O edifício da proteção integral precisa de portaria


Pormarina.cordeiro- Postado em 19 março 2012

Autores: 
ARAÚJO, Denilson Cardoso de

 

Neste trabalho, sustentaremos – ao contrário de majoritário entendimento - que é prerrogativa do Juiz da Infância e da Juventude a edição de Portarias normativas.

"Que não triunfem os inertes!"

Norberto Bobbio


APRESENTAÇÃO

No presente trabalho, sustentaremos – ao contrário de majoritário entendimento - que é prerrogativa do Juiz da Infância e da Juventude a edição de Portarias normativas.

Em resumo, é produzida a seguinte argumentação:

1.O ECA situa-se junto aos direitos de 3ª geração. A mudança na conjuntura econômico-política internacional produziu conflitos entre norma e realidade, em prejuízo da primeira. Disso resultariam lacunas, cujo suprimento pelo Poder Judiciário demandaria "uma atitude hermenêutica ativa e uma jurisdição enérgica, por evidente que os novos direitos são direitos em processo, direitos em construção e aperfeiçoamento."

Para tanto, seria necessário "ler o ECA à luz da Constituição", portanto, orientado pela doutrina da proteção integral. Desta ótica, entende-se que a defesa da infância - inclusive, por meio da edição de Portarias – se sobrepõe ao que chamamos "redução do princípio da legalidade a uma leitura estreita da lei menorista";

2.É objetivo da doutrina da proteção integral, o que chamamos de "proteger sementes", para o que "é preciso chegar antes". O princípio regedor do ECA não é hierárquico, mas solidário. Necessário que, no vácuo de atuação de algum dos integrantes da "rede" de proteção, o Juiz menorista não permaneça inerte.

É diferenciado o papel do Juiz da Infância, cujas "tarefas especiais" exigiriam mecanismos adequados, dentre os quais se incluiria a Portaria Judicial. Das diferenças conceituais entre "influência e poder", ressalta, que embora com "temperos, parcimônia e justificação" é necessário ao Juiz exercício de poder.

Endossaremos a tese que vê o princípio da inércia como exceção na jurisdição menorista, dada a superioridade, no tema, do princípio da precaução.

Compete ao Juiz da área menorista exercício de poder de polícia de caráter especial, para o qual estaria implícito poder normativo subsidiário, que também situamos no quadro de poder discricionário do Juiz.

Improcede a preocupação dos que veriam no Juiz menorista um "’super-juiz’, sem controle", lembrando que o ECA instituiu, ao contrário do antigo Código de Menores, o recurso de apelação para controle jurisdicional, em par com a vigilância do Ministério Público, o controle correicional e disciplinar próprio da Magistratura, o monitoramento produzido pelos próprios magistrados da área, através de padrões estabelecidos em Portarias-Conjuntas e Enunciados.

3.O rol do art. 149 é exemplificativo, a partir de visão sistêmica da lei.

A Portaria, é "medida judicial", portanto, coberta pelo art. 153. A edição de Portaria normativas não fere o princípio da legalidade, a teor do art. 3º do ECA e da compreensão de que conforme ensina José Afonso da Silva, "o princípio da legalidade não exclui atuação secundária de outros poderes".

Há julgado em que o STJ, indiretamente, confirmou validade de Portarias menoristas.

Embora exceção, é prerrogativa do Juiz em geral. A atuação de ofício em diversas situações legalmente previstas, em prol da obtenção de justiça. Traz-se a prerrogativa, analogamente, à jurisdição menorista à luz do art. 6º do ECA.

4.A Portaria é como uma necessidade imposta pela realidade. O Juiz menorista exerceria função de liderança numa época de transição entre uma certa autocracia nos Códigos de Menores até a rede solidária do ECA.

É inevitável a figura da "portaria-meio", que explicita formas para atendimento de "obrigações-fim".

A Portaria é medida de economia processual e administrativa.

Se adequado e participativo, o modus faciendi adotado pelo Juiz realça o caráter pedagógico da Portaria.

Já para esta 2ª versão do trabalho, incluiremos proposta de cuja elaboração participamos, de formas de classificação, rito e controle para a edição de Portarias.

Concluiremos descrevendo algumas das mazelas que atingem nossa infância e juventude, fazendo um apelo pela preservação do ‘belo’ ético que, na infância, representa nosso futuro.

Em apêndices traremos as cópias das Resoluções do Conselho da Magistratura. A de nº 02/06, que vedou a edição das Portarias, e a de nº 30/06, em cujo processo, por honrosa deferência, o trabalho que segue foi incluído como peça de instrução.


INTRODUÇÃO

Embora a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro viesse referendando diversas Portarias de Juízos Menoristas, e a maioria dos julgados de infrações detectadas por contrariedade às mesmas as convalidasse, algumas Câmaras vinham entendendo como infringentes do princípio da legalidade quaisquer delas que extrapolassem as hipóteses do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8069/90).

Tal debate alcançou relevo com a aprovação, por unanimidade, da Resolução n. 02/06 [01] em que o Conselho de Magistratura do TJ-RJ impôs a revogação de todas as Portarias emitidas por Juízes da Infância e da Juventude que não se referissem às hipóteses do art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O assunto acabou superado, com a edição da Resolução 30/06, onde foram permitidas as portarias, desde que cumprindo rito e forma estabelecidos em seus anexos. Tal decisão surgiu de proposta dos magistrados do grupo temático organizado na AMAERJ, que tiveram a generosidade de permitir nossa colaboração, sendo este texto incluído entre as peças instrutórias da proposição.

Também na jurisprudência de outros Tribunais tem havido controvérsias, com acórdãos que ora anulam determinadas Portarias [02], ora entendem que mesmo para as do art. 149 haveria imposição de requisitos procedimentais prévios e justificativos (sindicância) [03]. Noutras decisões, Portarias polêmicas (como a que determina distância mínima entre escolas e fliperamas) [04] são validadas.

Na negativa, geralmente alega-se que o legislador não renovou a prerrogativa genérica de edição de Portarias e Provimentos pelo Juízo menorista, facultada no antigo Código de Menores (Lei 6697/79), revogado expressamente no art. 267 do ECA.

Entretanto, consideradas as características especialíssimas da magistratura menorista, pedimos vênia para a ousadia de entender que se trata de assunto por demais complexo, que a nosso ver comporta aprofundamento, pois, a prevalecer hipótese de tal restrição, teremos configurado sério óbice ao bom cumprimento das tarefas jurisdicionais e administrativas de natureza peculiar conferidas ao Juiz da Infância e da Juventude.

Entendemos que a doutrina da proteção integral é um todo lógico e articulado, uma edificação que, vista em sua completude, precisa de várias ações sincronizadas dos poderes do Estado e da sociedade. Com tal norte, defenderemos que o Juiz deve e pode editar Portarias normativas porque, ciente das características especiais da jurisdição que exerce, o fará coberto pela Constituição, amparado em lei e premido pelas exigências da realidade. Pedimos ainda tolerância com o pequeno trocadilho na titulação do trabalho, eis que ele bem se prestou a expressar a finalidade do texto. Da mesma forma que uma portaria de condomínio facilita entrada e saída seguras às unidades prediais, a Portaria Judicial pode ser uma porta de acesso para que o direito posto encontre a morada da justiça ou, dependendo de onde se olha, a saída para situações lacunosas que tantas vezes rondam o Juízo Menorista.

O espírito dado por Norberto Bobbio na frase com que epigrafamos o trabalho – "Que não triunfem os inertes![05], nos servirá para inspirar a defesa de que a inércia da jurisdição menorista, em nosso entendimento, não pode prevalecer, sob pena de, quando ocorrer provocação adequada, ser tarde demais para resgatar o que devia ter sido, na verdade, motivo de prevenção.


I – RELAÇÕES CONTEXTUAIS – ECA E CONSTITUIÇÃO FEDERAL/88

CONTEXTO DE SURGIMENTO DO ECA

A doutrina da proteção integral à infância e à adolescência que instrui o ECA é passo conseqüente no desenvolvimento histórico dos direitos humanos. Grosso modo, após a definição dos princípios da liberdade e da consolidação conceitual do princípio da igualdade, surge um corpo de mecanismos legais que melhor especifica e especializa [06] para segmentos determinados os direitos proclamados nas ‘gerações’ anteriores. Tratados e acordos internacionais viabilizam a construção jurídica em que se inserem o direito da criança, junto com direitos relativos a ecologia, idosos, minorias, consumidores, etc.

A Constituição Federal de 1988 acolhe tanto diretrizes resultantes de tal movimento global, quanto demandas próprias, acumuladas no longo processo de luta democrática vivido pelo país.

Disso resulta uma Carta de viés progressista, mas com evidentes desequilíbrios. Foram estabelecidas tanto as garantias de direitos amadurecidos, resultantes de novos contextos sócio-políticos, quanto a prescrição de direitos que, embora já assentes em filosofia, por não socialmente construídos, acabaram transferindo para a arena da hermenêutica e das atividades jurisdicionais e legiferantes, o "desempate" prático em torno de princípios e conceitos antagônicos. Tal ocorre em constituições como a nossa, classificadas pelos estudiosos como ‘compromissárias’ [07].

Daí que, jogados os embates da luta política, sempre caracterizada por grande fragmentação e corporativismo, a sociedade brasileira, naquele momento, fez do compromisso constitucional ao mesmo tempo um auto-retrato e um projeto. No auto-retrato, flagradas estão todas as complexidades e o contraditório resultante do acúmulo da experiência republicana nacional, que formam "o que somos". No projeto, o risco iluminado de um monumento a construir, ambicioso e generoso, talvez até um celeiro de sonhos para usufruto pelas gerações futuras, enfim, "aquilo que queremos ser". Que não se veja isso como demérito, afinal, como demarcou RUBEM ALVES, "... administrar os sonhos de um povo... não será esse, por acaso, o único sentido para uma Constituição?[08].

Entretanto, padecemos os males da constatação de que uma coisa é o que a sociedade idealiza e representa em projeto, outra é o que efetiva e pratica como construção. Muito do que se verificou foi que a luta de décadas, quando atingiu a possibilidade de alcançar status de norma legal, encontrou um mundo já modificado em suas estruturas. Assim, mecanismos de proteção social e controle do Estado sobre a atividade produtiva vieram à luz com atraso, encontrando um habitat hostil, onde já vicejavam, sob o signo da queda do Muro de Berlim, políticas predominantemente neoliberais. Tais políticas abriram ações ferozes contra o Estado, massacrado ao mínimo pretendido pela voracidade instantânea da globalização informatizada.

Alteraram-se estruturas de governo, revolucionaram-se costumes, arranjos familiares, formas de lazer inéditas surgiram. O ECA, sem que tenha sido totalmente implementado, já chega defasado à arena de combate. Sua espada tem pouco fio para a nova realidade. Principalmente porque a armadura completa exigia implementos fundados no aço da solidariedade. Esta, que foi massacrada pelo novo status quo de individualismo desenfreado e luta pela imediato da sobrevivência.

Países centrais, onde o welfare state se consolidara antes da vaga globalizante, ainda que com fissuras, puderam resistir relativamente melhor à ventania. O Brasil periférico, de semeadura social-democrática recente, viu seus canteiros de fracas raízes limitando o crescimento das novas proposições.

Hoje, muitos princípios e preceitos constitucionais padecem de ineficácia indevida por hermenêutica restritiva e desatualizada e/ou ausência de norma regulamentadora, que não se produz, freqüentemente por força da desconformidade com as totalizantes normas de mercado que passaram a reger a sociedade. Sendo o administrador também um intérprete constitucional, em sua ação no dia a dia da gestão pública diversos artigos foram tornados letra morta. O legislador não fez a norma reguladora do preceito, o poder público ignorou-o e o juiz formalista muitas vezes não o considerou, aguardando a regulamentação.

Não é que de tal quadro não se tenham produzido avanços, pois é inegável que, no sistema jurídico inaugurado pela Constituição de 1988, a simples existência de estatutos e institutos como o ECA, o CDC, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Cidade, o projeto do Estatuto da Igualdade Racial, e estruturas como o SUS e outros sistemas unificados em gestação (assistência social, cultura, etc), pôs em pauta discussões relevantes para o progresso da sociedade, municiando de ferramentas para defesa de seus direitos segmentos antes desprezados ou desprotegidos e dando respaldo aos bem intencionados agentes de mudança em sua luta desigual.

Mas os próceres do atraso, os agentes do conservadorismo, fartaram-se nas supostas lacunas, e deixaram ao relento da inação muitas providências e estruturas administrativas que viabilizariam a implementação de diversos direitos. A lógica da maximização do lucro não se harmoniza com a efetiva proteção aos desassistidos. Não interessa a um aparelho de governo ocupado por interesses privados o dispêndio da prioridade à infância, investimento claramente de caráter abstrato e de longo prazo. E a tímida literalidade do ECA permite que pedófilos cheguem ao quarto de nossos filhos, pela internet, sem que saibamos.

Mas os princípios e preceitos lá estão, a exigir nova hermenêutica. E, insistiremos, com força normativa e integradora do ordenamento, o que não devem ignorar os magistrados no exame dos casos trazidos a seu juízo. Leciona FÁBIO KONDER COMPARATO:

Os juízes não podem ignorar que todas as normas relativas a direitos humanos, inclusive as normas de princípio, são de aplicação direta e imediata. (...) Por conseguinte, quando estiver convencido de que um princípio constitucional incide sobre a matéria trazida ao seu julgamento, o juiz deve aplicá-lo, sem necessidade de pedido da parte". [09] (grifo nosso)

Tal se aplica, como à frente relembraremos, inclusive a eventuais lapsos ou supostos confrontos entre o art. 227 da Constituição e as disposições do ECA, que especializou em lei a vontade do Constituinte, sem entretanto, a exaurida. A necessidade de efetivar a proteção integral, o papel, hoje a cargo dos juízes, mais que de tutela, de promoção dos novos direitos, parecem não se coadunar com a restrição total à edição de Portarias pelo Juiz Menorista. A acolher-se a restrição, ter-se-á clara lacuna normativa a ser resolvida, eis que a minúcia do ECA não cobre todas as hipóteses abrangidas pelo art. 227 da CF/88.

PREENCHIMENTO DE LACUNA PELO PODER JUDICIÁRIO

Para sanar parte do problema das supostas lacunas, o Poder Judiciário tem sido chamado a atuar [10]. Tal circunstância torna necessária uma atitude hermenêutica ativa e uma jurisdição enérgica, por evidente que os novos direitos são direitos em processo, direitos em construção e aperfeiçoamento.

Obrigam-se, os operadores do direito antenados com o caráter teleológico do ordenamento, à revisão da estática positivista, em favor de uma postura que veja os sistemas jurídicos não como rígidas estruturas hierárquicas e verticais, mas sim como ‘teias jurídicas’ (como se depreende do pensamento de Norberto Bobbio), que se expandem e interligam em todas as direções, garantida, ao centro, a primazia constitucional, com relevo para os princípios fundamentais e os objetivos da República, dentre os quais sobressai a meta de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (art. 3º, I).

Há, por vezes, que abandonar a tese do silogismo rígido, para buscar a decisão justa, para cuja fundamentação podem contribuir um tratado internacional invocado em complemento a uma lei estadual, e, acima de tudo, um princípio constitucional que se soma a um julgado federal para cobrir imprecisão ou inadequação de normativa estadual.

Na tradição dogmática que preside as práticas judiciárias pátrias tal concepção ainda pode agredir a sensibilidade de muitos ‘matemáticos’ do Direito. Muitos kelsenyanos – do Kelsen de primeira lavra – subsistem, no país do "vale o escrito", a imaginar que "direito, para o jurista, deveria ser encarado como norma, não se misturando com fato social[11]. Assim, rigidez, neutralidade e forma seriam sinônimos de Direito. Romper com essa tríade conceitual seria romper com o próprio Direito.

Entretanto, o operador deve ter sempre em mente o conhecido dito que se alçou a brocardo jurídico, em que EDUARDO CÓUTURE sabiamente recomenda: "quando encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça". [12] Ou seja, o Direito não tem significado se não for uma ferramenta de justiça. E para atingir esse fim maior, é função do julgador valorar o caso concreto frente à norma posta.

Com tal constatação partiu o eminente Miguel Reale, para consagrar sua formulação de que o direito é fato, valor e norma. Ao pôr a norma, o legislador valora comportamentos em face da cultura e objetivos de uma sociedade. Após desvendar a exatidão de tais conexões pelo caminho hermenêutico, cabe ao julgador valoração própria, que atualize os vínculos da norma ao caso concreto, num trânsito necessário entre o objetivo (norma) e o subjetivo (hermenêutica) e deste (atualização hermenêutica), novamente àquele (aplicação concreta).

O subjetivo não pode, por óbvio, prescindir do humano. E o humano é, necessariamente histórico, contextualizado. Por isso é que computadores nunca produzirão julgados, o que, eventualmente, fariam, caso desnecessária a valoração. O Direito seria um apertar de botões. Mas a própria enunciação do fato (‘fulano roubou’) já guarda juízo de valor.

Assim, a doutrina acata e estimula a tese da atualização valorativa, como afirma ANDERSON SANT’ANA PEDRA:

No Iluminismo se assentou a idéia de que as normas deveriam ser estabelecidas com clareza e segurança jurídica absoluta, por intermédio de uma elaboração rigorosa, a fim de garantir, especialmente, uma irrestrita univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administrativos, devendo ser o juiz o escravo da lei. Neste contexto, a segurança jurídica se confundia com a noção de justiça. Contudo, a partir do século XIX esta concepção começou a vacilar.A norma jurídica por natureza é geral, abstrata, fixa tipos, referindo-se a uma série de casos indefinidos e não a casos concretos.Urge assim a necessidade de estudo quanto ao momento da aplicação da norma pelo operador do direito, ou seja, submeter um caso particular ao império de uma norma jurídica.A norma jurídica só se movimenta ante um fato concreto, pela ação do aplicador do direito, que é o intermediário entre a norma e os fatos da vida. [13](grifo nosso)

No mesmo trabalho o autor produz citação importante que realça o que aqui se defende:

CARLOS MAXIMILIANO com sua lavra indelével há tempo firmou: "A palavra é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos do que os resultantes da simples apreciação literal do texto." [14] (grifo nosso)

Bem se vê que não se pode prescindir de atualização valorativa numa sociedade tão dinâmica e mutante. Nunca as mudanças se deram em tamanha velocidade, nos costumes, nas estruturas sócio-políticas, na economia, nas organizações familiares. O tempo em que as determinações justinianas ou do Código Napoleônico podiam ser imaginadas pelos racionalistas como obras acabadas, a nosso ver, se foi, com outras ilusões iluministas igualmente bem intencionadas, mas que não resistiram à pós-modernidade. Obscurantismo seria aplicar a letra da lei sem atualização axiológica. Daí, o que leciona REALE:

"Há certos casos em que a aplicação rigorosa do Direito redundaria em ato profundamente injusto. Summun jus, summa injuria. Esta afirmação para nós é uma das belas e profundas da jurisprudência romana, porque ela nos põe em evidência a noção fundamental de que o Direito não é apenas sistema lógico-formal mas, sobretudo, a apreciação estimativa ou axiológica da conduta. Diante de certos casos, mister é que a justiça se ajuste à vida". [15] (grifo nosso)

E, transitando entre doutos, recuemos mais de dois mil anos, a CÍCERO:

"(...) Muitas vezes se é injusto atendendo-se muito à letra, interpretando a lei com tal agudeza que ela se torna artificiosa. De onde vem o provérbio: Summun jus, summa injuria". [16]

As circunstâncias impuseram definitivamente a superação da neutralidade extremada, guardada na literalidade, da mecânica do ‘poder nulo’ pretendido por MONTESQUIEU ao averbar que os Juízes não seriam "mais do que a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar nem a força nem o rigor das leis[17].

A lei não tem como garantir a eficácia do silogismo perfeito frente aos desafios legais e éticos de um mundo on-line, em que crimes são cometidos ao toque de uma tecla, em tempo real. Tempos em que um passageiro pode, pelo celular, surpreender-se tripulando não o avião em que embarcou, mas um míssil terrorista.

A lei não tem como prever todas as hipóteses que se impõem com a atual velocidade dos acontecimentos. Há cerca de trinta anos, discutíamos a viabilidade do divórcio e hoje estamos às voltas com a hipótese da adoção de crianças por casais de homoafetivos. Das mal acabadas discussões éticas quanto ao ‘bebê de proveta’, passamos, quase sem escalas, aos dilemas da manipulação genética.

Nunca o rio de Heráclito se moveu tão rápido, e diante de tal quadro, não pode o juiz congelar sua consciência, ser um "conviva de pedra", como conclama Nagib Slaibi Filho:

"Os autores antigos até mesmo diziam que o juiz seria, no processo, o "conviva de pedra". Mas o juiz tem o dever moral e jurídico de não ser o "conviva de pedra", mesmo porque não se despe de seus caracteres humanos" [18]

A atualização hermenêutica é necessária, particularmente, num país em que o Código Civil, após décadas, "já nasce velho" [19] e a Constituição, por detalhista – o que, tendo mérito estratégico, impõe dificuldade operacional –, é remendada a toda hora. Mais do que uma letra, que envelhece, a lei guarda um espírito, que se mantêm e se desvela ao hermeneuta de busca honesta. Por isso, não pode a sociedade prescindir da atualização hermenêutica, da criatividade jurisprudencial e da proatividade administrativa.

Como ao correr deste se verá, não é que se despreze o rigor, o rito ou a forma ao sabor de conveniências instáveis e conjunturas mutantes. Fosse assim, a insegurança jurídica imperaria, produzindo um quadro de incerteza que ameaçaria o próprio Estado Democrático de Direito. Mas não se olvide a máxima de REALE: "O Direito é ordenação que dia a dia se renova". [20]

É o que demandam, mais do que todos, os direitos da infância e da adolescência.

Não se propõe aqui uma aventura de egos, a inovação descabida, nem mesmo o "Direito Alternativo" que muitos entenderam – equivocadamente, nos parece – como oportunismo ideológico travestido de pensamento jurídico [21]Mas há que se conhecer das peculiaridades especiais de novos estatutos que demandam criatividade jurisdicional e administrativa sob pena de inviabilizar a efetivação da vontade do constituinte e do legislador.

Com vênia para o prosaico, se a urgência determina que há um parafuso a ser ajustado e a regra técnica indica uma determinada ferramenta (chave ‘philips’) como meio eficaz para tal objetivo, grave é, na ausência da mesma, vedar-se o empréstimo de mecanismo (canivete) ao qual se atribua novo uso ou qualidade, a partir da qual se produziria o mesmo resultado.

Ou seja, não se faz boa Justiça com a predominância da forma sobre o objetivo. Se os fins não justificam os meios, é certo que os meios não podem tornar-se camisa de força para a obtenção da Justiça. Médicos hábeis, em urgência num descampado, não deixam de realizar traqueostomia por ausência de cânula adequada. Um tubo de caneta vale, quando se trata de salvar uma vida.

Nesse espírito virou lenda e inspiração a corajosa inventiva de Sobral Pinto ao recorrer à Lei de Proteção aos Animais, na falta de melhor instrumento em regime de exceção, como era a ditadura de Vargas, para defender os direitos do prisioneiro político Luiz Carlos Prestes.

Não esqueçamos também da experiência de criação dos Juizados Especiais, que tanto honra a história do Judiciário brasileiro. Foi um fruto da inovação e da experimentação que terminou por se consolidar institucionalmente. Somente a letra fria da norma e a tradição administrativa não autorizariam o feito. Foi preciso espírito desbravador que visse os fins preconizados pelo ordenamento, para adequar-lhe os meios. [22]

Na mesma linha de inspiração anotou-se que "segundo proclamou o recente IX Congresso Mundial de Direito Processual, é em dispositivo do nosso CPC que se encontra a mais bela regra do atual Direito Processual, a saber, a insculpida no art. 244, onde se proclama que ‘quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade’" (STJ – RT 683/183). [23]

ECA X REALIDADE

Reportando-nos ao contexto histórico de surgimento do ECA, registremos que o mesmo, nascendo nos mesmos ventos democráticos que trouxeram a ‘Constituição Cidadã’, sucede e se contrapõe ao repressivo Código de Menores da ditadura militar. Neste, herdeiro da concepção de ‘situação irregular’ que predominou desde o início do século passado, eivado ainda pelo conceito de ‘segurança nacional’, o ‘menor’ pode ser tido como fonte de problemas e alvo de repressão institucionalizadora (abrigo-> FEBEM-> caserna). Somente atenuada pela ação humanista de decanos da Justiça do Menor como Dr. Alyrio Cavalieri.

A isso se contrapõe o conceito de ‘criança e adolescente’ como trazido pelo ECA: sujeitos de direitos, depositários do futuro da nação e, portanto, merecedores de proteção especial e integral, em face da natural fragilidade de sua condição de pessoas em formação.

Logo, é compreensível que os críticos da ação administrativo-jurisdicional de natureza especial exercitada pelo Juízo Menorista - particularmente quando se configura na forma de edição de Portarias normativas - receiem não só a possibilidade de quebra do princípio da legalidade, mas um retorno à conduta repressiva que a tantos estigmatizou, confinando à exclusão gerações de brasileiros institucionalizados em presídios mascarados.

Num país que fez uma República repleta de episódios de autoritarismo e exceção, não só é compreensível, como salutar, que haja atalaias que se ponham em prontidão contra qualquer regulação ou exercício de poder que lhes pareça autoritário e irrazoável. Mas, defendemos, não é o que ocorre na ação do Juiz da Infância, quando, dentro de certos parâmetros, edita portarias normativas, como veremos.

Às vezes, tal dilema filosófico-doutrinário parece querer pôr numa falsa confrontação os defensores de restrição aos poderes do Juiz da Infância no papel de progressistas defensores das liberdades e paladinos do legalismo democrático e os Juízes que baixam portarias direcionadas à defesa da infância como arautos do arbítrio e déspotas sequer ilustrados [24]. Nada mais falso.

Reposicionemo-nos no contexto. A Constituição se promulga em 1988. O ECA em 1990. Entre ambos, a queda do Muro de Berlim e a consolidação do modelo neoliberal, com maximização do lucro, precarização da mão de obra, informatização acelerada a serviço do capital e nefastas conseqüências, como exacerbação do individualismo e do ceticismo, erotização precoce da infância, etc.

Daí que aquele modelo de estado social, pactuado na letra mor da cidadania, não se viabiliza no mundo prático. O hedonismo sufoca a solidariedade. As liberdades democráticas alcançadas terminam por, aparelhadas, servir ao próprio capital que sustentara a ditadura.

Que livre escolha eleitoral se a máquina de manipulação (poder econômico, pesquisas, marqueteiros e ‘candidatos-sabonete’) nunca foi tão forte? Que direito de greve, se não há emprego? Que direito à educação, se botamos alunos na escola, mas esta foi aviltada? Que direito à saúde, se a privatizamos? Que respeito aos idosos, se arruinamos suas aposentadorias?

Não esqueçamos em que deu "o Brasil criança na alegria de se abraçar", jingle que, desde a campanha do Partido dos Trabalhadores em 1989, embalou todo um período vigoroso da história brasileira, para terminar em tempos de "valerioduto", como uma canção triste do passado.

Assim, leitores do ECA precisam lê-lo sem ingenuidade, trazendo-o não ao mundo imaginado em 1990, mas ao mundo real, que se deteriorou de forma ‘velox’, se nos permitem o trocadilho, levando de roldão as boas perspectivas estabelecidas em torno das políticas voltadas à infância.

Não se perdeu a guerra da mudança, mas as derrotas nas batalhas recomendam a alternância na tática. O apego à letra fria de uma norma, em interpretação equivocada, pode servir não aos progressistas, mas sim aos conservadores, romanistas no pior da expressão, dos que querem os indesejados, os defeituosos, os diferentes, os ‘desnecessários’ atirados aos esgotos do sistema.

Com tal leitura crítica e, a nosso ver, progressista, ver-se-á que é imprescindível a ação do Juiz da Infância, inclusive, com a edição de Portarias. Existe um equilíbrio social a ser conquistado, já que a balança, há 500 anos, pende para o lado do grande capital. Nos lixões catando comida, ou nos postos de gasolina vendendo seus corpos por um sanduíche, a nossa infância, no concreto, não vale uma pluma. Portanto, aquele Juiz de Menores, cuja ação se queria podar, como Juiz da Infância e da Juventude, nos quadrantes do ECA, passa a ser um elemento chave nessa luta anunciada.

Assim é que a jurisdição de natureza especial do Juiz da Infância impõe, em nome dos direitos da infância e da adolescência, a relativização de certos direitos da sociedade. Se, por exemplo, o Juiz se vê compelido a inibir alguma ação empresarial, e se isso pode ser inaceitável no corpo das relações jurídicas regulares [25], não o é na jurisdição menorista.

Ressalvados os papéis destacados dos Conselhos e do Ministério Público, fez-se do Juiz da Infância um depositário da defesa das gerações futuras. Atitude progressista é zelar para que nossas ações de hoje não destruam seu amanhã. A livre empresa hoje não se acha cingida pelo princípio do desenvolvimento sustentável? Igual incompreensão enfrentam, por vezes, os aplicadores da lei ambiental ao impedirem a fábrica que geraria empregos, em defesa de manter-se em pé a floresta que resguarda um ecossistema. Novos valores se consolidam sobre a relativização de velhas idéias. [26]

Da mesma forma que o progresso não deveria ser um fundamento absoluto para a ação humana, nem o princípio da inércia da jurisdição ou até mesmo as liberdades democráticas [27] deveriam ser tidas como permissivo completo, principalmente quando postas em confronto com os direitos da infância. Os fáceis desatinos ‘democratistas’ de hoje cobram preço impagável no amanhã. O progresso feito à custa das ontem inocentes queimadas, hoje se firma como gênese de desastres climáticos incontroláveis.

Recorramos novamente à perspicácia de BOBBIO, quando discorreu sobre os argumentos dos defensores do direito de propriedade, relativizados ante a emergência dos direitos sociais, para lembrar que o "fundamento absoluto não é apenas uma ilusão; em alguns casos, é também um pretexto para defender posições conservadoras[28].

O ECA DEVE SER LIDO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO

A ação do Poder Judiciário para suprir lacunas normativas é um exercício, quando efetuado de forma tecnicamente sustentável, a que poucos se contrapõem. Até porque a lei veda ao Juiz a hipótese de abster-se de decidir sob alegação de "lacuna ou obscuridade" da lei. Deve recorrer, na ausência de norma específica, à "analogia, aos costumes e aos princípios gerais de Direito"[29].

Por noviço, o Direito da Infância e da Adolescência nos marcos postos pelo ECA, mais que todos os outros, se encontra em franco desenvolvimento. Do saber jurídico, aplicado com boa técnica e sensibilidade à prioridade social e preocupação humanitária que caracterizam as urgentes demandas do segmento, espera-se criatividade jurisprudencial e uma visão prospectiva, que se ponha à frente dos problemas que vitimam nossas crianças e jovens.

Na jurisdição da Infância e da Juventude o magistrado, cotidiana e necessariamente, atuará no preenchimento de lacuna. A própria Portaria é, freqüentemente, um preenchimento de lacuna, uma prestação jurisdicional de caráter especial que explicita uma norma e aplica um preceito a uma situação fática em que, na ausência de cobertura judicial, a criança ou adolescente estará exposta a situação indesejável à sua segurança ou à sua formação.

A Constituição Federal, como dissemos, é o projeto a ser consultado pelos executores da obra, sejam engenheiros, mestres de obras ou pedreiros. Daí a tese que prega a ‘constitucionalização do direito civil’, tendo a Carta Magna como norte e guia. Dessa leitura, não há como imaginar que o ECA proíba a edição de Portarias.

Qual é o valor mais relevante a ser defendido? A restrição ao Juiz, com a redução do princípio da legalidade a uma leitura estreita da lei menorista, no suposto nome das liberdades democráticas, ou a constitucionalmente determinada defesa da infância que, freqüentemente, estará ao relento sem a pronta ação desse mesmo juiz?

Achamos que, neste caso, não deveria haver muitas dúvidas. Propomos atenção, mesmo com restrições e discordâncias pontuais, ao espírito vibrante e ousado que instruiu o polêmico discurso com que o magistrado francês OSWALD BAUDOT [30], recebeu novos colegas juízes:

"(...) Em vossas funções, não deveis dar exagerada importância à lei, e de um modo geral, desprezai os costumes, as circulares, os decretos e a jurisprudência. Deveis ser mais sábios do que o Tribunal de Justiça, sempre que se apresentar uma ocasião. A justiça não é uma verdade estagnada em 1810. É uma criação perpétua. Ela deve ser feita por vós. Não espereis o sinal verde de um ministro, ou do legislador, ou das reformas sempre em expectativa. Fazei vós mesmos a reforma. Consultai o bom senso, a eqüidade, o amor do próximo antes da autoridade e da tradição. A lei se interpreta. Ela dirá o que quiserdes que ela diga. Sem mudar um til, pode-se, com os mais sólidos considerandos do mundo, dar razão a uma parte ou a outra, absolver ou condenar à pena máxima. Desse modo, que a lei não nos sirva de álibi. (...)

(...) Sede parciais. Para manter a balança entre o forte e o fraco, o rico e o pobre, que não têm o mesmo peso, é preciso que calqueis um pouco a mão do lado mais fraco da balança. Esta é a tradição capetiana. Examinai sempre onde estão o forte e o fraco, que não se confundem necessariamente com o delinqüente e sua vítima. Tende um preconceito favorável pela mulher contra o marido, pelo filho contra o pai, pelo devedor contra o credor, pelo operário contra o patrão, pelo vitimado contra a companhia de seguros, pelo enfermo contra a Previdência Social, pelo ladrão contra a polícia, pelo pleiteante contra a justiça (...)" (grifo nosso)

 

 

II – CARACTERÍSTICAS ESPECIAIS DA JURISDIÇÃO MENORISTA

OBJETIVO: PROTEGER PERSONALIDADES EM FORMAÇÃO

Dentre todos os despossuídos do mundo, as crianças são as vítimas mais sofridas.

Corpos de crianças semeiam dor e sangram indignação em campos de batalha desde Ruanda ao Iraque. Do Haiti à Cachemira, ao som de tiros, pequenos órfãos tremem de pânico sob os leitos da miséria.

A AIDS multiplica-se em proporção geométrica em países africanos, vitimando inocentes ainda no ventre materno.

Com dieta inadequada ou inexistente, no mundo inteiro as crianças padecem a desnutrição que afeta e reduz suas capacidades cognitivas, condenando-as a uma vida de dificuldades e desvantagens.

O drama da exploração sexual infantil se espalha do Extremo Oriente às paradisíacas praias do nordeste brasileiro, dos castelos alemães às metrópoles americanas, seja em forma de pedofilia virtual, venda de crianças para escravidão sexual ou redes de prostituição.

Os lixões das cidades do Terceiro Mundo, e mesmo da naufragada Nova Orleans, são pródigos em cenas de ratos e crianças disputando os mesmos restos.

A violência doméstica agride corpos frágeis e espancamentos afetam e lesionam áreas cerebrais com comprometimentos irreversíveis, gerando, no mínimo, distúrbios de atenção e aprendizado.

O modelo neoliberal maximiza lucros na mesma proporção em que atira crianças ao circo rápido dos semáforos, aos becos da inalação de solventes, ao alcoolismo precoce.

A globalização econômica se espalha, alimentada pelo trabalho escravo de operários de oito anos costurando bolas ou tênis para multinacionais.

A falta de perspectiva dos jovens das comunidades periféricas prepara as chocadeiras das serpentes neonazistas e o caminho para a revolta cega e a rebelião violenta como as que a França tem vivenciado.

As crianças que vencem a barreira da miséria e nascem em lares privilegiados pela inclusão se vêem tragadas pelas ilusões do mercado de consumo e por um modelo educacional acrítico, que não quer formar seres humanos, mas apenas disponibilizar mão de obra barata, ordeira e qualificada ou eficientes capatazes do sistema.

 

O individualismo, a cultura da disputa, o mundo "big brother", ensinam que a vida é um "paredão" e, no zoológico humano sempre há que artificializar-se para as câmeras, sempre há que empurrar o parceiro ao limbo da derrota da solidariedade.

A baixa auto-estima corrói personalidades com a desconformidade da maioria aos padrões de beleza e consumo global. Aos quinze, meninas já enfrentaram duas plásticas. Mata-se por um tênis de marca.

Todos esses danos arrolados, a par de seu caráter objetivo e palpável, trazem junto a violência psicológica imensurável, o inconsciente repleto de pavores, o coração desregrado de afetos, a alma atormentada.

Perdão pela imagem, mas imaginemo-nos pegando um recém-nascido e pisoteando sua cabeça. É o que, como sistema, fazemos cotidianamente.

Disso tudo nascem o desespero e a alienação, o cinismo e a crueldade.

A crianças assim violentadas daremos ainda, por fim, um mundo de epidemias e desequilíbrios, com tsunamis e ondas de calor ou frio em descontrole, químicas cancerígenas pousadas no ar e na água, água potável escassa e privatizada, lavouras envenenadas. Deixaremos de herança as pragas do Apocalipse.

Perdoem-nos a longa digressão, mas essa é a realidade a atacar. É disso que esta dissertação trata. Com o advento da Constituição Federal e do ECA, a sociedade inaugurou uma nova ética, entendeu que é preciso salvar as crianças e os adolescentes do abismo impiedoso que essa mesma sociedade criou.

E para isso é preciso chegar antes. Almas infantis são cristais tão finos quanto belos. Quebrados, pode-se até obter da colagem dos cacos um vasilhame útil, mas as cicatrizes, as fissuras nunca se apagarão e ali, onde se pôs a cola, para toda a vida, o vidro será sempre mais frágil.

Por isso, proteção integral significa recolher as crianças no campo de batalha, ANTES que sejam moídas pelas metralhadoras. Significa tirá-las das ruas, ANTES que sua pureza seja maculada pelo estupro. Significa impedir o caminho do empresário desonesto e do traficante, ANTES que eles contaminem adolescentes inermes. Significa ensinar as defesas da educação verdadeira, formadora de inteligências versáteis e almas engrandecidas, anticorpos para a crueldade da existência moderna, ANTES do contágio da descrença.

Não se trata de criar redomas paternalistas e incapacitantes. Mas significa proteger a flor enquanto ainda é semente, para que um dia, como a flor de Drummond, rompa o asfalto, o nojo, a náusea e o ódio e nos purifique.

Proteger sementes. É disso que trata a proteção integral.

QUANDO A REDE DE PROTEÇÃO FALHA, O JUIZ ATUA

É certo que o Código de Menores concedia ao Juiz um papel de predominância que, efetivamente, não se reprisa no Estatuto, até porque seu princípio regedor é o princípio da ‘rede’ e não o da ‘pirâmide’, sendo, portanto, o Judiciário não um elemento superior aos demais, mas um dos cordames da teia de proteção e garantia.

Ventos democráticos fizeram bem em trazer, com inspiração participativa, essa divisão de tarefas entre Poder Público, famílias e sociedade. A radicalização democrática é a chave para um Brasil mais justo e includente. Entretanto, como bem diz RUBEM ALVES: "a democracia... é uma obra de arte coletiva[31]. Logo, não há democracia real sem participação ampla e efetivo engajamento. E decisão partilhada exige responsabilidade dividida.

Num mundo ideal, a militância dos Conselhos Tutelares, a fixação de diretrizes e políticas locais pelos Conselhos de Direitos, o papel atuante do Ministério Público, as práticas do Executivo dirigidas pelos mandamentos da prioridade absoluta, se aliariam a uma ação mais presente e harmônica das famílias conscientizadas, apoiadas por uma sociedade vigilante e participativa.

Para muitos, ao Judiciário estaria reservado, em tese, um papel sempre relevante, sim, mas suplementar e específico, de controle administrativo das entidades e de prestação jurisdicional nos quadrantes do princípio da inércia, já que uma atuação global e integrada dispensaria sua maior presença.

Esse seria o melhor dos mundos. Mas o que vemos, em concreto, apesar de tantos esforços sinceros, é a quebra do princípio solidário da ‘rede’, desfalcando, assim, os mecanismos imaginados pelo legislador. Tal pode se dar pela inexistência, omissão ou desaparelhamento de Conselhos Tutelares, pela inação de muitos Conselhos de Direitos, pelo assoberbamento do Ministério Público, pelos desvios ou inoperância dos executivos municipais, e, mais grave, pela falta de consciência e preparo das famílias, agravados pela negligência da sociedade, em inédita crise de valores.

Desta soma de desfalques resulta uma infância cada vez mais desassistida e uma adolescência vendo abortados os horizontes de um desenvolvimento equilibrado e sadio. O crime, o vício, a gravidez precoce, a depressão juvenil, os barris de pólvora em que se vão transformando as escolas, o desnorteio familiar, são alguns dos subprodutos desse quadro.

Ora, não pode o Juiz da Infância verdadeiramente vocacionado se refugiar ao fundo da cena, no script que muitos entendem lhe ter sido dado, aguardando que os outros personagens, em tempo oportuno, completem seu aprendizado e retomem a consciência da importância do cumprimento de suas obrigações.

No palco, o bom ator improvisa para cobrir o lapso do colega que, em mau dia, esquece a fala. A ação diligente salva o espetáculo e alcança o aplauso. Tal objetivo é de todos, atores e platéia, e é ação solidária cobrir a atuação do ausente de forma a alcançar a satisfação geral, mesmo que isso não tenha sido prescrito pelo dramaturgo ou previsto pelo encenador. Não pode o Juiz da infância permanecer inerte. Tem ele responsabilidades com ‘o público’ e com os demais atores também surpreendidos pela ausência de algum dos protagonistas.

A provocação, em sentido estrito, é o uso do direito de ação. Na jurisdição menorista, provocação é mais. É, desde o auto de infração lavrado por servidor, ao requerimento de Conselheiro Tutelar, passando pela representação do parquet, até a lágrima da mãe aflita desfilhada pelas drogas, ou mesmo a visão direta do magistrado quando pára seu carro no sinal e vê pequenos mortos-vivos cheirando cola ao relento.

A ‘provocação’, em sentido amplo, se faz cotidianamente, por cada pedaço de futuro que desfalece em cada criança desassistida, abusada ou negligenciada.

O PAPEL DIFERENCIADO DO JUIZ DA INFÂNCIA

Antes falamos em ‘juiz vocacionado’. Deixemos claro que todo bom Juiz, em qualquer área em que atue, deverá ser verdadeiramente vocacionado. A tarefa de ‘dizer o Direito’, com todas as remissões ancestrais e oraculares que comporta, demanda uma consciência de sacerdócio e um espírito de missão. Não é um ‘emprego’ comum. Senso de cidadania, capacidade científica e elevados padrões morais necessariamente deveriam compor o perfil do bom juiz. Uma aguçada compreensão da realidade social em que atua deveria ser o estrado da sua ação judicante.

O professor capixaba JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF, juiz aposentado, assim discrimina as características que o fazer Justiça exige do papel do Juiz:

"(...)que esteja a serviço, (...) que não ocupe apenas um cargo, mas desempenhe uma missão. (...) que carregue nos ombros um fardo, mas que carregue um fardo com alegria porque vocacionado para serviço dos seus semelhantes, para o serviço do bem público. (...) Um juiz menos técnico e mais ético.(...) A lei como instrumento de limitação do poder é, sem dúvida, um avanço da cultura humana. É justamente a limitação do poder pela lei que caracteriza o Estado de Direito. Mas a tábua de valores de uma comunidade, de um povo, não está apenas na lei. Está sobretudo no estofo moral dos aplicadores da lei. Não há arquitetura política, sistema de freios do poder, concepção de instâncias superpostas a permitir a utilização de recursos contra despachos e sentenças, não há enfim engenharia processual e judiciária que assegure a um povo tranqüilidade e justiça se os juízes forem corruptos, preguiçosos, egoístas, estreitos, sem abertura para o social, ciosos apenas de seus privilégios e de suas vaidades". [32] (grifo nosso)

De um juiz assim especial se espera a postura já destacada, de ver a técnica jurídica como um caminho para a Justiça e não como um balneário ideológico onde refugie a sua consciência amortecida. Daí o alerta do professor e desembargador aposentado gaúcho, MÁRCIO OLIVEIRA PUGGINA [33]:

"Nossa tradição jurídica acadêmica, de índole estritamente dogmática, não aceita o julgamento contra legem, nem mesmo sob a justificativa de fazer-se justiça. (De alguma maneira, introjetaram em nossas cabeças ser muito perigoso, isto de fazer justiça). Com freqüência, o juiz, para fugir da pecha de não científico, ou de assistêmico, acaba amortecendo a sua consciência e aliena de si a responsabilidade ética pelo resultado de seu julgamento. Passa a ser talvez o único profissional com álibi perfeito para cometer injustiças: a culpa não é sua, mas do legislador; a lei justa é questão ética que se impõe ao legislador, não ao julgador. Pelo mesmo álibi, passam as justificativas doutrinárias e filosóficas que atrelam o juiz à letra fria da lei. Certo de que a lei justa é responsabilidade ética do legislador, mas a sentença justa ou injusta é inalienável responsabilidade ética do juiz". (grifo nosso)

As citações anteriores referem-se ao papel do Juiz, genericamente. Entende-se como necessário ao magistrado uma série de qualidades especiais: estofo moral, índole missionária, generosidade, coragem de romper com a técnica estrita, senso de justiça. Mas, devido à natureza da jurisdição que exerce, ousamos destacar que, do Juiz da Infância e da Juventude, se pede ainda mais.

Exige-se algo como o que MUNIR CURY entende necessário ao Promotor de Justiça em função de Curadoria de Menores e ao próprio Juiz da Infância:

"A postura exigível do Curador de Menores, longe de ser a de um funcionário burocrático, é de permanente inquietação, no sentido de se encontrar alternativas e romper o ortodoxismo jurídico. (...) Segundo Gaston Fédon, Presidente do Tribunal de Menores de Paris, o magistrado dos tempos novos é o Juiz das relações humanas, que intervém no coração dos conflitos que existem entre os menores e a sociedade, entre eles e sua família; ele vai além da família, relaciona-se também com a comunidade, as equipes técnicas, os serviços administrativos, as instituições particulares; deve obter a adesão da família; falar em linguagem não estereotipada, não convencional; deve ter uma educação contínua; ir além dos seus julgamentos; acompanhar as medidas decretadas; acompanhar o progresso das técnicas das ciências sociais e humanas; deve ser uma autoridade real e conhecida." [34] (grifo nosso)

Acresça-se ainda o que bem explicita o Juiz da 2ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, GUARACY DE CAMPOS VIANA:

"O Juiz da Infância e da Juventude, tem, portanto, atividades jurisdicionais puramente jurídicas – soluções de conflitos de interesses que resolvem definitivamente com sentença – e atividades jurisdicionais socializantes – no sentido de modificar a realidade, criar novos hábitos individuais, redirecionar vidas, reformar atitudes, promover a solidariedade social ou individual, lidar mais proximamente com a miséria e a degradação social, atuar nas causas da violência, enfim, construir, de certa forma, o futuro de parcela significativa da sociedade - (...) a lei nº 8.069/90, inspirada na doutrina da proteção integral da criança e do adolescente não permitiu que o formalismo processual embaraçasse ou impedisse o poder oficial do Juiz, facilitando e autorizando sua ação sem se ater à maneira como foi provocado, porque procurou dar prevalência à proteção da infância e ao interesse da criança ou adolescente. (...) A função primordial do Juiz da Infância e da Juventude é a correção dos desvios detectados entre a realidade e as normas constantes da Lei nº 8.069/90 e da CF. A ação do Juiz pode ser direcionada contra o causador dos desvios e não apenas em favor (ou contra) da criança e do adolescente[35]. (grifo nosso)

De todo o exposto resulta cristalina a compreensão de algumas peculiaridades da ação do Juiz da Infância, absolutamente especiais em relação aos demais ramos de jurisdição. Dele se espera postura ativa, militante até, na defesa dos preceitos constitucionais e legais de que é especial guardião.

Exemplifica bem o papel do Juiz da Infância, a posição manifesta pela experiente magistrada da Comarca de Teresópolis, INÊS JOAQUINA SANT’ANA SANTOS COUTINHO:

"Colocam-se, os magistrados, muitas vezes, como lei viva, preenchendo as vacuidades de outras autoridades, desatentas para a defesa dos direitos de seus tutelados. Lutam contra a náusea social que adoece a comunidade. Lutam contra as dificuldades de entendimento dos que observam, com simplismo cético, seu idealismo. Impossível permanecerem neutros e passivos com o instrumento que o legislador lhes colocou nas mãos: o ECA. Impossível continuarem discursando e utilizando apenas os chavões surrados de defesa às crianças, que nem a elas enganam mais." [36] (grifo nosso)

Notar como os três últimos citados, do alto de suas experiências como Juízes menoristas, ressaltam o papel de agente de transformação social. É certo que não é aceitável retroceder ao protagonismo absoluto do Poder Judiciário nas políticas de proteção ao menor, mas, de outro turno, não se pode olvidar que tem o Juiz da Infância papel determinante, em complemento à sua função jurisdicional, sendo mesmo um multiplicador de cidadania, um formador de consciências.

Logo, não seria razoável dar-se ao magistrado tarefas especiais e diferenciadas, sem lhe disponibilizar adequados mecanismos para o bom exercício do mister que lhe compete.

Hoje, os defensores da Infância e da Juventude lutam ‘a braço’ disputando crianças com o tráfico, a miséria e a falência moral, patrocinadas por inimigos poderosos e bem servidos das armas de uma cultura midiática e individualista. Sem receio de parecer teatral: é uma guerra. Não se manda soldados desarmados à guerra. Usada com parcimônia, a Portaria Judicial pode ser uma competente defesa.

INFLUÊNCIA E PODER DO JUIZ DA INFÂNCIA

Do exposto até agora, verificamos a necessidade de que o Juiz da Infância esteja em condições de agir sobre a realidade para modificá-la em prol da promoção e preservação dos direitos da criança e do adolescente. Exerce, portanto, ressaltemos novamente, um papel fundamentalmente jurisdicional, mas de grande relevância política, no melhor da expressão, e influência social.

Em conceitos diversos dos comuns ao mundo jurídico, a ciência política distingue dois mecanismos de controle social, a influência e o poder. Quando influi, o agente político está na busca de determinar o comportamento do outro, incidindo nas suas escolhas, tornando-se relevante na sua opção de agir. Quando exercita poder, entretanto, o agente político busca condicionar um comportamento único do outro, impossibilitado de agir diferentemente. [37] BERTRAND RUSSEL é sucinto: "Poder é a produção de efeitos desejados" [38].

Tem sido e supomos que será sempre considerado em alta conta na sociedade o dizer extra-processual do Juiz da Infância, haja vista a sua opinião sempre tida por tecnicamente abalizada. Constituindo-se em referência moral, será sempre voz privilegiada em foros de debate e centros de discussão. As instituições, autoridades e ONG’s ligadas à criança em sua Comarca normalmente buscarão orientação e subsídios na sua oitiva. Estará, assim, portanto, exercendo sua influência, sempre importante.

Mas o que fazer, se sua voz não é ouvida em assunto urgente e relevante aos interesses que tutela? Como agir, se numa reunião com empresários de lazer não consegue convencê-los da necessidade de inibir eventual burla às políticas de proteção à infância (por exemplo, bilheterias frouxas em eventos para maiores de 18 anos que terminam invadidos por adolescentes depois flagrados, embriagados, às dezenas)?

Em tais situações é necessário mecanismo impositivo, que determine comportamento que, a priori, não possa ser contrariado. É necessário, portanto, não mais apenas o exercício persuasório da influência, mas também, com temperos, parcimônia e justificação, o imperativo do poder.

Da determinação genérica – sistematicamente desrespeitada – de vedação de ingresso a menores de 18 anos, parte o Juiz para, por Portaria, determinar, por hipótese, procedimentos verificatórios e inibitórios do ingresso de adolescentes (por exemplo, não aceitação de documentos de identidade por fotocópia ou carteiras originais de entidades não oficiais). Assim, a par das eventuais infrações detectadas pela presença de menores em recinto não autorizado, ou mesmo independente desta, ter-se-á infração autônoma caso constatada inobservância da ordem, por descumprimento de procedimentos discriminados.

No exemplo dado, mesmo que a fiscalização – nem sempre suficiente, nem sempre passível de estar presente a todos os eventos – não detecte qualquer menor no recinto, no momento em que o Comissário lá estiver, o eventual descumprimento das medidas determinadas com base no princípio da precaução que regeu a edição da Portaria aqui suposta obrigará à sanção do clube e/ou promotor do evento, por descumprimento ao artigo 249 do ECA [39]. Tal sanção é a garantia do cumprimento do preceito, e esta arquitetura da norma é que permite, neste caso, o exercício, não mais de mera e nem sempre atendida influência, mas sim de poder, nos limites necessários à proteção que se almeja.

Esta posição tem harmonia com a própria definição de Juiz de Menores, que embora saibamos vencida pelo novo Estatuto, é expressão que, significativamente, sem ressalvas, ainda adota edição recente do Vocabulário Jurídico de DE PLÁCIDO E SILVA [40]:

Juiz de Menores: juiz a que se comete o encargo de superintender e tomar conhecimento de todas as questões referentes a menores, resolvendo-as conforme determinação legal e tomando as deliberações e providências indispensáveis à proteção dos menores desamparados e à solução dos problemas que aos mesmos dizem respeito.

Logo, defende-se aqui que não seria prudente inibir, pelo impedimento à edição de portarias, o poder necessário ao exercício das funções do Juiz da Infância e da Juventude, para que ele não se torne, por mais reconhecido que seja, mera ‘voz que clama no deserto’!

INÉRCIA DO JUIZ DA INFÂNCIA É EXCEÇÃO

Em recente artigo [41], o Juiz da Infância de Jundiaí (SP), JEFFERSON BARBIN TORELLI explicita bem as peculiaridades da função do Juiz da Infância e da Juventude, quando afirma:

"O princípio da proteção integral consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, proclamado em seu artigo 1º, cobra do juízo menorista atuação sui generis e, dentre outras particularidades, desconsidera o princípio da inércia da jurisdição e obriga o magistrado, por regra, a atuar de ofício e só por exceção aguardar provocação"

Está o magistrado, em seu artigo, a sustentar a faculdade de o Juiz iniciar procedimento para apuração de infração às normas de proteção à criança e ao adolescente, por meio de Portaria. Tal iniciativa somar-se-ia àquelas exemplificadas no Art. 194, de provocação do Juízo pelo Ministério Público, pelo Conselho Tutelar ou por servidor ou voluntário credenciado, via auto de infração.

Com lógica cristalina, defende a tese de não ser razoável compreender-se vedada a iniciativa do Juízo, quando se dá a prerrogativa da provocação a um seu preposto, no caso, o serventuário ou colaborador que lavra autos de infração nas suas diligencias.

"Afinal, não teria sentido nem lógica assegurar ao subordinado a possibilidade de início do procedimento, mas negar ao seu superior hierárquico o mesmo poder. Quem pode o mais pode também o menos".

E mais, ataca o problema da suposta falta de isenção do julgador em caso de procedimento por ele mesmo instaurado, exemplificando com a prerrogativa explícita de se estabelecer procedimento de apuração de irregularidade em entidade de atendimento, por portaria, conforme prevê o artigo 191. Diz:

"Se o legislador houvesse enxergado a possibilidade, mesmo que remota, de qualquer perda de isenção do magistrado por iniciar procedimento de ofício, certamente não teria consagrado a possibilidade de início do processo de apuração de irregularidade em entidade de atendimento por portaria da autoridade judiciária, como o fez no artigo 191 do Estatuto da Criança e do Adolescente".

Em concordância com o exposto, entendemos que deve presidir a avaliação norteadora da aplicação dos princípios, a regra da ponderação, que determina a prevalência do princípio mais relevante. Logo, da mesma forma que o nosso ordenamento acolheu a possibilidade de relevar o princípio da liberdade contratual em favor do princípio da defesa do consumidor, elo mais fraco no processo de comercialização, não deve o princípio da inércia do julgador preponderar sobre o princípio da proteção integral.

Não nos esqueçamos ainda que dois capítulos do ECA consagram, no Título III, a prevenção como princípio norteador da ação garantidora de direitos da criança e do adolescente, impondo como "(...) dever de todos PREVENIR ocorrência de AMEAÇA ou violação (...)" (art. 70).

Notamos que o legislador não fala somente em ação acabada, mas em mera ameaça. Também previne a necessidade de complementação das obrigações que prescreve (sobre viagens, diversões em geral, comercialização de produtos), ciente da atualização necessária no confronto da norma com a multiplicidade de situações concretas do dia a dia.

Vendo o Juiz Menorista a ocorrência de situação de ameaça não explicitada na lei, terá que romper a inércia e agir, muitas vezes disciplinando situação por Portaria, em atendimento ao espírito do art. 227 da CF, ao ditame do art. 70 do ECA e ao princípio da precaução que, no caso, entendemos, prepondera sobre o princípio da inércia da jurisdição.

PODER DE POLÍCIA DO JUIZ DA INFÂNCIA

MIGUEL REALE, com sua habitual sabedoria, não se preocupou apenas em estabelecer a fórmula hoje tornada clássica por sua abrangência e brevidade, para definir o Direito em sua tridimensionalidade (fato-valor-norma). Estabeleceu ainda que aquela estrutura demanda ser éticamente bem fundada, formalmente bem produzida e, por último, o mais importante para nosso estudo: a norma precisa estar internalizada na consciência do coletivo a que se dirige como pré-condição de eficácia. [42]

Entendemos que a internalização somente se afere no teste que a norma enfrenta na aplicação concreta. Prima facie, o atendimento à mesma se comprova, pela consonância do comportamento social com o ‘fazer’ ou ‘não fazer’ estabelecido. Mas a prova dos nove quanto à adesão efetiva, particularmente nas normas de cunho administrativo, se fará quando do exercício pela autoridade de seu poder de polícia.

O poder de policia significa a norma em dinâmica plena, deixando seu estado potencial para ingressar no mundo real, e aí exercer, inclusive, papel formador e pedagógico a que a sociedade responderá com adesão ou transgressão e protesto.

A doutrina consagra definições de poder de polícia [43] que, para os fins deste trabalho, imaginamos, possam ser assim sintetizadas: poder do Estado de limitar direitos individuais em nome da prevalência do bem comum.

O poder de polícia se exterioriza de diversas maneiras, desde a edição de regulamentos, passando pela concessão de autorizações, até ações de fiscalização e controle, detecção de infrações, apreensão de bens e detenção de pessoas. Reforcemos a tese supra com a seguinte citação:

A manifestação material deste poder de interferência da Administração pode se dar, a partir do que BANDEIRA DE MELLO chama atos preventivos, fiscalizadores e repressivos. Dos primeiros (preventivos) seriam exemplo as autorizações e licenças as quais a Administração tem a competência de conceder ou não. Os atos fiscalizadores, de sua vez, seriam aqueles tais quais inspeções, vistorias e exames realizados pela Administração. E repressivos, os atos que importem, por exemplo, a produção de multa, embargo, intervenção de atividade e apreensões. [44]

Com essas definições podemos entender que, a par do poder de polícia específico que todo magistrado detém, como diretor do processo e autoridade administrativa da Vara, a lei atribuiu ao magistrado da área menorista, poder de polícia de caráter especial, autorizado pelo princípio da predominância do interesse público, no caso, a proteção integral à infância e adolescência, sobre o particular.

Se não, vejamos. A fiscalização que realizam os prepostos do Juízo, das quais resultam autos de infração e possivelmente, autos de apreensão de bens, ou mesmo, detenção de pessoas, são atos típicos de poder de polícia extra-fórum, extra-processo. São atos de poder discricionário administrativo, revestidos de auto-executoriedade, eis que o magistrado não precisa de qualquer assentimento.

São também ações típicas do exercício de poder de policia a concessão de autorizações de viagem e de alvarás permissivos do ingresso de menores de 18 anos em eventos ou estabelecimentos de lazer. Ao contrário do parentesco que tem o Alvará Judicial em geral, com o mandado, eis que ambos trazem ordem judicial oponível pelo mandatário ou pelo licenciado aos destinatários específicos, o alvará do Juiz Menorista, nos casos citados, é endereçado à coletividade, tem caráter de licença administrativa, logo, exercício de poder de polícia.

Definida a questão de cometimento de poder de polícia especial ao Juízo Menorista, temos, por conseguinte, a constatação de lhe ter sido também reservado não mais o poder normativo pleno ‘pré-ECA’, mas sim poder normativo residual, relacionado ao exercício do referido poder de polícia.

Aqui se relembre a máxima que determina que "quem dá os fins, deve prover os meios". Não há como exercer poder de polícia de característica especial, sem o mecanismo de, residualmente, sem ferir a legalidade, e, portanto, sem inovar, edição de normas próprias a facilitar aquele exercício. Assim ensina HELY LOPES MEIRELES:

No dizer de Cooley, «O poder de polícia («police power»), em seu sentido amplo, compreende um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado busca não só preservar a ordem pública, senão também estabelecer para a vida de relações dos cidadãos aquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem necessárias para evitar conflito de direitos e para garantir a cada um o gozo ininterrupto de seu. próprio ´´direito, até onde for razoavelmente compatível com o direitos dos demais» («Treatise on the Constitucional Limitation), 1903, pág. 829) (grifo nosso) [45]

Veja-se, portanto, que o ‘estabelecer regras’ é elemento constitutivo do poder de polícia. Assim entendeu o legislador, quando, na única regra existente em nosso ordenamento sobre o assunto, definiu no art. 78 do Código Tributário Nacional:

Considera-se poder de polícia a atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a ´´Prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.(grifo nosso) [46]

Deve ser notada a distinção de vocábulos entre lei (‘regular’) e doutrina (‘regulamentar’), com conhecidas diferenças jurídicas. Entretanto, aqui não nos aprofundaremos, aceitando, primariamente, que o vocábulo do doutrinador explica a lei, e que o sentido geral é o de ‘ordenação de regras suplementares ou subsidiárias, instituidoras, praticamente, do modo de se conduzirem as coisas, já reguladas por lei’. [47]

Destaquemos que se tem entendido que diversos órgãos estatais e paraestatais, ao receberem atribuição de polícia, recebem, necessariamente, poder normativo específico e subsidiário na área de atuação. É o caso de órgãos controladores como a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. Em trabalho sobre prerrogativas da CVM, assim esclarece o advogado com militância na área, PETRÔNIO R. G. MUNIZ:

(...)Os exemplos do Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil, e outros organismos dentre os quais se inclui a CVM, são flagrantes exemplos de que, no exercício de seu poder de polícia, esses órgãos procedem edição de normas, regulamentos e apreciam ilícitos, realizando um verdadeiro poder normativo de conjuntura dentro dos parâmetros gerais fixados em lei, o que não pode ser de outro modo, pena de inconstitucionalidade (...) (grifo nosso)

(...)Assim é que testemunhamos SANTIAGO DANTAS, no estudo Poder Regulamentar das Autarquias, concluir que: "a um órgão destinado essencialmente a coordenar atividades de particulares, e não a dirigir um corpo de funcionários, é indispensável o poder regulamentar... A ação disciplinadora seria impossível e ficariam frustradas as razões de sua criação, se o órgão se limitasse à prática de atos repressivos, sem poder enunciar, com caráter de generalidade, as normas veiculatórias de sua política econômica. Mais nítida se torna essa capacidade quando é a própria lei que faz apelo ao seu pronunciamento integrativo". [48]

Notar que todos os exemplos acima situam-se na área de funções do Poder Executivo, a quem, originariamente compete o poder normativo geral, e de quem, em face do poder de polícia delegado, se deriva o poder normativo subsidiário.

Na mesma linha, trazemos discussão relativa às diversas Agências Reguladoras que hoje atuam no controle de diversas áreas da produção nacional. Em parecer encomendado pela Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos-AGR, intitulado ‘Poder normativo de agência reguladora estadual: competências’ o professor NELSON FIGUEIREDO, da UFG, estuda o tema:

Citando MARÇAL JUSTEN FILHO: "(...) O STF teve oportunidade de examinar, ainda que com a sumariedade inerente ao julgamento de liminares, o tema da competência normativa abstrata reconhecida a uma agência reguladora. A conclusão do julgamento, por apertada maioria, indica a complexidade do tema. Mas pode assinalar que a orientação consagrada foi de que a Constituição impõe limitações à competência normativa abstrata das agências, que se pode desenvolver apenas como manifestação de cunho regulamentar não autônoma."

(...) Todavia, a competência normativa abstrata entendida apenas como "manifestação de cunho regulamentar", não exclui, antes reafirma, a competência para preencher, por ato normativo o campo da discricionariedade deixada pela norma legal ou regulamentar, quando esta provier de outra instância administrativa – por exemplo, da chefia do Executivo. [49]

Parece razoavelmente ilustrado o que defendemos, que a um poder de polícia de natureza especial concede-se poder normativo subsidiário. O debate na área da funções executivas parece levar à predominância de tal reconhecimento, ainda que com todas as ressalvas e preocupações quanto à legalidade dos atos administrativos derivados de tal faculdade.

Mas o Juiz Menorista não é preposto do Executivo e talvez melhor lhe supra a constatação do poder de polícia cometido ao Juiz Eleitoral, de que deriva poder normativo subsidiário, a ser exercido de forma a preservar a lisura do pleito que preside – bem comum mais relevante frente a interesses particulares. Como exemplo disso, vejamos extratos da Portaria 01/02 do Juiz Eleitoral da 36ª Zona de Campo Grande MS:

Considerando que compete ao Juiz Eleitoral, no exercício do poder de polícia, adotar providências necessárias para assegurar o cumprimento da lei e a manutenção da ordem pública, durante o período de propaganda eleitoral; (...) Art. 1° Proibir a instalação e o uso de alto-falantes, amplificadores de som ou similares, com a finalidade de propaganda eleitoral, nos dois sentidos da Avenida Afonso Pena, nesta capital, no espaço compreendido entre as Ruas Pedro Celestino e 14 de Julho;

Sobre a competência do Juiz Eleitoral para o exercício do poder de polícia, inclusive com a edição de Portarias, trazemos o julgado que segue, lavrado pelo TRE-MG, em que foi mantida decisão expressa em portaria:

Mandado de Segurança n.º 4151/2004. Montes Claros/184ª. Impetrante: IBOPE - Opinião Pública Ltda. Impetrado: MM Juiz Eleitoral. Assunto: Contra ato que, por meio da Portaria de nº 001/2004, suspendeu a publicação de todas as pesquisas eleitorais. Pedido de Liminar. Eleições 2004. Relator: Juiz Weliton Militão dos Santos. Decisão: Denegaram a ordem, vencido parcialmente o Juiz Antônio Lucas Pereira que extinguia o processo. [50]

Esperando haver esboçado um rumo de entendimento quanto ao poder de polícia do Juiz Menorista, das últimas citações teremos, inclusive, possibilidade de ocorrência da discrepância de um mesmo juiz, acumulando funções, poder estabelecer determinações na área eleitoral, sem a mesma contrapartida na área da infância, sendo que ambos os bens tutelados por sua jurisdição guardam grave relevância pública, com evidente primazia para a jurisdição menorista!

PODER DISCRICIONÁRIO DO JUIZ

Parece-nos que o assunto abordado neste trabalho vai de encontro a amplo e secular debate doutrinário e filosófico sobre a existência e os limites do poder discricionário do magistrado, já que o que se defende é, a teor do art. 153, sem vinculação com o rol do art. 149, a livre escolha do Juiz sobre a medida a prestar diante de fato que lhe demande ação, podendo esta ser um procedimento, a edição de uma Portaria, ou mesmo a ausência de qualquer atitude.

O debate se alimenta dos receios de abuso e arbítrio. Mas dele se vê como impossível que o Juiz não tenha ‘margem de manobra’ diante de situação concreta que escapa à minúcia das hipóteses legais.

KELSEN [51], prevendo a hipótese da lacuna, aceita a discricionariedade do Juiz. Lembre-se o conceito de ordenamento como moldura, dentro da qual o Juiz escolheria, dentre as opções possíveis, aquela ajustada ao caso concreto. Kelsen alça a discricionariedade do juiz ao patamar de integrante do próprio ordenamento, embora ressaltando, dentro da sua construção piramidal, a necessidade do fundamento de validade da decisão.

HART, igualmente, previu a hipótese da lacuna, a que chamou de "casos difíceis" (hipóteses em que a lei seria omissa ou confusa), a serem resolvidos pela ação discricionária do Juiz, que, ressalta, não se fará por escolha arbitrária ou irracional, eis que, necessariamente se balizará em norma válida.

Já RONALD DWORKIN refutou a tese dos "casos difíceis", preocupado em garantir a concepção de que no ordenamento não haveria espaço para o poder discricionário do Juiz. Para ele, o fato de os magistrados utilizarem outros critérios que não apenas as regras, na aplicação do Direito, não significa que estejam agindo discricionariamente, mas apenas aplicando elementos estruturantes do próprio ordenamento. E, neste particular, ganham relevância os princípios, pois são eles mesmos integrantes do ordenamento, e, por sua generalidade, ocupam posição de predominância sobre todas as esferas do direito.

Como não nos compete no âmbito deste trabalho ingressar na relevante discussão acadêmica, importa destacar o comum a todos os autores, ou seja, a constatação da inevitabilidade de que o magistrado recorra a mecanismos ausentes das normas específicas, mas presentes na concepção global do ordenamento, sejam eles trazidos à decisão por discricionariedade ou vinculação aos princípios.

CONTROLE DAS AÇÕES DO JUIZ DA INFÂNCIA

Do que temos defendido, pode restar como dúvida que se pretenda a instituição de um juízo plenipotenciário, exercido por ‘super-juiz’, sem controle. Nunca. Além de submetido à disciplina correicional regular, estarão sempre, suas decisões - inclusive as veiculadas em Portarias – submetidas à fiscalização do Ministério Público e à regra geral do duplo grau de jurisdição.

Aliás, destaque-se aqui a mais relevante diferença entre a Portaria do antigo Juiz de Menores e a Portaria cujo uso defendemos ao Juiz da Infância. Esta tem controle jurisdicional regular, a teor do art. 191 do ECA. A lei anterior recomendava "prudente arbítrio", alertava sobre eventual responsabilidade por "abuso ou desvio de poder", mas não firmava o controle jurisdicional [52].

Não bastassem outras razões, por esta logo se vê que a Portaria que defendemos não é, como tem sido afirmada, a mesma do antigo Código de Menores. Portanto, a prerrogativa que aqui defendemos não é arbitrária, não é excessiva, não é inconstitucional, não fere a legalidade, respeita o Estado de Direito, e está submetida a controle. É, antes, uma prerrogativa instrumental, amparada em preceito constitucional, que serve às características especiais da jurisdição peculiar da infância e juventude.

Mas, perguntemo-nos ainda: uma tão larga margem de ação ao Juiz da Infância, como a aqui defendida, poderá gerar monstruosidades, arbitrariedades e excessos? Certamente não mais do que eventualmente ocorre na jurisdição regular, em decisões que precisam de reforma. Entender diferente seria negligenciar a importância das instâncias e subdimensionar a vigilância do Ministério Público.

Cabe ao Ministério Público a fiscalização diuturna sobre a ação do magistrado, recorrendo, sempre que necessário, dos atos que considerar juridicamente descabidos, prerrogativa, aliás, facultada a qualquer jurisdicionado alcançado pela decisão. Qualquer decisão absurda sempre poderá ser corrigida por superior instância.

O magistrado está, também, sujeito a controle correicional e disciplinar próprio, que, por óbvio, observando reiteração de ilegalidades e abusos, poderá acionar adequados mecanismos de controle.

Outra forma inteligente de combate ao abuso e à teratologia é o estímulo à auto-organização dos magistrados da área. Do saudável debate, da troca de experiências, podem magistrados iniciantes somar ao seu saber jurídico o acúmulo da vivência do colega mais antigo.

E, melhor, de tais reuniões sempre poderá surgir o mecanismo eficiente e adequado da "Portaria-Conjunta", já adotado nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, dentre outros, que uniformiza argumentos e parametriza normas a serem adequadas a cada Comarca conforme suas peculiaridades. Isso contribui para, por exemplo, evitar a possível confusão de decisões injustificadamente divergentes em Comarcas vizinhas.

Não se deve esquecer ainda a aprovação de enunciados que passam a representar o pensamento vigente em determinada área, condensando e consolidando entendimentos que passam a orientar os operadores do direito.

III – BASE LEGAL

O ROL DO ARTIGO 149 É EXEMPLIFICATIVO

Do exposto no já citado artigo do Dr. TORELLI (capítulo sobre inércia do juiz), temos a sustentação da hipótese de que o Juiz baixe portarias à parte do rol do art. 149, que seria, desta forma, exemplificativo, e não taxativo, como querem muitos.

O rol é exemplificativo e dentro de uma referida hipótese, qual seja, a de regular acesso de menores a diversões públicas, como também exemplificativo é o do art. 148 (ISHIDA, op. Citada, pp. 266: "Entendemos que o rol não é taxativo, posto que não abarca todas as hipóteses de competência da vara menorista").

Basta ver que todas as competências administrativas ou complementares que são explicitamente enumeradas no Estatuto ou restam óbvias por implícitas, não foram elencadas. São exemplos do que se diz: a supervisão administrativa específica prestada aos técnicos da equipe interprofissional, eis que lhe são subordinados, como prescreve o Art. 151; a instauração – por Portaria, peculiaridade que trataremos à frente – de procedimento para apuração de irregularidades em entidades de atendimento (art. 191); a supervisão da fiscalização implícita na possibilidade de lavratura de autos de infração elaborados por servidores ou colaboradores, (art. 194); a possibilidade de instaurar procedimentos verificatórios e tomar providências não legalmente prescritas (art. 153); a concessão de autorizações de viagem (art. 83).

Sendo a lei um sistema ordenado e com lógica própria, não haveria sentido em, para artigos tão próximos, adotar o legislador métodos descritivos tão diferenciados, sem ressalva clara de exceção. Veja-se que, em momento algum, em todo o ECA há especificada vedação à edição de portarias! Há, apenas, a ressalva do art. 149 que, trazendo rol exemplificativo, exige apenas que não ocorram ordens de caráter geral para aquelas hipóteses.

Não se diz: ‘É proibido ao juiz edição de Portarias fora das hipóteses acima previstas’. Diz-se: ‘Quando da edição de alvarás e Portarias nas hipóteses acima previstas, são vedadas as determinações de caráter geral’! Parece-nos límpido. Taxativo é, sim, por exemplo, o rol do art. 122, em que uma simples partícula – ‘só’ – assim o define (art. 122: A medida de internação poderá ser aplicada quando:(...)).

Segue-se a isso jurisprudência que identifica restrição à generalidade e, portanto, vinculação ao rol do art. 149 apenas para alvará. É o entendimento, por exemplo do Tribunal de Justiça paulista, como se vê, ainda em ISHIDA (pp. 268/269):

Estabelecimento comercial – Alvará denegado em face do disposto no art. 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente – Admissibilidade – Pretendida a nulidade da Portaria Conjunta n. 1/90, sob alegação de existência de antinomia entre o caput e § 2º do art. 149 à análise caso por caso, vedando as disposições gerais, entende-se que essa proibição diz respeito somente aos alvarás e não às portarias, do caput, eis que inviável a análise particular quanto a estas. O conceito de portaria, ademais, é diverso daquele de Direito Administrativo, pois vincula particulares. Assim, a Portaria Conjunta n. 3/90, de caráter geral, não é nula porque o § 2º do art. 149 não a atinge, mostrando-se correta, por objetivar a proteção do menor nos termos do art. 227 da Constituição da Republica de 1988. (Rel. César de Moraes – Apelação 13.470-0-SP-266-91).

Assim, acolhendo (e acrescendo) a tese do Dr. TORELLI, por determinação do próprio ECA, competiria ao Juiz a faculdade de baixar as Portarias explicitadas nos artigos 149 (disciplina de entrada e permanência de criança ou adolescente em casas de espetáculo e/ou de lazer e eventos pertinentes) e 191 (apuração de irregularidade em entidade), mas também as necessárias em face do Art. 194, quando, tomando ciência de irregularidade não atacada pelo MP, pelo Conselho Tutelar ou mesmo por Auto de Infração, sendo-lhe vedada a inércia, deverá instaurar procedimento de apuração por Portaria específica.

Logo, por norma legal, por, data venia, exegese adequada e por razoabilidade, tem-se largamente rompido o rol do artigo 149, de que emerge a hipótese que defendemos de que – sem inovar, mas trazendo a lei à minúcia e com sólida fundamentação -, pode o Juiz Menorista, com parcimônia, editar ainda todas as Portarias que se fizerem necessárias ao bom cumprimento da jurisdição que lhe foi cometida.

A INTELIGÊNCIA DO ART. 153 DO ECA

Já discorremos antes sobre a impossibilidade de lacuna no ordenamento jurídico, e sobre a imperiosa necessidade de o magistrado exercitar a sua criatividade jurisprudencial. E aqui, tomemos o termo juris-prudentia na sua melhor acepção de "direito aplicado com sabedoria" [53].

Ora, ao prever a impossibilidade de lacuna em sentido lato, está o legislador, na verdade, admitindo exatamente o oposto sob ótica estrita. Ou seja, ele admite que a minúcia da lei poderá não cobrir em plenitude todas as variações e possibilidades de fatos jurídicos a serem examinados pelo magistrado. Mas alerta para a realidade sistêmica do ordenamento que, por ser um todo complementar e lógico, sempre municiará o Juiz do mecanismo que instruirá a decisão justa e adequada. E neste ponto, os preceitos constitucionais e os princípios de direito são elementos fundamentais para a ação judicante.

Com a mesma inteligência, previu o legislador menorista a impossibilidade da lacuna, impondo ao Juiz da Infância a criatividade jurisprudencial. Assim diz o Art,. 153 do ECA: "Se a medida judicial a ser adotada não corresponder a procedimento previsto nesta ou em outra lei, a autoridade judiciária poderá investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido o Ministério Público.".

Registre-se que, para o ECA a figura da Portaria, no âmbito da Justiça Menorista, guarda caráter híbrido. Sendo figura administrativa típica [54], serve, entretanto, à jurisdição, e é, por conseqüência, "medida judicial", garantida pelo Art. 153. Tanto é assim que, referindo-se a medidas determinadas com base no Art. 149, que prevê disciplina de eventos e locais de diversão por Portaria ou Alvará, estabeleceu o Art. 199: "Contra as decisões proferidas com base no art. 149 caberá recurso de apelação".

Por tal construção, data maxima venia, entendemos, inclusive, com o magistrado GUARACI DE CAMPOS VIANA, que seria impróprio o mecanismo da revisão administrativa, como a promovida pelo Conselho da Magistratura na resolução citada ao início, das Portarias Judiciais menoristas:

A competência administrativa exercida através de portarias e alvarás de caráter específico (vedadas as deliberações genéricas) está definida no art. 149 da Lei n. 8.069/90, sendo relevante esclarecer que a Lei equiparou a esfera administrativa à esfera jurisdicional, no que concerne aos efeitos jurídicos, como se vê, por exemplo, no art. 199 da Lei n. 8.069/90, admitindo o reexame do recurso através da apelação. Com essa equiparação do ato administrativo a provimento jurisdicional não tem mais cabimento, concessa vênia, a remessa de portarias dos Juízes da Infância e da Juventude aos órgãos da superior administração do tribunal (Presidência, Corregedoria, Conselho de Magistratura) nem, tampouco, o reexame de ofício, por quaisquer desses órgãos. Vale dizer, se não houver recurso de apelação, não pode a segunda instancia impor, por exemplo, a cassação ou alteração de uma Portaria específica. Opera-se a denominada "coisa julgada administrativa" [55]

Com tal entendimento posicionou-se o STJ, por sua 4ª Turma, em julgado referente a Mandado de Segurança impetrado pelo Ministério Público em face de Portaria Conjunta expedida por Juizes da Infância e da Juventude da Comarca de São Paulo: "Ato de natureza jurisdicional. Havendo recurso próprio para atacar a matéria contra a qual se insurge a parte, descabido é o uso do mandado de segurança. Recurso ordinário improvido" (ROMS n° 1. 343/SP, 4S Turma, Relator o Senhor Ministro Barros Monteiro, DJ de 23.05.94).

Logo, a Portaria pode revestir-se, de per si, do caráter de "medida judicial", eis que ela pode ser o instrumento para as "providências necessárias". E nem se diga que faltaria a tal mecanismo a oitiva do Ministério Público, determinada no art. 153, já que, de todas as Portarias sempre faz o Juízo chegar cópia ao parquet, a quem, em papel de fiscal da lei competirá, quando necessário, atacar a medida por recurso adequado.

LEGALIDADE DAS PORTARIAS NORMATIVAS

Têm objetado, os que sustentam impossibilidade de edição de Portarias, que as mesmas ferem o princípio da legalidade – ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa, senão em virtude de lei (CF - art. 5º, II). Parece-nos que não se sustenta tal hipótese. JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que "o princípio da legalidade (...) não exclui atuação secundária de outros poderes" [56]. E cita o italiano MASSIMO SEVERO GIANNINI:

"Não é necessário que a norma de lei contenha todo o procedimento e regule todos os elementos do provimento, pois, para alguns atos do procedimento estatuído e para alguns elementos do provimento pode subsistir discricionariedade."

O constitucionalista conclui que "isso quer dizer que os elementos essenciais da providência impositiva hão de constar da lei", ou seja, a lei será sucinta, vindo a minúcia por norma própria.Esclarece ainda a distinção entre ‘legalidade’ e ‘reserva de lei’, aquela submetendo abstratamente a coletividade ao império da lei, genericamente, e a última, determinando que temas discriminados só poderão ser regrados por lei formal, emanada do Legislativo.

Não há reserva de lei nos temas da Infância. Temos o art. 227 da CF, preceito vinculante de todo o ordenamento e lei específica, que a ele se submete, não o revogando, por absurdo, e, mais, efetuando ressalva de omissão legal, entendendo, no art. 72 ("As obrigações previstas nesta lei não excluem da prevenção especial outras decorrentes dos princípios por ela adotados") que o ECA não exauriu as disposições relativas à proteção da infância e da adolescência.

Mais evidente a tese se torna no exame do art. 3º: "A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou POR OUTROS MEIOS, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade".

A Portaria Judicial fundamentada, no exercício do poder discricionário (art. 153), resguardado em poder normativo subsidiário, implícito na atribuição de poder de polícia menorista depreendido das várias atribuições da espécie cometida ao Juiz da Infância e da Juventude, é ‘outro meio’ previsto no art. 3º, tudo, em última instância, atendendo a preceito inscrito no art. 227 da Carta Maior. Não há como, de plano, atribuir-lhe ilegalidade.

A legalidade se reforça no exame do que JOSÉ AFONSO DA SILVA define como princípios complementares e garantes do princípio da legalidade. A inafastabilidade do controle jurisdicional, o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada, como ainda a irretroatividade das leis. Logo, sendo a Portaria Judicial passível de controle jurisdicional, como prevê o art. 199 - lido extensivamente para abrigar no rito os comandos ‘extra art. 149’ –, se não fere os demais princípios complementares, não há ilegalidade.

Fechemos aqui, com o exemplar trecho de voto acolhido por unanimidade, proferido pelo Desembargador ALMEIDA MELO quando relatou na 4ª Câmara Cível do TJMG a Apelação 190.759-1/00:

(...)As portarias, atos normativos que são, explicitam o conteúdo da lei, a fim de que sua aplicação seja possível, alcançando-se o interesse que justificou a criação legislativa. Certamente, não seria legítimo que tal instrumento alterasse o comando legal ou ultrapasse seus limites. Assim, fala-se na impossibilidade de que o ato normativo inove. Contudo, a vedação à inovação não retira dos atos normativos a possibilidade de interferirem ou acrescentarem normas, até porque, se assim fosse, nada justificaria sua existência. A máxima que consagra a proibição de inovação traduz, em verdade, a idéia de que há uma relação de subordinação entre tais atos e a norma legal, razão pela qual a norma só é legítima se descansar em comando legal. A venda de bebidas alcoólicas é proibida a criança e adolescentes, nos termos do art. 81 da Lei 8.069/90. O dever que surge para a sociedade como um todo, e para a apelante no caso particular, encontra sua origem na lei que o obriga a realizar conduta omissiva, qual seja, deixar de vender bebidas alcoólicas a menores. A portaria nada mais faz que tornar esta norma exigível, sem lhe alterar as características próprias, até porque o estabelecimento somente se desincumbe do dever legal, deixando de comercializar bebidas alcoólicas, quando investiga a idade de seus "clientes", pois o empirismo não é suficiente para evitar a infração legal. Portanto, não há ilegalidade na exigência de apresentação do documento de identidade." (...) [57] (grifo nosso)

A POSIÇÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Acórdãos pesquisados em que o STJ negou recursos contra sentenças condenatórias baseadas em descumprimento de Portaria de Juiz Menorista [58], trazem indicações de que, também naquela Corte, parece correr entendimento que somaria com os que defendem rol estrito. Entretanto, não localizamos decisões em que o mérito indicasse tal posicionamento de forma cabal e expressa.

De outro lado, em julgado que passamos a considerar, manifestou-se o STJ sobre o tema, de maneira favorável à edição de Portarias, ressaltando a condição peculiar da jurisdição menorista.

Foi em caso em que o Ministério Público do Estado do Maranhão insurgiu-se contra Acórdão da segunda instância que manteve válidas duas Portarias da Juíza da Comarca de Imperatriz-MA (MS n° 8.563 (1997/37892-6)).

A primeira Portaria (01/96) objetivava inibir "a permanência de crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos nas ruas, praças, casas de videogames, fliperamas, bares, boates ou congêneres, logradouros públicos, parque de diversões, clubes, danceterias, após as 20:30, salvo se acompanhados estritamente, pelos pais ou responsável". A Portaria complementar (02/96) determinava procedimento investigatório e expedição de mandado de condução das crianças e adolescentes nas situações referidas.

Em julgamento relatado pelo Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO a 4ª Turma do STJ, ao negar a segurança, por unanimidade, firmou: "...esclareço que as Portarias impugnadas pela via do mandamus não encerram conteúdo teratológico" e fundamenta com a transcrição de trechos do Acórdão atacado, em que se declara:

"É atribuição da autoridade judiciária disciplinar, mediante portarias e alvarás, tudo o que vise a proteger a criança e o adolescente, como pessoas em condição de desenvolvimento, resguardando-as de toda sorte de negligência, que coloque em risco a sua dignidade e o respeito a que têm direito" acrescendo que "isso não implica em violação aos seus direitos e garantias fundamentais". (grifo nosso)

Parece óbvio que, ao basear seu voto vencedor nos termos do Acórdão do Tribunal maranhense, que fez transcrever, emprestou-lhe o eminente relator sua concordância, fazendo-o, naquele caso, pronunciamento do próprio STJ.

Em outra transcrição, é destacado o caráter especial da jurisdição menorista, ao afirmar que:

"... o permanente estudo das questões atinentes à criança e ao adolescente, constitui obrigação dos setores organizados da sociedade, dentre os quais o Poder Judiciário, que não pode se furtar de oferecer a sua parcela de contribuição, coliinando escopo de conferir-lhes proteção integral...".

Entendemos reforçar-se neste ponto do voto a necessidade da criatividade do magistrado que, estudioso da matéria e atualizado sobre as demandas, deverá sempre oferecer respostas novas e soluções adequadas a ramo do direito de dinâmica tão veloz.

Em nova transcrição nos instrui ainda o ilustrado voto, sobre a justa compreensão do que seriam as "medidas de caráter geral", vedadas pelo Estatuto no Art. 149:

"De outra parte, não se pode acolher a afirmação de que tais Portarias contenham determinações de caráter geral, se a lei prevê medidas fundamentadas, caso a caso. Basta que se leia o teor dessas portarias, para se tenha certeza de que são especificamente dirigidas aos menores com idade máxima de até 14 anos de idade, desde que desacompanhados de seus pais ou responsável, após as 20:30 horas, e bem assim aos menores que estejam perambulando pelas ruas, na condição de pedintes, e consumindo drogas, mostrando-se razoável a medida tomada pela impetrada". (grifo nosso)

Ou seja, o TJ-MA entendeu, secundado pela Corte Superior, que a fundamentação ciosa e a objetivação clara – não restrita ao rol do art. 149! -, desde que respeitados os princípios da proteção integral, se bastam para a justeza da ordem judicial.

O recurso questionava ainda Portaria que, complementar à primeira, determinava procedimento investigatório para os casos de apreensões de menores, argumentando que, por baseada no Art. 153, estava a mesma viciada de irregularidade por ausência de oitiva do MP. E aqui, pronunciou-se o STJ:

"Quanto à Portaria n° 02/96, a irresignação recursal vem pautada no artigo 153 da Lei n° 8.069/90. No entanto, não restou caracterizada a mencionada contrariedade, já que foi determinada a oitiva do Ministério Público, o que foi cumprido com a expedição do oficio n° 77/96 (fis. 14), ficando ciente a Promotora da Infância e Juventude do inteiro teor da referida Portaria. Ademais, como bem disposto no Parecer do Ministério Público Federal, ‘percebe-se que é da natureza do impulso oficial a desnecessidade da oitiva prévia do Ministério Público’ (fis. 275)".

Outro interessante pronunciamento é o que se colhe no exame da negativa do STJ, por sua 4ª Turma em julgamento – já antes mencionado - de Recurso em Mandado de Segurança nº 1.343 (91.0020499—4) SP impetrado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra Portaria Conjunta dos Juizes da Infância e da Juventude Comarca de São Paulo (nº 03/90, que estabeleceu restrições à entrada e permanência de criança ou adolescente em locais de diversões públicas, independentemente de acompanhamento dos pais ou responsáveis).

O recurso foi vencido por descabido o mandado de segurança quando a lei prevê, como é o caso, o recurso de apelação. Mas do caso, tem-se que a fundamentação do impetrante argüia que "b) as medidas deverão ser fundamentadas caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral". Constam do relatório do Acórdão as circunstâncias da decisão da Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo que denegou a segurança:

"sob o fundamento de que a Portaria em tela tem amparo no art. 227 da Constituição Federal e no art. 6º da Lei n 8.069/90, sendo prescindível a ouvida prévia do Ministério Público em face da natureza do ato. Aduziu o V. Acórdão ser inexeqüível numa cidade como São Paulo a exigência de serem as portarias fundamentadas caso a caso, vedadas as de caráter geral".

Note-se aqui o recurso à determinação constitucional que estabeleceu o princípio da proteção integral e especial à infância e adolescência, e mais, a verificação de que a atividade jurisdicional, ao interpretar o ECA, deverá ter em conta, como diz o Artigo 6º, "as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento".

Notar mais, que o Tribunal de São Paulo manteve íntegra Portaria Conjunta – que permanece em vigor! - sob argumento de ser inexeqüível a fundamentação caso a caso e a vedação ao seu caráter geral, dadas as peculiaridades e complexidades da Comarca de São Paulo!

A LEI BRASILEIRA AMPARA A ATUAÇÃO DE OFÍCIO DO JUIZ

Sempre em busca de fazer justiça, tem-se que o Direito é mecanismo e o processo, ferramenta. Logo, não podem estes últimos obstar o alcance do primeiro. Por visão assim sensível, estabeleceu o ordenamento jurídico nacional diversas exceções que privilegiam a atuação de ofício do Juiz, em prol do equilíbrio da demanda, de forma a que, desta, se alcance efetiva justiça.

Exemplos do que se diz, na área cível, são os dispositivos que permitem ao Juiz decidir cautelares sem audiência das partes (Art. 797 CC) e optar pelas que "julgar adequadas" (Art. 798 CC). Diz ANTONIO LUIZ BUENO DE MACEDO [59] que esse poder concedido ao Juiz, "de deferir qualquer medida acautelatória, tendo em vista a situação de cada caso, é um poder essencialmente discricionário, considerando a oportunidade e a conveniência de sua adoção, denominado pela doutrina como Poder Geral de Cautela do Juiz".

Citado pelo mesmo autor, GALENO LACERDA, in Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, VIII Vol, Tomo I, 2ª Edição, considera tal atribuição como a mais importante e delicada atribuição confiada à magistratura. Para ele,

"no exercício desse imenso e indeterminado poder de ordenar as medidas provisórias que julgar adequadas para evitar o dano à parte, provocado ou ameaçado pelo adversário, a discrição do juiz assume proporções quase absolutas. Estamos em presença de autêntica norma em branco, que confere ao magistrado, dentro do estado de direito, um poder puro, idêntico ao do pretor romano, quando, no exercício do imperium, decretava os interdicta". (grifo nosso)

Notar que, nitidamente, a lei busca garantir o equilíbrio da relação processual, através da intervenção do Juiz em favor de alguém em episódica desvantagem. Isso não parcializa a sua atuação, nem o macula de suspeição, eis que o fará sempre dentro da legalidade e respeitando critérios de razoabilidade, que explicitará na fundamentação do decisum. Tal intervenção, facultada pelo legislador, é parte indissociável da função judicante, pois integra o mister de buscar a solução justa.

Não esqueçamos de outras licenças concedidas ao Juiz para atuar em prol do equilíbrio da relação processual, sempre almejando a justa decisão. Lembramo-nos aqui da possibilidade, ainda que em caráter de exceção, do uso do ‘juízo de eqüidade’ quando o juiz pode julgar sem qualquer limite material, resolvendo a controvérsia sem recorrer a uma norma legal preestabelecida[60]. E ainda anote-se a possibilidade de ‘inversão do ônus da prova’, como consentida pelo Código de Defesa do Consumidor.

Ora, se a lei protege o mais fraco, o que tem perspectiva de ver perecimento de direito, não podemos olvidar, trazendo, por analogia, o mesmo permissivo para o âmbito da infância e da juventude, que, frente a um sistema econômico excludente, a uma ótica empresarial que preza a lucratividade a qualquer custo, a executivos que não cumprem o dever constitucional de prioridade à infância, acham-se, criança e adolescente, sempre em situação de inferioridade e subjugação.

Portanto, entendemos plenamente razoável que, se a lei facultou a atuação de ofício em casos em que pretendia preservar o equilíbrio da lide, esteja o Juiz da Infância autorizado a, tendo em conta o conteúdo do Art. 6º do ECA ("Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento") [61], atuar de ofício, criteriosa e comedidamente, é certo, mas atuar sempre, em defesa da infância desfavorecida. E isso, no entendimento aqui defendido, se fará, freqüentemente, pela via da edição de Portarias normativas.

 

IV – NECESSIDADE PRÁTICA DA PORTARIA

ÉPOCA DE TRANSIÇÃO

No Brasil diz-se de leis que numas vezes "pegam", noutras "não pegam". O comentário contumaz ressalta a ilusão recorrente, neste "país dos bacharéis", de que um novo diploma legal, por si, provoque transformações na realidade. Há leis que vêm referendar o que já consagrou a jurisprudência pela consulta ao consuetudinário. Exemplo disso é o novo Código Civil que põe em norma o que já era consenso social no concernente a casamento, conceito de ‘mulher honesta’, união estável, etc. Há também casos de leis que violentam o sentimento médio da comunidade e terminam em desuso, como já vimos.

Mas há outras leis, por vezes, que surgem mais como um anseio do que como realidade. É o Estado exercendo sua necessária liderança em busca de fazer a sociedade avançar. Um exemplo simplório disso é o dispositivo da lei de trânsito que tornou obrigatório o uso do cinto de segurança. Não havia a prática, consagrada, e nem a compreensão de sua justeza e necessidade. A lei veio, inicialmente, com fins pedagógicos. Até que se consolidasse, ‘pegasse’ efetivamente, vivenciou-se grande período de transição, em que aprendemos todos, motoristas antigos, motoristas noviços, instrutores, guardas de trânsito, a conviver com a nova realidade. Com paciência, alguma tolerância, e, a seguir, maior rigor na aplicação da norma, atingimos hoje um estágio em que é minoritário o setor que ainda permanece discordante.

As estatísticas vieram provar a validade e a importância da lei. Também o respeito pelo motorista à faixa de pedestres, no início, era reticente, tornando-se aos poucos mais efetivo, em parte pela ação dos guardas de trânsito, em parte pela atitude do próprio pedestre. Populares, tantas vezes ‘se meteram’ entre carros para esbravejar reivindicando a efetividade da faixa. Aos poucos vai se criando uma nova consciência coletiva, uma nova ética de trânsito.

Com novas leis, com fins pedagógicos, será sempre assim. Não basta que se as faça e publique. Há que divulgá-las, esclarecê-las, conquistar adesão, fazer com que ‘peguem’, com que o popular a reivindique. Com o ECA tem sido assim. É uma lei ainda nova. E por quinze anos já, vivemos uma travessia inacabada entre paradigmas éticos diferenciados. Creio que, como diria HANNA ARENDT, estamos entre o não mais, de um tempo que já terminou, e o ainda não, de um outro tempo que ainda não começou [62].

Da mesma forma que se concedeu ao guarda de trânsito elasticidade na disciplina do trânsito, nos primórdios da prática do cinto de segurança, temos o Juiz da Infância em posição de zelador privilegiado da divulgação e conquista de adesão ao Estatuto e, portanto, carecendo também de ‘elasticidade’ – discricionariedade especial e própria, como, entendemos, a própria lei prevê para exercitar seu mister nessa fase de transição.

Por isso, é contraproducente, sob a ótica da efetivação do ECA, a pretensão de restringir-se as Portarias ao rol do seu artigo 149. O juiz precisa da ferramenta mais ampla, que, a nosso ver, o Estatuto lhe faculta, para, dentre outras funções, cumprir esse papel promocional de propagar princípios e divulgar normas.

O rei de Espanha, D. JUAN CARLOS DE BOURBON, é um exemplo vivo de transição bem comandada. A um estado massacrado por décadas de autoritarismo franquista, até para dissolver o medo que estados policiais impregnam na sociedade, foi necessária a figura imponente do monarca como garante do processo democrático. A combinação de estatura moral, autoridade firme e visível e decidido espírito democrático, permitiu os Pactos de La Moncloa e a consistente retomada democrática.

Recorda-se como um dos grandes momentos da história do século XX o monarca, comandante em chefe, em uniforme militar reprimindo uma tentativa de golpe de Estado patrocinada por representantes do velho regime.

Pedimos os descontos óbvios pelas impropriedades da comparação, que não pode ser lida em literalidade. Fiquemos com o significado: de uma realidade marcada pelo poder autocrata absoluto, abriu-se nova era de liberdade e participação na qual foi essencial o simbolismo de um poder central ainda forte.

O elemento central da construção é o comprometimento inafastável da referida autoridade com o objetivo a ser alcançado na transição: gestão democrática e participativa. Tal comprometimento é condição sine qua non para a ação do Juiz da Infância, como a que aqui se defende.

PORTARIAS-MEIO: UMA NECESSIDADE

No cotidiano do Juiz menorista é freqüente a necessidade de vigilância sobre os direitos da infância e da adolescência. Por isso é que ele conta com um corpo especial de colaboradores, que vai a campo zelar pela política da proteção integral, efetuando autuações, prevenindo violações e prestando esclarecimentos e orientações.

Note-se que tal ação se dá em caráter de complementaridade à ação dos Conselheiros Tutelares. Não há sobreposição de tarefas, sendo ambas as atuações fundamentais.

Note-se ainda que o ECA dá ao Juiz a determinação de, na ausência do Conselho Tutelar, suprir-lhe as tarefas. Por extensão necessária, tem-se que, em caso de Conselho apenas formalmente existente, por inoperante, sem prejuízo das ações correicionais que promover o MP, não poderá também o Juiz quedar-se inerte frente a tão grave lacuna operacional, devendo suprir as tarefas mais urgentes por intermédio do seu corpo de serventuários e colaboradores. O princípio da proteção integral e a vedação da inércia compelem o Juiz a que compareça, sempre, um passo à frente das demandas.

No cumprimento de tal mister, é necessário ao Juiz criar as ferramentas para a sua ação. Para tanto ele promove reuniões, oficia, presta esclarecimentos, põe seus prepostos em campo, visita a rede de ensino, mobiliza voluntários, realiza palestras, estimula ajustamentos de conduta.

E é neste ponto que, muito freqüentemente, se faz necessária a figura da ‘portaria-meio’ (também tratada mais propriamente no capítulo referente ao Poder de Polícia do Juiz Menorista).

Exemplo de tal mecanismo é a Portaria da Juíza da Vara da Infância da Comarca de Teresópolis que determina aos clubes e casas de espetáculos que comuniquem previamente sua agenda ao Juízo, independentemente da faixa etária pretendida ao espetáculo ou evento. Por impossível a onipresença e onisciência do magistrado, tal informação se torna a ferramenta pela qual pode o Comissariado, sob orientação do Juízo, organizar suas escalas de fiscalização, e direcionar seus esforços de maneira conseqüente e eficaz.

Outro exemplo possível: entidades de atendimento que devem ser fiscalizadas pelo Juízo. Suponha-se que em determinada cidade haja um número elevado de entidades, e que, a par da visita à instituição, entenda o Juiz necessário que lhe venha periódico balanço das atividades, o que determinará por meio de Portaria. Seria um caso típico de criação de ‘obrigação-meio’ visando verificação de cumprimento de ‘obrigação-fim’ (fiscalização das entidades).

Esse tipo de ‘portaria-meio’, sempre fugirá ao rol do artigo 149. Mas sem a mesma, muito freqüentemente estará o Juiz da Infância de mãos atadas para o cumprimento inclusive das obrigações postas no próprio Art. 149. Relembremos que ‘quem dá os fins deve prover os meios’!

COMBATE À MOROSIDADE

Se a tão propalada morosidade do Judiciário é fatal para as possibilidades de efetivação da decisão justa ("Justiça atrasada é injustiça qualificada e manifesta", cfe. RUI BARBOSA [63]), ela se torna inominável violação a um bem maior, no caso da justiça menorista ("Muitas coisas que nós precisamos podem esperar. A criança não pode. Agora é o tempo em que seu ossos estão sendo formados; seu sangue está sendo feito; sua mente está sendo desenvolvida. Para ela nós não podemos dizer amanhã. Seu nome é hoje", cfe. GABRIELA MISTRAL).

As Varas da Infância vivem sempre em sobrecarga, dadas as suas peculiaridades e o agravamento dos problemas sociais decorrentes da injusta e secular estruturação da sociedade brasileira, cujas disparidades se acentuam no modelo econômico concentrador e excludente, vigente em último molde há mais de uma década. O Juiz é demandado por todos os lados em situações sempre eivadas de urgência e imperiosidade. O acréscimo da tutela de direitos do Idoso [64] veio agravar esse quadro.

Disso resulta que a Portaria, muitas vezes, pode funcionar como norma de economia processual e administrativa nos termos em que leciona LUIZ FELIPE SALOMÃO: "A economia processual visa obtenção do máximo resultado na atuação da lei com mínimo emprego possível de atividades processuais" [65].

Ao regular situações específicas (como, por exemplo, precauções a observar na freqüência de menores a Academias de Artes Marciais) para todo um segmento de atividades voltadas a menores de dezoito anos, pode o Juiz estar evitando a desnecessária análise caso a caso, pela via administrativa, de questões que se repetiriam ad infinitum, seja em exame de alvarás ou por via de lavratura de auto de infração.

A Portaria, nestes casos, informa, esclarece, uniformiza e torna desnecessário o acesso continuado à máquina judiciária, reduzindo sua sobrecarga de trabalho. Torna-se um elemento de racionalização produtiva, liberando juiz e serventuários para implementarem maior celeridade às suas rotinas e melhor atenção a ações mais relevantes.

EDIÇÃO DE PORTARIAS – UM MODO DE FAZER

Se defendemos que a Portaria tem um papel pedagógico, não podemos esquecer que a boa pedagogia, como ensinou PAULO FREIRE, é, necessariamente, dialógica. Como conciliar tal proposta com o caráter impositivo da Portaria Judicial?

Creio que pode nos auxiliar o exemplo produzido na Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Teresópolis, em que a Juíza Titular, INÊS JOAQUINA SANT’ANA SANTOS COUTINHO promoveu interessante experiência ao baixar a Portaria 012/2004 cuja ementa diz: "Regulamenta a freqüência de crianças e adolescentes em Academias de Ginástica, Musculação, Dança, Natação, Tênis, Artes Marciais e congêneres".

Em face de noticiadas irregularidades na freqüência de menores de dezoito anos a academias de ginástica e artes marciais – tais como acesso a esteróides anabolizantes, gazeta escolar, exercícios inadequados, com comprometimento ortopédico – esboçou a magistrada um elenco de itens para edição da Portaria.

A seguir, convidou todas as academias da cidade para uma reunião, na qual explicou suas razões e intenções e apresentou os pontos iniciais da futura ordem administrativa. Ocorreram queixas, sugestões, pedidos de esclarecimento, num franco e saudável debate.

Foi aberto um prazo para sugestões por escrito e diversas academias e profissionais da área as apresentaram. Foram ouvidos profissionais da área médica, o Conselho Regional de Educação Física e confederações desportivas. A partir daí, foi elaborada uma pré-minuta da Portaria. Em nova reunião, novos debates, dos quais entendeu-se necessário destacar, por suas especificidades, capítulos especiais para segmentos como dança, artes marciais e capoeira. Foram realizados, então, encontros com os profissionais e empresários daquelas áreas.

Finalmente, com alto grau de consenso, a Portaria foi baixada, atendidos os interesses de crianças e adolescentes na visão do Juízo e acatada a maior parte das sugestões dos destinatários da ordem. Deste modelo, resultou compreensão, comprometimento e maior consciência quanto as políticas voltadas à infância e à adolescência.

Entendemos que, em grande parte dos casos, tal modelo participativo pode ser adotado na edição de Portarias. Aliás, a gestão participativa das Varas da Infância, mais que em qualquer outra vara especializada, deveria ser um objetivo a ser constantemente perseguido.

É difícil romper com a tradição hierárquica, rígida e autoritária que transfere indevidamente autoridade oracular do Juiz ‘prestador jurisdicional’ ao Juiz ‘gestor’. Mas é uma tarefa necessária. Exige nova postura tanto dos magistrados como dos servidores. Estes, chamados a não só cumprir tarefas pré-determinadas, mas, sem abrir mão de suas próprias reivindicações, a pensar o trabalho de forma solidária e cidadã, contextualizá-lo, dar-lhe alma e propósito.

Daí podemos no futuro alcançar modelos participativos voltados ao público interno e mais, modelos gerais e externos como um hipotético ‘Fórum da Criança e do Adolescente’, que reuniria mensalmente, em pé de igualdade, o Juiz Menorista, o Ministério Público, o Conselho Tutelar, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, e as organizações não governamentais ligadas ao tema.

PORTARIAS – CLASSIFICAÇÃO, RITO E CONTROLE

Nos levantamentos decorrentes da Resolução 02/06 do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sob comando da Drª Inês Joaquina Sant’Ana Santos Coutinho, promovemos, na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca de Teresópolis, estudo sobre as Portarias alcançadas pela anulação.

Por força da metodologia adotada, terminamos por obter uma forma de classificação das Portarias, que aqui reproduzimos, por entender que pode servir de parâmetro para eventuais normas a serem baixadas em caso de se pretender um regramento da ação dos magistrados nesta área.

Também foi elaborada uma proposta de rito e controle, que, dado o interesse comum a este trabalho, reproduzimos na seqüência.

QUANTO À CLASSIFICAÇÃO, entendeu-se naquela Vara que as Portarias poderiam ser classificadas, em categorias como abaixo:

CATEGORIA

DISCRIMINAÇÃO

JUSTIFICATIVA

Administrativas

Que explicitam providências e ordens administrativas internas, das quais necessário fazer prova a terceiros.

Porque necessárias ao bom cumprimento da função judicante de natureza peculiar que exerce o Juízo Menorista

Baseadas no Artigo 149 do ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Que, à luz do Artigo 149, regulamenta ingresso, acesso e funcionamento de estabelecimentos/ eventos de lazer, diversões e similares.

Porque assim determinado no E C A e no CODJERJ (art.92, IV e VII);

Baseadas no Artigo 4º do ECA e em Lei existente

Que especificam deveres implícitos no dever geral de proteção integral, conforme estabelecidos em outra Lei vigente.

Porque se baseiam em lei já existente, divulgando-a para exigência de seu cumprimento

Baseadas no Artigo 4º do ECA e em outro Artigo do próprio Estatuto

Que especificam deveres implícitos no dever geral de proteção integral, conforme estabelecidos em outro Artigo do próprio ECA.

São exemplos as portarias que, à luz dos arts. 4º, 13 e 245,obrigam os nosocômios a informarem ocorrências envolvendo menores de dezoito anos

Baseadas no Artigo 4º do ECA e no Artigo 227 da Constituição Federal

Que especificam deveres implícitos no dever geral de proteção integral, conforme interpretados pelo Magistrado.

Com a maior margem de discricionariedade, estas dependentes de sólida justificação,a priori, não poderiam se dar em caráter liminar

Baseadas no Artigo 95 do ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Que determinam providências relativas a entidades de atendimento decorrentes da fiscalização atribuída ao Juiz Menorista.

São decorrentes das atribuições fiscalizatórias do art. 95 do Estatuto, instrumentalizando o encargo

Referentes a Projetos de Apoio e Assistência a Crianças e Adolescentes

Que instituem ou regulamentam Projetos de Assistência aos jovens atendidos pela Vara.

Como exemplo, a que institui aJustiça Terapêutica na Comarca

Como se vê da proposta, ela obrigaria o magistrado à reflexão sobre o enquadramento de suas iniciativas na área, percebendo, necessariamente seu o revestimento legal.

QUANTO AO RITO, sugeriu-se que as Portarias sejam processadas em rito célere, mas com padrão técnico adequado, de prestação jurisdicional de caráter especial. Assim, mereceriam:

-Registro no Sistema de Informática (no Rio de Janeiro, Sistema DCP, conhecido como Projeto Comarca);

-Autuação nos padrões processuais, mas em capa diferenciada;

-Oitiva do MP, ressalvada a hipótese em que a Portaria teria caráter de medida liminar

-Diligências e audiências eventualmente necessárias, inclusive reuniões de oitiva das partes que serão alcançadas pela medida;

-Decisão, que será a base para os considerandos;

-Publicação da Portaria;

-Prazo para recurso contado regularmente das ciências de praxe, inclusive dos destinatários da ordem. O recurso cabível, seria o de apelação, à luz do Art. 199, estendido analogamente a espécies não contempladas, em leitura estrita, pelo Art. 149;

-Trânsito em julgado. Cumpridos os prazos, ter-se-ia coisa julgada, com sentença, exigível à luz do Art. 249;

-Divulgação de redação definitiva, caso haja alterações determinadas pela superior instância;

-Arquivamento do procedimento, da forma usual aos demais feitos da Vara;

-Arquivamento da Portaria editada em Pasta própria de Gabinete, na qual se anotaria o número do processo e a caixa do Arquivo Geral;

QUANTO AO CONTROLE - Havendo a adoção das anteriores proposições, articuladamente, seria necessário promover adequações nos sistemas de informática do Tribunal, tais como:

-Criação de codificação para espécie própria de ação, da qual conste remissão à classificação supra mencionada;

-Separação do mecanismo de baixa do procedimento, de forma a que, mesmo com a baixa e arquivamento do feito pudesse ser mantida em existência a Portaria dele resultante;

-Campo para indicação do prazo de vigência da Portaria, a partir do qual a mesma seria automaticamente baixada no Sistema;

-Comando para baixa da Portaria com prazo indeterminado de vigência;

-Demonstrativos discriminados das Portarias editadas por cada Juízo, contendo nº, ementa, data e prazo de vigência, facilitando os controles, próprio, do Ministério Público e da Corregedoria;

-Relatório das Portarias em vigor, com suas ementas;

-Acesso ao texto completo (ou resumido) da Portaria.

Com as sugestões acima, entendemos ser possível, caso haja o reexame antes ventilado, não só manter o indispensável mecanismo de ação do magistrado, como promover sua maior qualidade e eficácia.

Ao mesmo tempo, ao magistrado estaria dado o imperativo de mais profunda reflexão sobre cada ordem baixada, inibindo, assim, eventuais impropriedades.

CONCLUSÃO

De todo o exposto, concluo que o "x" de toda a questão é a necessidade de, à luz do art. 227 da CF, fazer respeitar a mens legis que perpassa todo o ECA. A doutrina da proteção integral exigiu que o novo estatuto restringisse os poderes antes concedidos ao Juiz de Menores. Tais poderes foram embasados em nova ótica e partilhados de forma a, assim divididos, gerar melhor controle social sobre o seu exercício, e maior garantia de democracia na gestão de políticas e ações voltadas a segmento tão importante para a sociedade. Mas o mesmo estatuto não permite que a criança fique desassistida. Ele robusteceu o conceito de assistência (sentido amplo), e alargou o leque dos responsáveis.

Como nova mentalidade não se implanta por decreto, vivemos um momento de formação de consciências. E aqui, definitivamente, considerado que a relação do menor com a sociedade demanda proteção especial aos direitos do infante, não pode o Juiz da Infância, na omissão de outros personagens, na observância de abusos, permanecer inerte à espera de que os estragos se façam, para só então agir.

Ao lidar com menores de 18 anos, estamos lidando com fragilidades que, se adequadamente preservadas, serão nossos tesouro e força futuras. Não é possível que o juiz seja manietado de ao menos, no que lhe couber, tentar impedir que os matadores de casulos, os assassinos de crisálidas prevaleçam.

Assim, considerado que vivemos uma fase de transição, entendemos que a proteção judicial à infância e adolescência se dará, legitimamente, muitas vezes, por força do poder de polícia cometido ao Juiz Menorista, de que deflui poder normativo subsidiário, através da edição de Portarias Judiciais, nunca adstritas ao contido no artigo 149. Como a Portaria tem caráter de decisão judicial, passível de apelo, caberá aos eventuais prejudicados, e ao Ministério Público, em particular, com sua hoje reconhecida, louvável e militante independência, exercer vigilância sobre as mesmas, tomando as medidas cabíveis, quando necessário. Aos Juízes, por sua vez, data venia, caberá parcimônia no uso do instrumento, evitando ampliações excessivas e interpretações exageradas, orientando-se pelas construções dos coletivos de magistrados da infância (portarias conjuntas, enunciados, etc).

Magistrados com experiência na área menorista vêm solicitando a revisão do ECA para melhor adequá-lo à concretude da jurisdição. Se isso vier a ocorrer, será a hora de melhor explicitar tais poderes do Juiz Menorista, coibindo assim os embates desgastantes decorrentes de equívocos de interpretação, particularmente do art. 149.

De todo modo, esperemos que o TJRJ, que vem sendo vanguarda em diversas áreas da organização judiciária, com a gestão do Fundo Especial, a informatização plena, a criação dos Juizados Especiais, o treinamento funcional, também o seja no entendimento do caráter peculiar e especialíssimo da jurisdição menorista, para a qual se demanda meios de ação também especiais, como as Portarias Judiciais, não adstritas ao art. 149.

O que não se pode é deixar que haja lacunas de atuação, vácuo de responsabilidade, falta ao dever e carência de poder que prejudiquem o alcance do fim maior do ECA, que é a proteção integral.

Infância desassistida é extermínio do futuro. Os que dela se servem impunemente matam auroras antes que cheguem a ser manhãs. Inércia frente a nossas crianças nas sarjetas se prostituindo e nos becos consumindo drogas incapacitantes, ou coisificando-se em belicosos ‘pitboys’, bulímicas ‘barbies’ ou descerebradas ‘cachorras’, frente à manipulação midiática, nos faz cúmplices da desgraça e do extermínio do que, nas promessas da infância, nos resta de esperança e belo.

Há que preservar esse ‘belo’, que nos ensina e nos resgata. Esse belo no sentido amplo da filosofia grega, da ética como estética. O belo imortalizado por JOÃO CABRAL DE MELO NETO no presépio final de "Morte e Vida Severina" quando a vizinhança pobre canta, renovada de firmeza contra a desgraça e extasiada de esperança ante o recém nascido precoce e ao que ele anuncia:

"Sua formosura

eis aqui descrita:

é uma criança pequena,

enclenque e setemesinha,

mas as mãos que criam coisas

nas suas já se adivinha.(...)

é (...)BELO PORQUE É UMA PORTA

ABRINDO-SE EM MAIS SAÍDAS." (grifei)

Infância é vocábulo-alerta, que da raiz latina - infantia – nos avisa: ‘os que não podem falar’. Caminhemos ao seu encontro e lhe emprestemos nossa melhor voz. Muitas vezes – por que não? – seu balbucio poderá encontrar audiência por meio de uma portaria de Juiz Menorista.


Notas

01 A Resolução 02/06, de 05.01.06 (DO de 06.01.06), nos consideranda, menciona revogação da autorização genérica para expedição de portarias ou provimentos, antes contida no art. 8º da lei 6697/79. Diz, ainda em C onsiderando, que "o novo estatuto autoriza aos juízes da Infância e da Juventude a disciplinar, através de portaria, apenas e tão somente as matérias inscritas em seus incisos, observados os seus parágrafos". Essa fundamentação correta, acaba contraditada, data venia, pelo estreitamento que se faz no art. 1º, em que o Conselho interpreta como autorizativo da edição de portarias, apenas o art. 149.

02 TJSP: "APURAÇÃO DE INFRAÇÃO - Portaria judicial que deu início a procedimento para imposição de penalidade administrativa por infração às normas de proteção à criança e ao adolescente - Inviabilidade - Art. 194, do ECA que diz que tal procedimento terá início por representação do Ministério Público ou do Conselho Tutelar ou auto de infração elaborado por servidor efetivo ou voluntário credenciado - Nulidade absoluta que não é suscetível de confirmação - Recurso provido para anular o procedimento desde a lavratura da portaria judicial. (Apelação Cível n. 116.426-0 - acesso em 12/12/05 - Jundiaí - Câmara Especial - Relator: Moura Ribeiro - 31.01.05 - V.U.)" cfe consta em www- portal.tj.sp.gov.br/ - acesso em 10/12/05.

03 TJRS, conforme: "O art. 149 do ECA coloca nas mãos do Juiz da Infância e da Juventude dois importantes instrumentos para a proteção genérica e específica de crianças e adolescentes: a portaria e o alvará. Os dispositivos parecem não comportar maiores questionamentos, mas não se encontra acerto na interpretação do § 2º do artigo mencionado. A 8ª Câmara Cível do TJRS, ao apreciar o MS 595051771-RS, de 25.05.95, entendeu que a edição de portaria para regrar as hipóteses elencadas no art. 149, I e II, do Estatuto exigiria a realização de sindicância para a verificação de cada caso específico (...) De qualquer sorte, o importante é que a decisão da 8ª Câmara Cível do TJRS, antes indicada, não vingue, sob pena de impedir o uso de um importante instrumento de proteção de jovens e infantes". HERINGER JÚNIOR, Bruno Promotor de Justiça do RS, em Algumas questões controvertidas do ECA - REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL - VOL. 40 – cfe - acesso em 12/12/05.

04 TJMG: Na não provida APELAÇÃO CÍVEL Nº 000.108.211-4/00 relatada pelo. DES. PINHEIRO LAGO conferiu-se legalidade à portaria baixada pelo Juízo da infância e Juventude, disciplinando a entrada e permanência de criança ou adolescente em locais de diversão pública, por força do Art... 149, da Lei nº 8.069/90, mas que determinava distância mínima entre fliperamas e escolas. Trechos do voto vencedor: "O pedido de alvará se esteia em dispositivo integrante da portaria nº 05/95, baixada pelo Juizado, segundo a qual todas as casas de diversões eletrônicas ou quaisquer estabelecimentos abertos ao público, onde se faça uso de jogos eletrônicos (inclusive ‘vídeo games’), deverão ter alvará de funcionamento, expedido pelo Juizado da infância e da Juventude. Dita portaria deve ser tida como legalmente expedida pelo Juizado, em face da autorização contida no Art. 149, I, d, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), segundo o qual compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará, a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em, dentre outros, casa que explore comercialmente diversões eletrônicas. Ora bem, segundo consta da redação do Art.. 14, Parágrafo Único, da aludida portaria, tais casas deverão estar localizadas a uma distância de, no mínimo, 500 metros de estabelecimento de ensino. (...) Por todo o exposto, estando bem justificada a decisão indeferitória do pedido de alvará judicial, confirmo a sentença, negando provimento ao recurso". – conforme consta em http://www.tjmg.gov.br/ - acesso em 10/12/05. O grifo que efetuamos é apenas para ressaltar o que, na opinião do autor, significa um caso de extrapolação das finalidades da edição de Portarias. Entendemos que caberia ao Juiz demarcar a forma de ingresso de menores, impedir a venda de determinados produtos, proibir a utilização de determinados jogos, conforme a faixa etária, impedir permanência com uniformes, etc. Mas impedir a instalação do empreendimento - mesmo tendo ainda em conta que fliperamas têm sido, historicamente locais de aliciamento de menores para diversas ilicitudes – parece-me um exagero. A fiscalização adequada coibiria qualquer abuso, e, caso estes persistissem, a imposição das multas poderia facilmente obrigar à disciplina do empresário, e, até mesmo levar à transferência do negócio.

05 Referindo-se a dito de Kant que reconheceu na eclosão da Revolução Francesa um evento auspicioso enquanto premonitório de uma ordem mundial mais justa, para alertar sobre a necessidade de construí-la. Da mesma forma, se o ECA instala uma nova visão sobre a criança, não efetiva, por si só uma ‘nova ordem’. "Um sinal premonitório não é ainda uma prova. É apenas um motivo para que não permaneçamos espectadores passivos e para que não encorajemos, com nossa passividade os que dizem que ‘o mundo vai ser como sempre foi até hoje’; estes últimos – e torno a repetir Kant – ‘contribuem para fazer com que sua previsão se realize", ou seja, para que o mundo permaneça assim como sempre foi. Que não triunfem os inertes!" – BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Editora Campus- 11ª edição - pp. 140.

06 "especificação", conforme terminologia de Bobbio (op. Citada, pg. 62), para o movimento que forneceu "(...) 1952, a Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher; em 1959, a Declaração da Criança; em 1971, a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental; em 1975, a Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos; em 1982, a primeira Assembléia Mundial, em Viena, sobre os direitos dos anciãos, que propôs um plano de ação aprovado por uma resolução da Assembléia da ONU em 03 de dezembro." (idem, pp. 69). E tal movimento prossegue, eis que "Olhando para o futuro, já podemos entrever a extensão da esfera do direito à vida das gerações futuras (...) assim como a novos sujeitos, como os animais, que a moralidade comum sempre considerou apenas como objetos, ou, no máximo, como sujeitos passivos, sem direitos." (idem, pp.63)

07 Nomenclatura adotada por Carl Schmidt, citado por VIEIRA, Oscar Vilhena - Discricionariedade Judicial e Direitos Fundamentais, onde explicita seu entendimento do termo: "Na ausência de um grupo hegemônico que dê ao documento constitucional uma identidade, seja ideológica, política ou econômica, o que se tem é a fragmentação do texto em pequenos acordos tópicos. Muitos desses acordos são meramente estratégicos, pois sabe-se que não terão eficácia imediata(28); mas também não caracterizam uma derrota na arena constituinte, o que ocorreria pela adoção de determinados interesses pelo texto constitucional, em detrimento de outros valores dele excluídos. O compromisso, configurado pela adoção de valores e princípios antagônicos, ao menos sinaliza com a possibilidade de disputas futuras, por intermédio da legislação ordinária, da ação administrativa e da batalha nos tribunais" cfe. se acha em <http://www./dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_discricionalidade.htm> - acesso em 13/12/05.

08 ALVES, Rubem. Conversas sobre Política. Verus Editora, 2002. pp.38

09 COMPARATO, Fábio Konder. O Papel do Juiz na efetivação

dos Direitos humanos
. Palestra a magistrados disponível em www.dhnet.org.br/direitos/militantes/comparato/comparato_juiz.html acesso em 14/12/05.

10 Um exemplo é o mecanismo da Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público contra omissões do poder público. Em tais casos, freqüentemente se aplica, na eventual ausência da norma própria, a sua interpretação de preceito constitucional ao caso concreto (exemplo: fornecimento de medicamentos e colocação de transporte escolar pelo poder público, com base nos direitos constitucionais dos jurisdicionados à saúde e à educação).

11 Postura a eles atribuída por: PEDRA, Anderson Sant´´Ana. Os fins sociais da norma e os princípios gerais de direito. Jus Navigandi, em: jus.com.br/revista/texto/3762>. Acesso em: 20 dez. 2005

12 Mandamentos do Advogado.

13 PEDRA, op citada.

14 PEDRA, obra citada.

15 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Pag. 125. Saraiva, 1993.

16 Dos Deveres. Pág. 40. Martin Claret, 2001.

17 O Espírito das Leis, livro XI, cap. 6, p. 208 – Nova Cultural, 2000.

18 O conviva de pedra e a insurgência alternativa do direito achado na rua, Nagib Slaibi Filho – em /www.nagib.net/ acesso em 18.03.06

19 Assim manifestaram-se a OAB e diversos juristas na ocasião da sua promulgação.

20 REALE, Miguel. Op citada pág. 06.

21 Refiro-me ao movimento do Direito Alternativo, nascido na Europa e entre nós disseminado por juízes do Rio Grande do Sul. Com alta relevância e complexidade ideológica, se pode para uns ter ido além do razoável, de outro turno denunciou as débeis fronteiras do pensamento jurídico dominante. O fato é que posições que defenderam e experimentos que realizaram terminaram positivados. Não vamos, neste trabalho, entrar em tal polêmica. Apenas faz-se o registro para evidenciar que não é o que aqui se defende, já que nossa tese é de que a portaria normativa não é inovação a ser feita, mas, data venia, apenas hermenêutica correta do ECA.

22 Sobre o assunto bem historia o Desembargador Luiz Felipe Salomão: "A linha evolutiva que culmina com os Juizados Especiais teve início, a partir de 1980, com os Conselhos de Conciliação e Arbitramento, experiência pioneira dos Juízes do Rio Grande do Sul. Tais órgãos não tinham existência legal, não tinham função judicante, com juízes improvisados, atuando fora do expediente forense. Mas a experiência foi tão bem sucedida, obtendo índices altíssimos de conciliação, que logo demandaram regulamentação através de lei própria." SALOMÃO, Luiz Felipe. Roteiro dos Juizados Especiais Cíveis. Pág. 27/28. Ed. Destaque. Rio, 1997.

23 NEGRÃO, Theotonio. CPC Comentado. 36ª Edição. Saraiva –- pp 331

24 Existe pelos corredores dos fóruns e na academia um preconceito contra a justiça menorista, tida por muitos como área de um "não-Direito" assistencialista, onde se desaprende a técnica e onde se faz mero assistencialismo.

25 Por exemplo: praticamente não determinou o STJ em julgado recente, o fim do conceito de juros abusivos, consolidando sua, a nosso ver perigosa, interpretação sobre a livre contratação, até em contrariedade às consagradas práticas de defesa do consumidor?

26 Há tempos atrás o tombamento de um imóvel pelo patrimônio histórico não seria visto como um abuso contra o direito de propriedade? A célebre campanha de Oswaldo Cruz que resultou na Revolta da Vacina (por mais que tenha tido outras circunstâncias determinantes), não é emblemática da relativização de um direito em prol de um bem maior?

27 Ainda que com modesta participação, estive, com minha geração, na luta pela restauração democrática e nas lutas populares que se seguiram, não renegando minha profissão de fé. Entretanto, no que se entender a democracia na concepção que abriga como fundamental a garantia da letra rígida da norma fria contra a ação jurisprudencial criadora, tenho a discordância que se revela em todo este documento. A democracia não é um documento ou monumento, é um processo, uma práxis, que importa em adequações. O que era democrático ontem, hoje pode não ser. O direito de livre expressão pode exigir adequações como as ações reguladoras do CONAR, por exemplo.

28 BOBBIO, op. citada, pp.22

29 Lei de Introdução ao Código Civil (DL 4657/42) – Art. 4º

30 Arenga aos magistrados que estréiam. Disponível no sítio www.soleis.com.br/discurso.htm - 25k, acesso em 20/12/05

31 ALVES, Rubem. Obra. citada- pp. 32

32 cfe RIBEIRO, Wanderley in Ética, Justiça e Direito: Trinômio para uma sociedade mais democrática, no site O Neófito, acesso em 12/12/05.

33 cfe RIBEIRO, Wanderley, obra citada

34 CURY, Munir. O ministério público e a justiça de menores. In (Coord). Temas de direito do menor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, conforme ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência. Editora Atlas – 2004 5ª Edição, pp. 22..

35 VIANA, Guaracy de Campos. Jurisdição tutelar e a Lei nº 8.089/90 (ECA. RT716/357). Conforme ISHIDA, op. Citada.

36 COUTINHO, Inês Joaquina Sant’Ana Santos – Juizado da Infância e da Juventude - Comarca de Teresópolis – Atividades Desenvolvidas – Gráfica TJ-RJ -2003

37 Cfe. BOBBIO, op. citada. pp 39.

38 Conforme O Poder. Pág. 124.

39 "Art. 249. Descumprir, dolosa ou culposamente, os deveres inerentes ao pátrio poder ou decorrente de tutela ou guarda, bem assim determinação da autoridade judiciária ou Conselho Tutelar:Pena - multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência"

40 cfe Vocabulário Jurídico. De Plácido e Silva – 18ª edição. pp. 469

41 Reflexões sobre o artigo 194 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível no site da Escola Paulista da Magistratura em <http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Artigos/artigos.194.16.5.htm> - acesso 19/12/05

42 REALE, op citada, pp 113.

43 Hely Lopes MEIRELLES"Poder de polícia é a faculdade discricionária de que dispõe a Administração Pública em geral, para condicionar e restringir o uso e gozo de bens ou direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado. (...)podemos dizer que: o poder de polícia é o mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública, para deter os abusos do direito individual. Por esse mecanismo, que faz parte de toda Administração, o Estado (em sentido amplo: União, Estados e Municípios) detém a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social e à segurança nacional". Conforme consta em GONÇALVES, Robson José de Macedo. A Polícia do Senado FederalJus Navigandi, Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/668>. Acesso em: 12 jan. 2006.

44 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Serviço público e poder de polícia: concessão e delegação. In: Revista Trimestral de Direito Público, n 20. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 23. cfe citado em MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. O poder de polícia da administração e sua delegação (da impossibilidade do exercício do poder de polícia pelo ente privado). Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 47, nov. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/455>. Acesso em: 02. jan. 2006

45 MEIRELLES, Hely Lopes. Poder de polícia e segurança nacionalRevista dos Tribunais, v. 61, n 445, p. 287 – 298, nov. 1972. disponível em <www.presidencia.gov.br/ccivil_03/revista/Rev-40/panteao.htm> acesso em 14.01.06

46 Cfe MEIRELLES, Hely L. op. Citada

47 Cfe SILVA, De Plácido e. verbete ‘Regulamentação", Vocabulário Jurídico, p. 694. Forense, 18ª edição.

48 MUNIZ, Petrônio R. G.. A competência da Comissão dos Valores Mobiliários. Disponível em http://daleth.cjf.gov.br/revista/seriecadernos/VOL15-2.htm acesso em 14.01.06

49 FIGUEIREDO, Nelson. Parecer disp. jus.com.br/revista/texto/16583> acesso 13.01.06

50 disponível em http://www.tre-mg.gov.br/sessoes_corte/ata_041118.htm, acesso em 14.01.06

51 Observações sobre Kelsen, Hart e Dworkin baseadas em VIEIRA, Oscar Vilhena - Discricionariedade Judicial e Direitos Fundamentais, conforme consta em www.dhnet.org.br /- direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_discricionalidade.html

52 "A autoridade judiciária, além das medidas especiais previstas nesta lei, poderá, através de portaria ou provimento, determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrem à assistência, proteção e vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de poder". Art. 8º do Código de Menores de 1979. Lei n. 6.697.

53 cfe Vocabulário Jurídico. De Plácido e Silva – 18ª edição. pp. 469

54 "As portarias são usadas, não só para baixar instruções, como também para nomeação, demissão, suspensão de servidores, tendo ainda a finalidade de iniciar sindicâncias ou procedimentos administrativos ou inquérito policial. O valor das portarias se restringe à competência da autoridade que as expede. Em regra, os administrativos não tratam dos provimentos, que são também ordens emanadas do Poder Judiciário com caráter normativo para que sejam cumpridas. Os juizes de menores costumam baixar portarias determinando providências a respeito de serviço que lhes estão afetos e o seu descumprimento implica em crime de desobediência, além da multa administrativa. A finalidade das portarias, desde que publicadas e afixadas em lugares públicos, é despertar a atenção do povo, que, em regra, desconhece as leis existentes. Trata-se, assim, de medidas de esclarecimentos, destinadas a orientar e advertir tanto os menores como os adultos responsáveis por certos estabelecimentos". (NOGUEIRA, Paulo Lúcio, in Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, Ed. Saraiva, 1991, p. 215 e 216).

55 ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina e Jurisprudência. Editora Atlas – 2004 5ª Edição, pp. 270.

56 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Pág. 424. 19ª edição. Malheiros, 2001.

57 Site do TJMG

58 "ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MENORES DE 14 ANOS. ENTRADA E PERMANÊNCIA EM BAILES E DESFILES DE RUA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. LEI N. 8.069/90 – ART. 149, I E II.1. Adstrita a portaria que proíbe entrada e permanência de menores de 14 anos em bailes carnavalescos e folias de rua, após às 20 horas desacompanhados de pais ou responsáveis à norma contida na Lei n. 8.069/90, art. 149, Ie II, não há vez para acoimá-la de ilegal ou abusiva ou causadora de constrangimento ilegal quanto liberdade de ir e vir. 2. Recurso a que se nega provimento. STJ, RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA 10.600 – MARANHÃO, Quinta Turma, Relator: Min. Edson Vidigal, Data do Julgamento: 16 de dezembro 1999". Disponível no site do STJ.

59 MACEDO, Antonio Luiz Bueno de. Poder discricionário do juiz. Jus Navigandi, Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/110. Acesso em: 13 dez. 2005

60 Cfe. GASPERIN Antonio Augusto Tams. Síntese comentada à teoria do ordenamento jurídico de Norberto Bobbio. Em http://jus.com.br/revista/texto/6953 – acesso em 10/12/05

61 Também outros estatutos determinam ao Juiz observância, em seus julgados dos "fins sociais" e "exigências do bem comum", como o Art. 5ª da Lei de Introdução ao CC e a Lei dos Juizados Especiais (9099/95), em seu Art. 6º

62 conforme COSTA, Antonio Carlos Gomes da. O novo Direito da Infância e da Juventude do Brasil. disponível em - www.portaldovoluntario.org.br/ press/uploadArquivos/112568959066.pdf – em 10/12/05

63 RUI BARBOSA Obras completas, v. XIX, t.III, p.300, apud. "Fim de Século e Justiça", de Francisco de Paula Sena Rebouças – Ed. Juarez de Oliveira.

64 O TJ-RJ renomeou as antigas Varas da Infância e da Juventude como Varas da Infância, da Juventude e do Idoso, cometendo-lhes a atribuição de fiscalização de entidades de atendimento à terceira idade.

65 Obra citada, pág. 41.


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OUTROS SÍTIOS VISITADOS NA INTERNET:

www- mp.rs.gov.br/infancia/doutrina/id199.htm

www.nagib.net

www- portal.tj.sp.gov.br

www- tjmg.gov.br