O procedimento dos crimes funcionais cometidos por funcionários públicos


PorFernanda dos Passos- Postado em 31 outubro 2011

Autores: 
SANDOVAL, Alexandre Presswell

Introdução

O Capítulo II, Título II do Código de Processo Penal brasileiro – Decreto Lei no 3.689, de 03 de outubro de 1941 – normatiza em seus seis artigos o procedimento e o julgamento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos.

O capítulo em estudo trata da peculiaridade do processamento e dos julgamentos dos crimes cometidos por funcionários públicos em decorrência de sua função, trazendo especialmente a peculiaridade que faz com que o Código de Processo Penal distinga o procedimento especial em questão do procedimento padrão trazido pelo mesmo Código.

A peculiaridade refere-se à existência de uma fase prévia ao recebimento da denúncia ou pela queixa por parte do juiz, fase essa, que pode acarretar na rejeição da denúncia por parte do juiz. Ademais, caso a queixa ou a denúncia seja recebida, conforme artigos 517 e 518 do Código de Processo Penal, o acusado será citado e a Instrução Criminal será regida pelo procedimento comum previsto no mesmo código.

1 Do Conceito de Funcionário Público

Para fins penais, o conceito de funcionário público se encontra no Art. 327 do Código Penal, qual seja:

"Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública."

Pela breve leitura do dispositivo legal acima, entende-se que, para fins penais, funcionário público é toda pessoa física que, embora transitoriamente ou sem receber contraprestação financeira pelo serviço, executa atividade típica da Administração Pública.

Importante ressaltar que militares, embora exerçam atividade típica da Administração Pública, não estão sujeitos ao conceito estudado acima, vez que os servidores militares possuem lei mais específica, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, submetendo-se, portanto, aos procedimentos previstos nestas leis.

2 Da Competência para Julgar os Crimes Cometidos por Funcionários Públicos em Decorrência de sua Função

Conforme nota de aula ministrada pelo professor Mário Savéri Liotti Duarte Raffaele, a competência para processar e julgar os crimes cometidos por funcionários públicos será dos juízes de direito, devendo-se observar apenas a qual unidade federativa o funcionário público é filiado.

Por exemplo, caso o funcionário público seja empregado da União, Territórios ou Distrito Federal, a competência para julgar e processar a denúncia será de juiz de 1º grau da Justiça Federal, no entanto, caso o funcionário público tenha sua relação trabalhista ligada a Estado membro ou Município, a competência para julgar o caso será de juiz de 1º grau do Tribunal de Justiça daquele Estado.

Em concordância com o acima exposto, segue redação do Art. 513 do Código de Processo Penal:

"Art. 513.  Os crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, cujo processo e julgamento competirão aos juízes de direito, a queixa ou a denúncia será instruída com documentos ou justificação que façam presumir a existência do delito ou com declaração fundamentada da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas"

3 Do Procedimento Especial Previsto Pelo Código de Processo Penal

O procedimento penal comum de primeira instância, seja no rito ordinário ou sumário, não admite oitiva do acusado antes de ser admitida a denúncia. Exceção a essa regra é o procedimento em estudo, qual seja, o procedimento especial previsto para funcionários públicos que cometem crimes afiançáveis em decorrência de sua função.

O caput do Art. 514 do Código de Processo Penal, que se insere no Capítulo que trata do procedimento e julgamento dos crimes cometidos por funcionários públicos, prevê:

"Art. 514.  Nos crimes afiançáveis, estando a denúncia ou queixa em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do acusado, para responder por escrito, dentro do prazo de quinze dias."

Conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), a falta de notificação do acusado para apresentar a resposta prevista no artigo acima acarretará na nulidade do processo, conforme RT 572/412, in verbis:

"Artigo 514 do CPP. Falta de notificação do acusado para responder, por escrito, em caso de crime afiançável, apresentada a denúncia. Relevância da falta, importando nulidade do processo, porque atinge o princípio fundamental da ampla defesa. Evidência do prejuízo."

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem compartilhando do mesmo entendimento, conforme RSTJ 34/64-5:

"Recurso de habeas corpus Crime de responsabilidade de funcionário público. Sua notificação para apresentar defesa preliminar (art. 514, CPP). Omissão. Causa de nulidade absoluta e insanável do processo. Ofensa à Constituição Federal (art. 5º., LV). Nos presentes autos, conheceu-se do recurso e deu-se-lhe provimento, para se anular o processo criminal a que respondeu o paciente, pelo crime do artigo 317 do CP, a partir do recebimento da denúncia (inclusive), a fim de que se cumpra o estabelecido no artigo 514 do CPP."

O procedimento correto a ser adotado, conforme previsto no Art. 514 do Código de Processo Penal, é, que o juiz faça uma verificação anterior à notificação do funcionário infrator. Não estando presentes na denúncia ou queixa as formalidades necessárias, caberá ao juiz não recebê-la, gerando coisa julgada formal, de maneira que vencido o vício a demanda poderá ser novamente proposta. Ainda quanto ao não recebimento da denúncia, cumpre ressaltar que apesar da lei prever o não recebimento da mesma devido a sua forma, não há empecilho para que o juiz rejeite a acusação caso seja evidenciada a extinção da punibilidade.

Recebida a denúncia, caso o crime seja afiançável, o juiz notificará o funcionário público acusado para que o mesmo apresente resposta por escrito dentro de quinze dias. Conforme Art.515 do CPP, durante os quinze dias concedidos de prazo para que o funcionário público ofereça resposta, os autos ficarão armazenados em cartório, onde poderão ser examinados pelo infrator ou por seu defensor.

Recebida a resposta, o juiz decidirá se receberá ou não a denúncia e irá proceder com base na redação do Art. 516 do Código de Processo Penal, qual seja:

"Art. 516.  O juiz rejeitará a queixa ou denúncia, em despacho fundamentado, se convencido, pela resposta do acusado ou do seu defensor, da inexistência do crime ou da improcedência da ação."

Infere-se da norma acima que a denúncia ou queixa será rejeitada quando o juiz se convencer pela resposta do acusado ou de seu defensor, no entanto, caso a denúncia ou queixa seja recebida, o funcionário público infrator será citado para o procedimento de instrução criminal normal, que deverá ser iniciado conforme Art. 517 do Código de Processo Penal.

4 Considerações Finais

Funcionário público é a pessoa física contratada para prestar um serviço à Administração Pública, é um agente do Estado e, conforme caput do Art. 37 da Constituição, se submete, dentro outros, ao princípio da legalidade.

O princípio da legalidade no Direito Administrativo possui uma conotação diferente do princípio constitucional normatizado no inciso II do Art. 5 da Constituição Federal que diz que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Entende-se do princípio constitucional citado a delimitação da liberdade do povo, que se torna relativa a partir do momento que ele pode fazer tudo, menos o que a lei proíbe. No entanto, para o Direito Administrativo, o princípio da legalidade possui uma interpretação diversa que, segundo o Prof. Leandro Cadenas:

"(...) determina que, em qualquer atividade, a Administração Pública está estritamente vinculada à lei. Assim, se não houver previsão legal, nada pode ser feito. A diferença entre o princípio genérico e o específico do Direito Administrativo tem que ficar bem clara (...). Naquele, a pessoa pode fazer de tudo, exceto o que a lei proíbe. Neste, a Administração Pública só pode fazer o que a lei autoriza, estando engessada, na ausência de tal previsão. Seus atos têm que estar sempre pautados na legislação."

Percebe-se da lição acima citada que os agentes da Administração Pública, funcionários públicos, possuem uma sujeição mais rigorosa a lei, ao passo que enquanto a população em geral pode fazer tudo que não é proibido por lei, o funcionário público, em relação ao exercício de sua função, pode fazer apenas aquilo que é previsto em lei.

O Código de Processo Penal prevê no Capítulo II de seu Título II um procedimento especial, um benefício em relação ao procedimento comum, para o processamento e julgamento de crimes cometidos por funcionários públicos em exercício de suas funções. Conforme acima discutido, o princípio da legalidade possui uma conotação mais severa para funcionários públicos quando comparado com o princípio aplicado aos populares em geral. Portanto a previsão legal para um procedimento que contém um benefício, em relação ao procedimento a que os populares se submetem, para os crimes cometidos por funcionários públicos em decorrência de sua função, conflita com o preceito constitucional da legalidade e com o princípio da legalidade previsto para o Direito Administrativo.

Assim, aufere-se deste estudo que o Capítulo II do Título II do Código de Processo Penal esta em total contramão no que se refere ao diverso entendimento do princípio da legalidade, devendo, portanto, ter a sua aplicabilidade cessada, uma vez que prevê um benefício procedimental justamente para aqueles que se submetem mais rigorosamente a lei, as suas limitações e a sua aplicabilidade estrita e correta.

5 Referências

RAFFAELE, MÁRIO SAVÉRI LIOTTI DUARTE. Notas de Aula. Aula Ministrada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Campus Praça da Liberdade. Dia 19/10/2011. Acervo Particular.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo. Atlas S.A., 2009. Localização:Biblioteca PUC Minas – n. de chamada 35 D536da 22.ed.

CADENAS, Leandro. Princípio da Legalidade. Localização: http://www.algosobre.com.br/direito-administrativo/principio-da-legalida...