O entendimento do STF sobre lavagem de dinheiro no caso Eduardo Cunha


Portiagomodena- Postado em 27 maio 2019

Autores: 
Bárbara Lima Rocha Azevedo
Gabriel Freire Talarico

No dia 9 de abril, ao indeferir a ordem de Habeas Corpus pretendida pela defesa do ex-deputado federal Eduardo Cunha[1], a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgou impossível a consunção entre os crimes de lavagem de dinheiro e corrupção passiva na hipótese em que os valores ilícitos são recebidos em conta de trust fund no exterior.

O debate acerca da relação sensível entre os tipos penais em questão não é novidade na academia e na jurisprudência. Chama a atenção, contudo, a mudança drástica, repentina e perigosa de posicionamento da suprema corte sobre o tema.

Tenhamos em mente que, no julgamento da Ação Penal 470 (mensalão), notadamente no caso do deputado João Paulo Cunha (PT), auxiliado pela brilhante tese apresentada pelo professor Pierpaolo Bottini, o STF fixou o entendimento de que os atos dissimulados empregados no recebimento de valores ilícitos não constituem crime autônomo de lavagem de dinheiro.

Ainda, segundo a corte suprema, para o reconhecimento do crime de lavagem de dinheiro, não há distinção entre atos singelos e atos complexos, assim, qualquer ocultação, elaborada ou não, deve ser considerada típica. Portanto, prevalece no STF, ou ao menos prevalecia até o julgamento do writ em questão, o entendimento de que o encobrimento, qualquer que seja ele, quando for um meio indireto de recebimento, está contido no crime de corrupção passiva[2].

Surpreende, portanto, que em hipótese perfeitamente compatível com o entendimento estabelecido e observado desde o mensalão, não tenha o Supremo Tribunal Federal afastado de imediato a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro no caso do ex-deputado federal Eduardo Cunha.

Na ação penal referente, o emedebista carioca foi condenado pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas no contexto da aquisição pela Petrobras dos direitos de exploração do Bloco 4 na República de Benim, na África.

Como muito bem apontaram os impetrantes do Habeas Corpus julgado pela 2ª Turma, a tese que prevaleceu na condenação é a de que tanto a corrupção passiva como a lavagem, no caso, correspondem ao recebimento de valores na conta do trust fund Orion SP na Suíça, do qual, segundo o édito condenatório, o ex-presidente da Câmara dos Deputados “era instituidor, controlador e beneficiário”, ou seja, “pertenceria a EDUARDO CUNHA”.

Acontece que, se a conta que recebeu os valores pertencia ao próprio Eduardo Cunha, como reiteradamente apontou a acusação, não nos parece que a solução alcançada pelo STF seja a mais adequada.

Primeiro porque a lavagem de dinheiro na modalidade ocultação, indicada nos títulos condenatórios, pressupõe que a vantagem indevida seja distanciada do crime e, portanto, de seu autor, no intuito de escamotear a sua ocorrência. Para Pierpaolo Bottini[3], a punição da lavagem exige o afastamento entre o produto e o crime. Por certo, não presta para este fim o depósito em conta de titularidade do próprio autor do crime antecedente.

Em estudo organizado por Carla Veríssimo De Carli sobre a lavagem de dinheiro na modalidade ocultação, constata-se que, de fato, o depósito de valores ilícitos em conta própria do autor do crime antecedente, no caso corrupção passiva, é meio inidôneo para a configuração da lavagem, vale dizer, nessa hipótese, o autor não estaria ocultando a verdadeira propriedade desses valores[4].

O depósito em conta própria constitui o meio mais imprestável de disfarce da propriedade dos valores. Aliás, ao contrário do que se busca com os atos de lavagem, o caminho apontado pela acusação no caso Eduardo Cunha faz justamente demonstrar quem é o real proprietário do montante.

Quando muito, o depósito em conta de trust fund no exterior representa forma sub-reptícia de recebimento dos valores indevidos, o que, contudo, constitui mero exaurimento do crime de corrupção passiva na modalidade recebimento indireto, pela qual o ex-parlamentar foi condenado, tratando-se assim de simples post factum impunível.

Até mesmo porque a lavagem de dinheiro, por pressupor a ocorrência de um crime antecedente, exige o exaurimento deste. Em se tratando de corrupção passiva, antes do efetivo recebimento da propina, é impossível que o funcionário público lave o dinheiro, do qual simplesmente não tem sequer disponibilidade.

Como muito bem aponta Fábio Tofic[5], “é que não há lavagem de crime que ainda não se consumou ou, no caso da corrupção, não teve o seu exaurimento verificado. Ou melhor, propina só pode ser lavada depois que entra na esfera de disponibilidade do agente corrompido”.

Apontando firmemente nessa direção, a ministra Rosa Weber, quando do fatídico julgamento da Ação Penal 470, asseverou que “o ato configurador da lavagem há de ser, a meu juízo, distinto e posterior à disponibilidade sobre o produto do crime antecedente”[6].

No caso Eduardo Cunha, considerando verdadeiros os fatos trazidos na condenação, para fins do presente artigo, têm-se que tanto a corrupção passiva como a lavagem ocorreram com o recebimento de valores na conta do trust fund Orion SP. A situação revela, portanto, que os fatos foram simultâneos. Ora, se foram simultâneos, não houve um antecedente e um posterior. Acontece que sem fato antecedente, como visto, é impossível falar em lavagem de dinheiro.

De forma mais didática: se a lavagem só é possível após o exaurimento da corrupção passiva, aquela é impossível de ocorrer simultaneamente a esta. Para Tofic[7], “seria até mesmo hipótese de crime impossível pela impropriedade do objeto. Vale dizer, é impossível lavar o produto de propina que ainda não ingressou na esfera de disponibilidade do agente público”.

E não se diga que a lavagem corresponde ao depósito em conta de trust fund no exterior. Isso porque é legítima e lícita a pretensão de qualquer cidadão em depositar valores na conta que julgar melhor. Acontece que o Brasil não é signatário da “Convenção de Haia sobre a Lei aplicável ao Trust e a seu reconhecimento”, de tal sorte que esta modalidade de constituição financeira não foi incorporada ao Direito brasileiro. Assim, a legítima pretensão de depósito de valores em um trust só é possível no exterior. Não se trata de escolher receber os valores fora do Brasil. Na verdade, essa é a única possibilidade para quem decide receber os valores numa conta de trust.

Nesse compasso, tudo indica que não houve lavagem de dinheiro no caso Eduardo Cunha, bem como que a opção mais correta e mais respeitosa para com o entendimento tradicional e sólido, ao menos até então, do STF seria a absorção, face ao princípio da consunção, da lavagem pela corrupção passiva.


[1]Habeas Corpus 165.036/PR, 2ª Turma, min. relator Luiz Edson Fachin.
[2] CRUZ BOTTINI, Pierpaolo. Análise do conceito de lavagem de dinheiro na condenação de Lula. in Consultor Jurídico – ConJur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mar-05/pierpaolo-bottini-analise-lavagem-dinheiro-lula>. Acesso em: 3/12/2018.
[3]CRUZ BOTTINI, Pierpaolo. Análise do conceito de lavagem de dinheiro na condenação de Lula. in Consultor Jurídico – ConJur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mar-05/pierpaolo-bottini-analise-lavagem-dinheiro-lula>. Acesso em: 21/5/2019.
[4]VERÍSSIMO DE CARLI, Carla et alii. Lavagem de dinheiro – prevenção e controle penal. 2ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013.
[5]TOFIC SIMANTOB, Fábio. O crime de lavagem de dinheiro na operação “lava-jato” e o caso Lula. In Consultor Jurídico – ConJur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-mai-08/fabio-tofic-crime-lavagem-lava-jato-lula>. Acesso em: 21/5/2019.
[6]Excerto do voto da Ministra Rosa Weber, AP 470
[7] TOFIC SIMANTOB, Fábio. O crime de lavagem de dinheiro na operação “lava-jato” e o caso Lula. In Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-mai-08/fabio-tofic-crime-lavagem-lava-jato-lula>. Acesso em: 21/5/2019.