noção de individualidade. Assim, a Constituição de 1988 traz um novo marco na noção de normas coletivas, fortalecendo inclusive a figura do Ministério Público, e posteriormente as Defensorias Públicas, e os demais órgãos de representação social que possuem o ius postulandi de sua respectiva classe.

 

O que se percebe é que o Estado Democrático de Direito concebe mais forças ás instituições e á atuação do judiciário para solucionar quaisquer questões que têm um objeto jurídico protegido, independente se tal direito for uma norma programática, coletiva ou que os titulares não podem ser mensurados, é o controle do estado de forma democrática, inclusive contra sua própria pessoa se for necessário.

 

Nesse sentido, os Direitos Coletivos (lato sensu) representam uma conquista processual para a tutela contra a lesão de direitos os quais não é possível mensurar todos envolvidos, mas que ainda teremos a proteção dos mesmos. Dessa feita, órgãos como o Ministério Público e a Defensoria tornaram-se essenciais para o exercício postulatório destes direitos.

 

Assim, Didier elenca três características comuns nas ações coletivas: I – natureza difusa e relevância dos bens jurídicos envolvidos; II – dimensões e características da lesão; e III – o elevado número de atingidas(DIDIER Jr., p.41, 2009).

 

O mesmo autor destaca que tais ações não devem ser confundidas com litisconsórcio, sendo ela “razão de uma particular relação entre a matéria litigiosa e a coletividade que necessita da tutela para solver o litígio” (DIDIER Jr., p. 33). Em outras palavras, o que importa não é a subjetividade que liga o direito ao sujeito postulante, mas sim a relação material do objeto discutido e a legitimidade concedida pela lei.

 

DISPOSITIVOS LEGAIS

 

Por ser uma mudança recente na sistemática processual, e realizada de maneira paulatina, a novidade da tutela dos direitos coletivos ainda não é encontrada de forma concentrada em uma única lei, nem mesmo no Código de Processo Civil. Assim, alguns autores afirmam haver no ordenamento jurídico brasileiro um micro sistema processual que busca dar diretrizes aos processos desta classe, que apesar de não ter detalhamentos, é processado com o auxílio subsidiário do CPC. Outrossim, há diversos dispositivos esparsos em leis diversas, sendo as mais citadas e consensualmente mencionadas pela doutrina o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Ação Civil Pública, As leis Federais 7.347/85, 8.078/90 e a Lei 4.717/65 a Lei de Ação Popular.

 

No que tange ao uso do Código de Processo Civil é necessário lembrar que sua utilização deve atender à mudança de foco, ou seja, a saída do individual para o coletivo, sem a qual não é possível o perfeito andamento de tais procedimentos.

 

Tendo origem também com o advento da Constituição, o Código de Defesa do Consumidor trouxe a principal fonte de fomento e fundamento aos processos coletivos, principalmente nos artigos 81 a 90, que são usados por diversas matérias de direitos difusos, coletivos (strictu sensu) e individuais homogêneos. Também, o artigo 90 faz remissão à Lei de Ação Civil Pública - que é por excelência um instrumento de busca de direitos coletivos - para os casos que o micro sistema estabelecido no CDC não for suficiente.

 

OS DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS, DIFUSOS E COLETIVOS

 

Antes de descrevermos a particularidade de cada um desses tipos de direitos, é necessário distinguir direitos coletivos (lato sensu) de defesa coletiva de direitos.

 

Na primeira classe, os direitos têm sua subjetividade transindividual e a materialidade do direito como indivisível. Ou seja, há singularidade no direito, contudo, tem-se indeterminada a titularidade do mesmo, pertence a uma coletividade de pessoas, em síntese, à sociedade.

 

Enquanto isso, na defesa coletiva de direitos, ou os direitos individuais homogêneos, são direitos individuais, bem como aqueles protegidos pela sistemática predominante do código civil e de processo civil. A defesa desses direitos é identificada por um grupo de direitos subjetivos individuais que encontram em comum uma relação de afinidade, por isso homogeneidade, que permite realizar a defesa coletiva dos mesmos. Ou seja, é uma forma de facilitar, economizar e, em regra, agilizar o procedimento, porém, diferente da primeira classe apresentada, a materialidade dos sujeitos é plural e divisível.

 

Para melhor conceituá-los podemos utilizar as palavras do legislador, que com o artigo 81, parágrafo único, e incisos, da Lei 8.078/90 assim definiu

 

“I - são direitos difusos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II – são interesses e direitos coletivos os transidinviduais de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III – são direitos individuais homogêneos os decorrentes de origem comum.”

 

Ainda, podemos acrescentar na qualificação dos direitos individuais homogêneos o artigo 46 do CPC, que afirma serem os direitos derivados do mesmo fundamento de fato ou de direito ou que tenham, entre si, relação de afinidade por um ponto comum de fato ou de direito (ZAVASCKI, p.41, 2008).

 

A partir dessa conceituação, de análise da melhor doutrina e de quadro comparativo feito por Zavascki, segue o resultado teórico de cada um desses direitos.

 

DIREITOS DIFUSOS

 

Os direitos difusos são transindividuais, com indeterminação absoluta dos titulares, ou seja, não têm titular individual e a ligação entre os vários titulares difusos decorre de mera circunstância de fato, como morar na mesma cidade histórica, serem afetados por calamidade, serem todos de mesma nacionalidade, dentre outros. Sobre o aspecto objetivo eles são indivisíveis, pois não podem ser satisfeitos nem lesados senão de forma que afete a todos os possíveis titulares simultaneamente. Exemplos clássicos são os direitos ambientais previstos no art. 225 da CF/88, uma vez que, sua violação afeta não às pessoas determinadas e nem a uma classe de pessoas determináveis, mas a sujeitos dos quais é impossível nomeá-los, podendo ser afirmado que o meio ambiente não pertencem a ninguém, mas a todos.

 

Por esses motivos, os direitos difusos são insuscetíveis de apropriação individual; São insuscetíveis de transmissão, seja por ato inter vivos, seja mortis causa; São insuscetíveis de renúncia ou de transação; sua defesa em juízo se dá sempre em forma de substituição processual, razão pela qual o objeto de litígio é indisponível para o autor da demanda, que não poderá celebrar acordos, nem renunciar, nem confessar (CPC, 351) nem assumir ônus probatório não fixado na Lei (CPC, 333, parágrafo único, I), e a mutação dos titulares ativos coletivos da relação jurídica de direito material se dá com relativa informalidade jurídica ZAVASCKI, p. 41-43, 2008).

 

Dessa forma, a lei é quem enumera os legitimados para a proposição das ações de direitos difusos, revestindo instituições de uma legitimidade que não seria possível ser determinada pela sistemática processual clássica, tendo em vista a indeterminação dos sujeitos ofendidos.

 

Pode-se afirmar que a grande maioria dos direitos difusos decorre da tutela de direitos fundamentais, garantidos a todos brasileiros como direitos universais. Assim, temos grandes demandas difusas no que tange à classe dos direitos sociais, como direito à saúde, educação, moradia e afins. Sendo que, ao presente trabalho merece relevo a questão de medicamentos e assistência médica, que em determinados momentos terá o caráter de um direito individual, mas em outros será um direito iminentemente difuso por atingir a todos, inclusive, sendo parte da argumentação da aplicação do princípio da reserva do possível a impossibilidade de dar uma assistência médica perfeita a todos por ser a efetividade de tais direitos um “cobertor, que ao se cobrir a cabeça, descobre os pés”. Mas adiante a relação entre tais institutos jurídicos será melhor trabalhada.

 

DIREITOS COLETIVOS (STRICTO SENSU)

 

A respeito dos direitos coletivos é possível ser elencadas algumas características que os identifiquem. A começar pela transindividualidade, com determinação relativa dos titulares, ou melhor dizendo, os “donos” dos direitos são pessoas indeterminadas, mas determináveis por fazerem parte de um grupo. Sob o aspecto objetivo do direito, são eles indivisíveis, ou seja, não podem ser satisfeitos nem lesados senão em forma que afete a todos os possíveis titulares. Exemplo de fácil visualização é um desrespeito a toda uma classe de direitos trabalhistas. Têm-se como qualidade que são insuscetíveis de apropriação individual; São insuscetíveis de transmissão, seja por ato inter vivos, seja mortis causa; São insuscetíveis de renúncia ou de transação; sua defesa em juízo se dá sempre em forma de substituição processual, razão pela qual o objeto de litígio é indisponível para o autor da demanda, que não poderá celebrar acordos, nem renunciar, nem confessar (CPC, 351) nem assumir ônus probatório não fixado na Lei (CPC, 333, parágrafo único, I); e a mutação dos titulares ativos coletivos da relação jurídica de direito material se dá com relativa informalidade jurídica.[1]

 

Caso de exemplificação pode ser elencado aquele em que a Ordem dos Advogados do Brasil ajuíza ação com pretensão de tutelar um direito de seus associados. Assim, o direito é transindividual, pois podemos elencar que os titulares são aqueles inseridos no grupo, no caso os advogados, mas não necessariamente cada um está sendo violado em seu direito. Mais uma vez, a lei é quem específica o rol de legitimados, no caso, a entidade de classe, a Ordem dos Advogados do Brasil.

 

DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

 

Como definição dos direitos individuais homogêneos tira-se que são individuais, tendo identificação do sujeito, assim como relação entre ele e o objeto. Assim, há uma ligação entre todos os sujeitos e a origem comum entre os direitos. O aspecto objetivo dessa classe de direitos é identificado como divisíveis, vez que podem ser satisfeitos ou lesados os direitos de maneira individualizada, inclusive tem-se a possibilidade de um processo para cada indivíduo e respectivo pedido. Tal circunstância é corriqueira no direito do consumidor.

 

Assim pode-se qualificá-los como individuais e cabíveis, fazendo parte do patrimônio do titular; São transmissíveis, seja por ato inter vivos, seja mortis causa (em regra); São suscetíveis de renúncia ou de transação (salvo exceções); sua defesa em juízo se dá geralmente por seu próprio titular, assim a substituição processual imprescindível é de determinação legal.[2]

 

Para exemplificação, pode-se imaginar uma relação de consumo na qual centenas de consumidores fazem ao longo de um lapso temporal negócios jurídicos com uma construtora. Ocorre que, são identificados problemas comuns em todas as compras, quais sejam, um vício oculto decorrente do uso de um material de construção em comum. Há no caso uma dificuldade de formar litisconsórcio ativo por grande número de envolvidos, assim, o Ministério Público no intuito de tutelar o direito dos consumidores de forma homogênea poderá ajuizar em substituição processual e, uma vez bem sucedido o pedido, os interessados poderão exercer a execução da sentença. Tal modelo de substituição processual decorre tanto da hipossuficiência da relação quanto da facilidade processual e da capacidade do representante em produzir provas.

 

A RESERVA DO POSSÍVEL

 

Quando falamos em direitos coletivos estamos diretamente relacionando direitos constitucionais que necessitam de uma prestação positiva do Estado para sua efetivação, ao contrário de alguns direitos individuais, conhecidos como liberdades negativas, que são um não intervir da máquina estatal nas vidas dos cidadãos, os coletivos necessitam de uma ação positiva que efetive o que está abstrato nas normas constitucionais, ainda que, possam ser exigidos antes desta efetivação[3].

 

Ao discutirmos o atual cenário da politização do judiciário brasileiro, que necessita de atuação para efetivar normas programáticas e ao mesmo deve limitar-se à sua função dentro do sistema de tripartição dos poderes, efetivando o chamado checks and balances (freios e contra pesos), o princípio da reserva do possível é sempre aclamado. Claro, em um país de tamanhas mazelas, tal escusa é por vezes utilizada pelos poderes executivo e judiciário em conformidade com interesses por hora duvidosos e covardes, contudo, há aqueles que o usam em conformidade técnica idônea, o que não significa que concordemos com elas, mas não cumpre ao trabalho esmiuçar tal ponto.

 

A doutrina aponta que o princípio em questão teve sua utilização primária na Alemanha, na década de 60, em que o tribunal constitucional ao ser acionado em pretensão que visava dar efetividade às normas constitucionais de educação superior, respondeu aos pleiteantes no sentido de, ainda que o Texto Constitucional garanta a todos o direito à educação, o Estado tem limites financeiros e materiais que impossibilitam o acesso de maneira totalizante aos pleiteantes, e por isso a necessidade de processos de seleção e filtragem entre os “melhores” - um procedimento meritocrático.

 

A palavra chave da argumentação perpassa pela razoabilidade. Avocou o egrégio tribunal que, é reservado ao Estado argumentação racional, em que devem ser razoáveis suas diretrizes orçamentárias e decisões de políticas públicas, não sendo possível ao judiciário decidir pelo executivo em questões políticas, de mérito discricionário. Ou seja, além de limites materiais, há ainda a questão da razoabilidade das ações do executivo.

 

No que tange aos argumentos de razoabilidade, inseridos no princípio da reserva do possível, imprescindível apontar críticas à doutrina majoritária, que crê em uma ponderação de princípios, frutos da teoria de Robert Alexy, em os princípios devem ser ponderados[4], afirmam ter uma disputa entre um Direito Constitucional mais importante que o outro. Na verdade, em nosso entender, a solução mais adequada para tais conflitos necessita-se de uma análise do caso concreto, mas a orientação de como devem ser realizadas as decisões dessa materialidade abarca conceitos constitucionais mais complexos, os quais o poder executivo no momento de efetivação da norma, ou o judiciário na omissão deste, devem analisar o caso concreto, das previsões orçamentárias, de maneira tal que primariamente devem ser preservados os direitos essenciais à existência do ser (plano da redistribuição material como aponta Nancy Fraser), e posteriormente acrescentando dignidade[5] (plano da identidade/Status, como visto no debate entre Fraser e Axel honneth), em seguida, que as demais decisões orçamentárias sejam realizadas adequadamente com a Constituição, e por último, que sejam realizados “investimentos” estatais, concluindo o que o Estado Democrático de Direito veio mitigar, uma teoria de Estado Social com um Estado (neo)Liberal.

 

Voltando ao princípio central do nosso trabalho, marco em nossa jurisprudência foi a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45 de 2004, cujo relator foi o ministro Celso de Mello. Em tal ação de controle de constitucionalidade, o Partido da Social Democracia Brasileira questiona descumprimento de constitucionalidade na Lei de Orçamento Anual sancionada pelo presidente, passamos a analisar os principais pontos que nos interessa.

 

De início a Suprema Corte reconhece a possibilidade de atuação nos casos semelhantes, nos quais a omissão de políticas públicas, necessárias para efetivar o texto constitucional, não é executada. Sendo assim, o STF, nessa e outras decisões pacificou seu entendimento quanto a possibilidade de atuar tanto em casos de ações inconstitucionais por parte do administrador público, quanto pela omissão dos mesmos na efetivação de normas programáticas.

 

Superado esse entendimento, o Ministro Celso de Mello, passa explanar seu entendimento sobre a escusa do executivo, em reservar parte de seu orçamento anual para políticas que atendam à saúde conforme a Constituição e norma infraconstitucional anterior, sob a alegação da reserva do possível,

 

“Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.” (...) “A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível." (MELLO, ADPF 45. 2004)

 

Assim, corroborando com nosso entendimento, o ministro da Corte Maior, além de afirmar que o princípio da reserva do possível não pode ser encarado como uma arma contra o administrado, no qual o executivo escolhe ao seu critério, sem fundadas justificativas, por políticas de aplicação dos gastos públicos, omitindo-se em efetivar a Constituição Federal e seus princípios norteadores. Também explica que, ao tratarmos do mínimo existencial, não é possível colocarmos direitos de cunho distinto em primeiro lugar na aplicação. Ou seja, Direitos como saúde, educação, trabalho, moradia, entre outros, que são Direitos universalizáveis, que antecedem inclusive a dignidade do indivíduo, pois possibilitam a vida, devem ser aplicadas da forma mais imediata possível. Não sendo possível, ainda sim, o poder judiciário teria o poder de estipular prazo máximo, permitindo que estes gastos possam ser programados, planejados e executados.

 

A CONCLUSÃO SOBRE A RESERVA DO POSSÍVEL E A CONCESSÃO DE MEDICAMENTOS

 

Para encerrarmos a discussão sobre a reserva do possível, há de ser dito acerca da concessão de medicamentos, exemplo sempre tratado nas elucidações sobre tal princípio. Qual seja o debate, se na omissão do executivo em prestar medicamentos à população, cumprindo a obrigação constitucional de saúde aos cidadãos, o judiciário poderia interferir para obrigar o estado a cumprir seu papel? Ainda, considerando que o judiciário tenha esse poder, estaria o executivo/legislativo protegido pela reserva do possível, quando um remédio/tratamento médico for demasiadamente caro a ponto de comprometer o orçamento com gasto à saúde aos demais?

 

Diante da primeira indagação, o Superior Tribunal de Justiça já proferiu decisão confirmando o entendimento de que as normas programáticas da constituição têm eficácia imediata quando trata de aplicar sua execução por meio do administrador público. No caso de medicamentos, observou o ministro Humberto Martins, se imprescindível a concessão dos mesmos para garantir a vida do cidadão, não estaríamos diante de uma questão de mérito administrativo, mas sim um cumprimento da legalidade preceituada pela Constituição da República ao garantir o Direito à vida e à saúde, “A decisão que determina o fornecimento de medicamento não está sujeita ao mérito administrativo, ou seja, conveniência e oportunidade de execução de gastos públicos, mas de verdadeira observância da legalidade.” (RESP 874.630 STJ, 2006).

 

Diante da segunda indagação, ao falarmos de uma escolha administrativa, em que se protege o direito de muitos a terem medicamentos corriqueiros em detrimento da efetividade do direito de outro a ter um remédio extremamente oneroso para os cofres públicos, não podemos aceitar argumentos de tal conteúdo, pois implicam na aceitação de suprimir direito individual indisponível e de imediata aplicação.

 

Outrossim, sem tal condição, a própria existência é colocada em risco, e por isso, negar o direito à saúde é negar direito imprescindível para a razão do Direito, a vida. O que se defende, como dito na explicação da aplicação do princípio da reserva do possível, é que se não há possibilidade de aplicação imediata por ausência de recursos, é necessário que o judiciário estipule ao poder público prazo racionalmente aceito para adaptação, inclusive, que todas as esferas do poder público sejam concorrentes à matéria, uma vez que, como já dito, o direito à saúde extrapola a segurança financeira do Estado, sendo requisito para a vida e logo para a própria razão de ser do Direito.

 

Neste sentido, necessário que aqueles legitimados a propor as ações coletivas de direitos difusos, instituições que atuam em regulamentação e os três poderes exerçam suas funções estabelecidas legalmente, sendo que, havendo a ausência de um, os outros possam realizar o controle, efetivando a ideia de freios e contrapesos, que hoje, vai além dos três poderes, ou melhor, das três funções mais debatidas.

 

Um exemplo facilmente percebido é que, a maioria das ações que versam sobre pedidos de medicamentos ocorre de forma individual, o que traz como efeito colateral um descontrole orçamentário por parte do executivo, que coibido, acaba alegando a reserva do possível. Pode-se dizer que, uma solução para tal problema seria a interposição de ações civis públicas que visassem à efetivação de programas como um todo, como já mencionado, que fossem realizados projeto de longo prazo para a saúde, no qual estudos e agentes da sociedade poderiam debater e até mesmo trazer maior legitimidade democrática do que uma decisão em litígio que há apenas dois interessados (estado Vs indivíduo).

 

Daniel Sarmento (2009) traz exemplo de programa habitacional na África do Sul que o judiciário sabendo da limitação orçamentária do governo, mas também reconhecendo o direito universal e imediato da habitação fez exigência da criação de projeto habitacional que atendesse o preceituado na Constituição.

 

Assim, mesmo que de forma apenas introdutória, entendemos que a reserva do possível não pode ser alegada para eximir o Estado da prestação exigível, ainda que cientes da limitação material, o Estado, com uma máquina desenvolvida como hoje, deve se planejar, e um meio de exigir tais efetivações são as ações coletivas e uma postura racional do pode judiciário.

 

REFERÊNCIAS

 

ADPF 45 MC/DF. Relator: Min. Celso de Mello. Julgamento em: 29/04/2004, publicado no DJU de 04-05-2004 p. 45690

 

AGRESP 200900766912 - AGRESP - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – 1136549 – STJ

 

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

 

DIMDIER Jr., Fredie; ZANETI Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Volume 4. Salvador: jusPODIVM, 2009, 4ª Ed.

 

FERRAZ, Leonardo de Araújo. Da teoria à crítica: Princípio da proporcionalidade : uma visão com base nas doutrinas de Robert Alesy e Jürgen Habermas. Belo Horizonte: Dictum, 2009.

 

MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 169-186, jul./set. 2007.

 

RESP nº 874.630/RS STJ, Segunda Turma. Relator: Min. Humberto Martins, julgamento em: 21/09/2006, publicado no DJ de 02/10/2006 p. 626.

 

ROMS 200900372619 - ROMS - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 28962 – STJ

 

SARMENTO, Daniel. Interpretação constitucional, pré-compreensão e capacidades institucionais do intérprete. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Org.). Vinte anos da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, pp. 311-322.

 

ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, 3ª Ed.

 

Notas:

[1] Idem.

[2] Idem.

[3] Tal conceituação pode ser problematizada, mas para efeitos didáticos preferimos optar por esta análise, mesmo conscientes que toda classe de direitos exige uma prestação estatal e também presume determinadas abstenções do Estado.

[4]          Leonardo Ferraz, em sua obra sobre o princípio da proporcionalidade, faz de maneira única tal crítica. Demonstra tanto na teoria como na prática, como esse argumento torna as decisões uma carta branca para uma nova ditadura, a do judiciário, demonstra em um mesmo tribunal – o STF, a utilização de uma fórmula matemática na aplicação desse princípio, o que possibilita duas decisões antagônicas, como se ciência exata fosse. É inadmissível no atual paradigma estatal permitirmos que medição de valores sejam dadas à um grupo pequeno de pessoas (onze ministros por ex.), sem a análise adequada de discursos pragmaticamente realizados, seria uma volta aos tempos de Santo Agostinho, no qual o clero tinha o poder divino de interpretar o correto e os bens de maior valor, sendo agora os interpretes divinos meros homens de pecado e notório saber jurídico.

[5]          Em resposta à essa onda de decisões judiciárias fundadas na dignidade da pessoa humana, entende-se que, é impossível discutir dignidade em planos de consolidação da moral do sujeito se não houver um mínimo material que dê condições de autonomia deste, permitindo ao mesmo racionalizar, livrar-se de ideologias impostas por aqueles que detém instrumentos de controle social. A questão da dignidade hoje nada mais é que um reflexo do individualismo, resultado da pós-modernidade.

 

Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.42180&seo=1>