O novo regime de precatórios, estabelecido pela Emenda Constitucional de nº 62/2009, sob a ótica da constitucionalidade material


Porwilliammoura- Postado em 18 fevereiro 2013

Autores: 
ANDRADE, Uriel Porto

A Emenda 62 consagra a imoralidade pública, desprezando a autoridade das decisões judiciais, bem como a separação dos poderes, e sujeitando os credores de precatório a uma via crucis sem precedentes, tudo isso com fundamento nas velhas “razões de Estado”.

Resumo: A Emenda Constitucional de nº 62, de 10 de dezembro de 2009, instituiu um novo regime de pagamentos de precatórios pela Fazenda Pública, Federal, Estadual, Distrital e Municipal. Tal emenda alterou o art. 100 da Constituição Federal, e acrescentou o art. 97 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A Fazenda Pública possui ante o particular, diversas prerrogativas processuais e materiais, tendo em vista à supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Com a edição da Emenda Constitucional 62/2009, foram inseridas modificações substanciais na forma de pagamento, pela Fazenda Pública, de débitos oriundos de sentenças judiciais condenatórias passadas em julgado, criando, não obstante as já existentes, mais prerrogativas aos entes federados na forma de adimplemento de seus débitos. A Emenda Constitucional em comento definiu em seu bojo, prerrogativas à Fazenda Pública tais como: compensação obrigatória dos débitos da entidade devedora, com eventuais créditos que possua em face da parte ex adversa; eliminação da ordem cronológica de pagamentos dos precatórios; aplicação dos dispositivos contidos na Emenda em tela, sobre precatórios pretéritos à entrada em vigência desta; regime especial de parcelamento do débito proveniente de precatório em até 15 anos; dentre outras vantagens que serão apreciadas a frente. As prerrogativas supracitadas, conferidas à Fazenda Pública, mostram-se sobremodo lesivas aos credores, e afrontam os princípios constitucionais mais basilares que norteiam e sustentam um Estado Democrático de Direito. Destarte, propõe-se sob a ótica da constitucionalidade material, a análise da Emenda Constitucional 62/2009 em cotejo com os princípios constitucionais vigentes.

Palavras-chave: Emenda Constitucional 62/2009; Constitucionalidade Material; Inconstitucional; Precatório; Fazenda Pública; Princípios Constitucionais.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1 PRECATÓRIO JUDICIAL: ORIGEM HISTÓRICA E CONCEITUAÇÃO. 2 PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E PODER REFORMADOR.. 3 A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 62/2009. 3.1 INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 62/2009. 4 FUNDAMENTOS DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 62/2009. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

A presente monografia tem por escopo o estudo da Emenda Constitucional nº 62/2009, que estabeleceu um novo regime de precatórios, sob o prisma constitucional. O foco da pesquisa é examinar a constitucionalidade material da referida Emenda, analisando-a à luz dos princípios constitucionais vigentes.

A problematização levantada na pesquisa é de grande interesse social e estatal, sendo de vultosa importância o deslinde em torno da compatibilidade/constitucionalidade da Emenda em comento, em face dos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito brasileiro, eis que a resolução da quaestio que se levanta, poderá gerar transformações radicais na forma de adimplemento, pela Fazenda Pública, dos créditos oriundos de decisão judicial transitada em julgado em prol de seus credores.

Assim tem-se o seguinte problema, há compatibilidade/constitucionalidade entre o novo regime de precatórios, instituído pela Emenda Constitucional de nº 62/2009, e os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito brasileiro? Ao que se responde, em sede de hipótese, que não há compatibilidade/constitucionalidade entre o novo regime de precatório, instituído através da Emenda Constitucional de nº 62/2009, e os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito brasileiro. A Emenda Constitucional nº 62/2009, de forma clara, é contrária aos princípios constitucionais vigentes.

No tocante aos objetivos da pesquisa, tem-se o objetivo geral de demonstração da inconstitucionalidade material da Emenda 62/2009, em face dos princípios existentes na Constituição Federal de 1988. Dentre os objetivos específicos incluem-se o cotejo da referida Emenda com os princípios constitucionais vigentes; e a análise sob a ótica material, considerando a doutrina, julgados e os princípios constitucionais, da inconstitucionalidade da referida Emenda.

Justifica-se o presente trabalho pelo ganho jurídico, social e pessoal, eis que eventual inconstitucionalidade demonstrada com o presente trabalho, pode ser um passo para que a sociedade brasileira se mobilize no sentido de não se conformar com a lesão aos seus direitos mais basilares, estabelecidos pelo constituinte originário. E ainda, o projeto em comento tem cunho didático, possibilitando não só a análise científica da matéria, mas também a aplicação do estudo em eventual instrução processual.

A metodologia utilizada no presente trabalho é do tipo teórico-dogmática, na qual o levantamento dos dados é feito por meio de doutrinas, jurisprudências e da legislação pertinente ao caso.

O setor do conhecimento que o trabalho abarca é o transdisciplinar, considerando que o Direito Constitucional (área de concentração), encontra-se arraigado nos demais ramos do direito.

O método de pesquisa desenvolvido é o dedutivo, partindo-se de uma premissa geral para uma particular, sendo os princípios constitucionais a premissa geral e basilar, da qual se iniciará a análise específica do sistema de pagamento via precatório judicial, estabelecido pela Emenda Constitucional 62/2009.

O primeiro capítulo tratará da conceituação e origem histórica do instituto do precatório judicial.

O segundo capítulo abordará brevemente o poder constituinte e o poder reformador, conceituando tais institutos do direito constitucional e demonstrando a limitação encontrada pelo poder reformador no poder constituinte originário.

O terceiro capítulo versará acerca das principais inovações trazidas pela Emenda Constitucional de nº 62/2009.

E o quarto e derradeiro capítulo aventará sobre os fundamentos da inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 62/2009, cotejando-a com os princípios constitucionais vigentes.

 


1 PRECATÓRIO JUDICIAL: ORIGEM E CONCEITUAÇÃO

Em primeiro momento, insta trazer à baila a etimologia da palavra precatório, que nos dizeres de MARCELO GADELHA, tal palavra advém do latim, precatoriu, e o verbo precatar significa: colocar de sobreaviso, prevenir, acautelar[1]. Desta forma, a Fazenda Pública fica acautelada orçamentariamente, de que terá que arcar com débito oriundo de sentença condenatória transitada em julgado.

No tocante à conceituação do instituto, mister trazer à colação a lição de DE PLÁCIDO E SILVA:

(...) Precatório também é, no Direito Processual, a carta de sentença remetida pelo juiz da causa ao presidente do Tribunal para que este requisite ao Poder Público, mediante previsão na lei orçamentária anual, o pagamento de quantia certa para satisfazer obrigação decorrente de condenação das pessoas políticas, suas autarquias e fundações.[2]

Em mesmo sentido, segue a esclarecedora preleção de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR:

Os bens públicos, isto é, os bens pertencentes à União, Estado e Município, são legalmente impenhoráveis. Daí a impossibilidade de execução contra a Fazenda nos moldes comuns, ou seja, mediante penhora e expropriação. Prevê o Código de Processo Civil, por isso, um procedimento especial para as execuções por quantia certa contra a Fazenda Pública, o qual não tem a natureza própria de execução forçada, visto que se faz sem penhora e arrematação, vale dizer, sem expropriação ou transferência forçada de bens. Realiza-se por meio de simples requisição de pagamento, feita entre o Poder Judiciário e Poder Executivo, conforme dispõem os arts. 730 e 731 do Código de Processo Civil.[3]

O instituto do precatório judicial teve início com o advento da Constituição Federal de 1934, sendo eminentemente brasileiro. Surgiu pela necessidade de se implantar um meio coercitivo ao Estado, para o pagamento de suas dívidas ante os credores; eis que o princípio da inalienabilidade dos bens públicos, pré-existente ao instituto do precatório judicial, e já adotado pelo Estado Brasileiro, tolhia o direito dos credores na obtenção de seus créditos, bem como deixava à livre e espontânea vontade do Estado, a satisfação de seus débitos.

O precatório judicial surgiu como instrumento moralizador à época, visando impedir práticas arraigadas ao Poder Público, tais como, a obtenção de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função (tráfico de influência, art. 332, CPB[4]), patrocínio de interesses privados perante a Administração Pública, valendo-se da qualidade de funcionário (advocacia administrativa, art. 321, CPB[5]) e demais excessos perpretados tanto por agentes/funcionários públicos, como por particulares.

Nesta senda, cito a venerável lição histórica de CASTRO NUNES, in verbis:

Suas origens estão no Ante-Projeto do Itamarati, de onde passou a Constituição de 34, visando, com base em antecedentes conhecidos, coibir a advocacia administrativa que se desenvolvia no antigo Congresso para obtenção de créditos destinados ao cumprimento de sentenças judiciárias. Não raro, deputados levaram o seu desembaraço ao ponto de obstruírem o crédito solicitado, entrando no exame das sentenças, prática viciosa de que dá notícia o sr. Carlos Maximiliano no seguinte comentário: ‘Este (o Congresso), provocado por proposta de um dos seus membros ou por mensagem do Executivo a votar verba para o cumprimento de sentença, examinava os fundamentos desta e, se lhe não agradavam, negava o crédito solicitado. Assim se sobrepunha um julgamento político ao Judiciário; era um poder exautorado no exercício pleno de suas funções.’[6]

Na mesma toada, acerca da origem de tal instituto, assevera DANTAS apud MACIEL-GONÇALVES e CARVALHO FONSECA:

O sistema jurídico brasileiro tem características únicas. Embora houvesse nascido do sistema português, com profundas raízes do sistema romano-germânico, também foi influenciado pelo sistema dos países da common law, terminando por adotar-lhe o modelo da unicidade de jurisdição, ao qual lhe emprestou características próprias, únicas mesmo, em razão da amplitude que se lhe atribuiu. Em razão disso, cobra importância apurar-se como e por que surgiu entre nós o instituto do precatório requisitório, que ganhou tal relevo a ponto de ser disciplinado pelo próprio texto constitucional. (...) Como dado mais instigante da criação do precatório  - que revela mesmo a decisiva contribuição dos juízes do I ° grau em sua formulação - vem descrito por este autor, com base no que havia colhido por Martinho Garcez, que por sua vez cita Morais Leite Velho, em obra a que já fizera referência, a respeito do registro de um litígio ocorrido na corte brasileira, entre um particular e uma Câmara Municipal, onde se identifica o surgimento do precatório na sua forma mais rudimentar, criado e imaginado por um JUIZ, diante de um problema surgido na execução da sentença: “Nestas condições, o exeqüente invocou a intervenção do juiz junto ao governo, pedido que motivou o ofício sujeito por V. Exa à consideração deste ministério, e no qual solicita ao juiz de direito da 2° Vara Comercial, que o governo ordene ao Presidente da IlmO Câmara que facilite a diligência, lançando o seu cumpra-se na precatória de vênia, que não foi devolvida, e consentindo em que os oficiais de justiça cheguem até a tesouraria da Câmara para efetuarem a penhora em questão, penhora contra a qual poderá protestar o tesoureiro como entender, deixando até de assinar o auto respectivo, o qual será assinado por duas testemunhas em seu lugar.” (...) Como se observa, o sistema de execução contra a Fazenda Pública através do precatório requisitório é criação exclusiva brasileira, que não tem similar em nenhuma parte do mundo.[7]

Desde o advento da Constituição de 1934, o instituto do precatório judicial foi mantido pelas demais Constituições Brasileiras, sofrendo algumas alterações no decorrer do tempo, sendo que as últimas, estabelecidas pela Emenda Constitucional 62/2009, modificaram contundentemente toda a sistemática de adimplemento de débitos públicos. Tais alterações inseridas no texto constitucional, a serem analisadas na presente pesquisa, mostram-se incompatíveis com os princípios constitucionais vigentes, bem como, afrontam a própria noção de Estado Democrático de Direito.

Desta forma, para apurar a inconstitucionalidade de tal Emenda, torna-se necessário uma noção preliminar de Poder Constituinte e Poder Reformador, o que se passa a fazer no capítulo subsequente.


2 PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E PODER REFORMADOR

Para melhor compreensão do presente trabalho, oportuno definir e diferenciar, brevemente, o poder constituinte originário do poder constituinte derivado.

O poder constituinte originário, nos dizeres de CARL SCHMITT, é a “vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando assim a existência da unidade política como um todo”[8].

Nesta toada, o poder constituinte originário pode ser definido, como a comunhão de vontades políticas tendentes a estabelecerem nova ordem, capazes por si só de constituírem um novo Estado no plano jurídico, sendo que o titular de tal poder, ainda que indiretamente, é o povo (lato sensu).

Mesmo entendimento é adotado por MICHEL TEMER, segundo o qual “(...) é a manifestação soberana de vontade de um ou alguns indivíduos capaz de fazer nascer um núcleo social.”[9].

Assim, a Constituição Federal de 1988, fora criada por esta força política motriz, poder constituinte originário, que segundo OLAVO ALVES FERREIRA:

(...) é inicial pelo fato de instaurar uma nova ordem jurídica; É juridicamente ilimitado, ou seja, não tem que respeitar os limites existentes no direito anterior; É incondicionado, não se sujeitando a qualquer regra de forma ou de fundo e é autônomo, pois a nova Constituição será estruturada de acordo com a determinação dos que exercem o poder constituinte.[10]

A partir do conceito de poder constituinte originário, surge a noção do poder constituinte derivado, que em verdade não se trata de poder constituinte, eis que tal poder fora constituído e delimitado pelo constituinte originário, surgindo assim uma antinomia etimológica.

Neste sentido segue o entendimento de NELSON DE SOUZA SAMPAIO, in verbis:

Não há melhor prova de que o poder de reforma é, por natureza, constituído, pois do contrário teríamos o absurdo de um órgão constituído – o Judiciário – a controlar um órgão constituinte. Esse fato aconselha-nos a empregar sempre as expressões poder revisor ou poder reformador, afastando como impróprias todas as outras em que entre a palavra constituinte, tais como as de poder constituinte constituído, poder constituinte derivado, poder constituinte instituído ou poder constituinte de segundo grau.[11]

Tal entendimento é acompanhado por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:

Deveras, todo poder constituinte é, por definição, originário. Assim, não há poder constituinte derivado, pois o que se rotula por tal nome é o poder de produzir emendas, com base em autorização constitucional e nos limites dela. Logo, coisa diversa da força inaugural e incontrastável, características indissociáveis do poder constituinte.[12]

Destarte, tal poder pode ser denominado como poder de reforma ou poder reformador, que teve previamente seus limites traçados pelo poder constituinte originário. De tal forma e sem maiores divagações, não há que se falar em impossibilidade de controle de constitucionalidade em norma “constitucional”, ou seja, criada e inserida pelo poder reformador, em que pese a presunção relativa (iuris tantum) de constitucionalidade da mesma.

Não fosse isso, desnecessário seriam os instrumentos processuais previstos nas Leis Federais 9.868 e 9.882, quais sejam: Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Direta de Constitucionalidade e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADI, ADC e ADPF).

Desse modo, extrapolando o Legislador os limites previamente determinados pela Constituição Federal, no exercício do poder de reforma, tal reforma (Emenda Constitucional) nasce eivada de inconstitucionalidade. Sendo o que se apresenta no caso da Emenda Constitucional 62/2009.