O crime do colarinho branco, numa perspectiva criminológica


Porjeanmattos- Postado em 21 setembro 2012

Autores: 
MASSUD, Leonardo

 

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Conceito – 3. Outras características do white-collar crime – 3.1. As causas do crime – 3.2. O tratamento da justiça penal: até que ponto os crimes do colarinho branco ficam mais impunes? – 4. O crime do colarinho branco quanto à prevenção e à repressão – 4.1. Da prevenção – 4.2. Da repressão – 5. Considerações finais (à vista do momento brasileiro).

 

1. INTRODUÇÃO

A idéia de crime do colarinho branco, antes mesmo de colocar em questão sua discutível e improvável definição, remete-nos, necessariamente, a reflexões acerca das desigualdades vivenciadas pelos seres humanos, tenham elas caráter econômico, social, político, cultural, biológico, psicológico, ambiental, etc.

 

Se, por um lado, deve-se ter como válida a assertiva de HOBBES, no sentido de que os homens, apesar das manifestas diferenças quanto às suas faculdades do corpo e do espírito, são tão iguais, de modo que nenhum possa triunfar totalmente sobre outro1(como, por exemplo, pela capacidade de aliança contra o mal comum e a maquinação secreta), também não se pode negar que a formação do Estado e a continuidade da sua existência encerram relações de poder que tornam os homens inexoravelmente desiguais na forma de exercer a parcela de liberdade – e, portanto, de direitos – que lhes restou, após terem cedido parte para evitar a guerra de todos contra todos.2

 

Sendo assim, isto é, organizando-se os homens conforme a parcela de poder que detêm, tem-se como decorrência lógica que o tratamento que um ou outro recebem do Estado distingue-se, tendencialmente e ao menos em certa medida, segundo essa dinâmica de forças.

 

1 Thomas Hobbes de Malmesbury, tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, “Leviatã”, Capítulo XIII, da Coleção “os Pensadores”, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1997, p. 107. Ver interpretação de Renato Janine Ribeiro em “Os Clássicos da Política”, organizador Francisco C. Weffort, 1.º Volume, 2.ª edição, Editora Ática, São Paulo, 1991, p. 55.

2 a concepção contratualista da formação do Estado é adotada aqui apenas como referencial.

 

 

Por esse motivo, não é de se estranhar que, não apenas no século XX, mas ao longo de toda a história da humanidade, essa diferenciação esteve presente também no tratamento dado aos autores de ilícitos, sobretudo aqueles considerados como criminais (exemplos foram encontrados no tratamento diferenciado que os sacerdotes recebiam quando cometiam crimes no antigo Egito, no Código de Hamurabi que previa diferentes leis conforme a classe social – apud RJTACrim 38:23-30, o clero, etc). Essa constatação acabou revelando que as camadas sociais que exerciam o poder não só também cometiam crimes, mas eram sistematicamente privilegiadas pela administração da justiça.

Com a quebra da estagnação social, política e econômica que predominava até o fim da Idade Média, a filosofia de valorização do homem como indivíduo, trazida pelo Renascimento e pelo Mercantilismo, fez aparecer novas figuras que também passaram a integrar a composição de forças econômicas e, posteriormente, políticas, tais como os banqueiros, as grandes empresas comerciais, as companhias colonizadoras, de navegação e de seguros.3

Inspirada pelos ideais do Iluminismo e fortalecida pelo desenvolvimento econômico, essa nova classe social, a burguesia, passou a aspirar ao poder político até então exercido pela enfraquecida nobreza, o que terminou por fazer eclodir a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, de 26 de agosto de 1789, na qual se proclamou que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Embora fosse uma novidade do ponto de vista jurídico, essa assertiva revelava nada mais que uma condição natural dos indivíduos que precedia até mesmo à formação da sociedade civil4.

A partir desse momento, difunde-se, paulatinamente, em especial no chamado mundo ocidental, a idéia de isonomia como princípio orientador das relações do Estado com os indivíduos e destes entre si.

Entretanto, o espírito liberal que passou a predominar nas organizações políticas, sociais e econômicas, antes da isonomia, trouxe o acúmulo de riquezas para alguns e a agravação do estado de pobreza para outros.

Em contraposição, a esse sistema liberal surge o Estado de Direito Social, privilegiando a intervenção na economia e a sua regulação através de normas que, em última análise, modificaram a relação dos particulares, dando nova dimensão ao conceito de liberdade – antes focado no individualismo.

 

 

 

3 José Leon Pagano, “Derecho Penal Económico”, Ediciones Depalma, Buenos Aires, 1983, p. 4.

4 Norberto Bobbio, “A era dos direitos”, tradução de Carlos Nelson Coutinho, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992, p. 93.

 

 

Com o tempo, essa substancial redução do espírito do lassez faire, lassez passer passou a fazer parte não apenas dos Estados de economia estatizada – que suprimiram a iniciativa privada – mas também daqueles que tinham no liberalismo capitalista seu grande estandarte.

Como nos lembra FRANCISCO MUÑOZ CONDE, “atualmente ninguém discute a necessidade de intervenção do Estado na economia, não tanto em substituição à iniciativa privada, mas controlando-a e corrigindo seus excessos, evitando que a economia de mercado se torne em uma selva dominada pela lei do mais forte. Deve a política fiscal permitir a realização de atividades caracterizadas mais por sua necessidade social que por sua rentabilidade econômica.” Dessa forma, assinala, ainda, o mestre, que “o que se considerava uma anomalia ou exceção – intervenção – é hoje algo perfeitamente normal, sendo inclusive necessária à própria preservação da economia de mercado.”5

Essas restrições ao liberalismo, que traziam consigo novas concepções de Direito e do Estado (Social)6, somadas ao desenvolvimento de novas dinâmicas sócio-econômicas que já vinham se intensificando desde a Revolução Industrial (uso de máquinas na indústria, novas formas de comércio, crescimento do setor bancário, seguros, etc.) fizeram aparecer novos comportamentos de danosidade social, para os quais SUTHERLAND – denominando de crime do colarinho branco – chamou a atenção pela primeira vez quando de seu discurso na presidência da Sociedade Americana de Sociologia.7

É a partir dessa expressão – white-collar crime – que o presente trabalho pretende desenvolver-se, abordando a problemática da sua conceituação, a sua relação com o direito penal econômico, suas semelhanças e distinções com o denominado “crime comum” (quanto ao grau de nocividade, tratamento dado pela Justiça, etc.), trazendo algumas pequenas reflexões acerca da prevenção e repressão dessa criminalidade.

 

2. CONCEITO

A preocupação com essa “nova” criminalidade que surgia – em razão das mutações sofridas na dinâmica das relações comerciais, industriais, laborais, financeiras, etc. – já havia sido revelada pelos criminalistas desde a segunda metade do século XIX, a exemplo de E.C. HILL

 

 

 

5 tradução livre do autor, in “Revista Penal, Año 1, Volume 1”, Universidad de Castilla-La Mancha, Editorial Praxis S/A, p. 68.

6 Vimos hoy en el seno de una sociedad competitivo-industrial, gobernada por un Estado social, que, en mayor o menor medida, interviene, dirige y planifica el desarrollo económico, por Gonzalo Rodriguez Morullo, no artigo “Algunas consideraciones politico-criminales sobre los delitos societarios”, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, Tomo XXXVII, Fasciculo III, Publicaciones del Instituto Nacional de Estudos Juridicos, 1984, p. 679.

7 Apresentação de Geis and Goff da tradução italiana de Gabrio Forti da obra de Edwin H. Sutherland, “White Collar Crime, the uncut version”, “Il Crimine dei Colletti Bianchi, laversione integrale”, Milano – Dott. A. Giuffrè Editore, 1987, p. XIII.

 

 

que, no Congresso Internacional sobre a prevenção e repressão do crime, realizado em Londres, em 1872, utilizou a expressão crime no mundo dos negócios.8

Já na década de 30, mas antes de SUTHERLAND, MORRIS havia chamado de “criminosos da alta sociedade”. Mas, como já mencionado acima, foi realmente com SUTHERLAND que essa “espécie” de criminalidade ganhou sua expressão de maior repercussão (white collar crime)9.

De acordo com o próprio SUTHERLAND, o termo “crime do colarinho branco” foi utilizado para designar sobretudo os dirigentes e administradores de empresas, segundo o significado que o presidente da General Motors havia atribuído em sua obra An Autobiography of a White Collar Worker.10

Para SUTHERLAND, “o crime do colarinho branco pode ser definido aproximadamente pelo crime cometido por uma pessoa respeitável e de elevada condição social no curso de sua ocupação.”11

A alusão à vestimenta feita pelo sociólogo norte-americano, invocando o colarinho típico dos trajes a rigor, teve rápida assimilação no meio das ciências criminais e, hoje, também, perante a população de um modo geral, possivelmente por sua grande capacidade de ilustrar a figura do homem bem sucedido, ligado ao poder ou aos poderosos, transmitindo a idéia de prestígio político e financeiro, em exata oposição aos blue collars, os operários que vestiam macacão.

Porém, a longevidade da expressão e a dimensão que ganhou no mundo inteiro não pouparam SUTHERLAND das críticas quanto ao conceito por ele formulado, muito embora não houvesse quem lhe negasse ter prestado grande contribuição para a criminologia, com a ruptura do enfoque das pesquisas e estudos até então realizados.12

Para alguns, como GONZALO RODRIGUEZ MORULLO13 – no que foi seguido por PEDRO SOARES DE ALBERGARIA14 – a expressão white collar crime possui maior valor literário que científico. Ainda que assim se conclua, o conceito subjetivo de SUTHERLAND rendeu, entre as inúmeras críticas que recebeu, importantes reflexões sobre o tema, fruto da série de tentativas de delinear os traços característicos desse fenômeno.

 

 

 

 

8 Manuel Pedro Pimentel, “o Crime do Colarinho Branco”, “Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo”, 2.º Trimestre, 1974, p. 11.

9 Idem.

10 Op. cit., p. 12.

11 Op. cit., p. 8.

12 Aliás, o próprio Sutherland alertou que não se tratava de um conceito definitivo (op. cit., pág. 8)

13 Op. cit., pág. 677.

14 Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 9, Fasc. 4.º, Coimbra Editora, Outubro/Dezembro 1999, pág. 605/6.

 

 

 

 

Ao tratar da penalização das atividades econômicas, o Professor EDUARDO CORREIA já observava que “este conceito tipológico de agente é inadequado para fixar o âmbito do ilícito que se quer referir”. E seguindo na crítica ao critério subjetivo adotado por SUTHERLAND, prosseguia o mestre lusitano: “Haveria, com efeito, condutas desviantes das regras da ordem económica levadas a cabo por „homens de colarinho branco‟ que não constituiriam crimes. Por outro lado, também, muitas acções violadoras da ordem económica seriam praticados por homens de „colarinho azul‟, ou seja de inferior extracção social.”15

De fato, a concepção subjetiva adotada por SUTHERLAND apresenta inúmeros inconvenientes científicos: um crime cometido por uma pessoa respeitável! Mas qual seriam os critérios para se estabelecer o que deve conferir a determinado indivíduo o predicado de respeitável. Certamente não faltariam discórdias sobre o tema, principalmente considerando a diversidade cultural existente nas mais variadas sociedades. Ademais, muito do que já foi respeitável em inúmeros lugares no passado, hoje é abominável em muitos outros mais. Quanto à elevada condição social, talvez não seja tão difícil de delinear quanto a característica anterior, mas igualmente depende de tantos fatores político-sociais que acabam tornando o conceito demasiadamente aberto para que se possa estudar o fenômeno também a partir de dados estatísticos. Já em relação à característica no curso de sua ocupação, esta, por si, não aproveita ao estudo do fenômeno, haja vista que excluiria toda e qualquer pessoa que, não obstante preenchesse todas as características anteriores, tivesse cometido a conduta no âmbito de sua vida privada.16

Em contraposição ao critério subjetivo, surgiram propostas que apontavam o enfoque objetivo, como o mais adequado à conceituação dessa criminalidade, cuja característica, segundo TIEDEMANN, deveria ser procurada “menos na personalidade do delinquente e na sua pertença às classes económicas superiores do que na específica forma de actuação e no objecto de seus actos”17

Com efeito, seria endossar uma flagrante iniqüidade classificar condutas materialmente idênticas como diferenciadas, pura e simplesmente pelas condições pessoais do autor da infração. Entretanto, como bem salienta CLÁUDIA CRUZ SANTOS – realçando a importância da discussão do tema – a simples adoção do critério objetivo, transpondo o cerne das especificidades do agente para as particularidades da infração, produzirá um quadro

 

 

 

 

15 “Notas Críticas à Penalização de Actividades Económicas”, texto tirado do Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico, 1.ª edição, Coimbra, 1985, p. 16.

16 Ver Cláudia Cruz Santos, “O crime de colarinho branco, a (des)igualdade e o problema dos modelos de controlo”, publicado na obra “Temas de Direito Penal Econômico”, organizado por Roberto Podval, RT, São Paulo, 2000, pág. 193.

 

 

 

diametralmente oposto quanto a ser ou não igualitário o tratamento recebido pelos white and blue collars, haja vista a inclusão destes últimos nas estatísticas desse fenômeno criminal.

Num estudo feito por SHAPIRO, essa idéia pode ser sintetizada em seu sugestivo título “Collaring the crime, not the criminal”, no qual a autora propõe – como ressaltado por CLÁUDIA SANTOS – a desvinculação do conceito de crime do colarinho branco das equivocadas associações que lhe eram feitas, tais como as confusões “entre actos e actores, normas e infratores das mesmas, modus operandi e agente”, mostrando que esse tipo de crime se traduz sempre numa violação de confiança18.

O saudoso Professor EDUARDO CORREIA, entretanto, já alertava que embora estivesse em parte correto que a confiança da sociedade é destruída pelos delitos antieconómicos (Zirpins-Terstegen), a verdade é que “não pode desconhecer-se que há delitos contra o património que têm também justamente na base a destruição dessa confiança.”19

Usando a perspectiva da dicotomia vítima-ofensor, KATHERINE M. JAMIESON menciona a possibilidade de classificação de quatro largas categorias de crime de colarinho branco: “Usando a perspectiva da vítima para classificar, duas categorias são identificadas: (1) crimes contra a propriedade, ou dos quais resultam prejuízos econômicos para a vítima, e (2) crimes pessoais, dos quais podem resultar em danos físicos, doenças, ou morte. Numa tipologia baseada na figura do agressor (3) crime ocupacional, o qual descreve agressores individuais atuando para obter ganhos pessoais, e (4) crimes das corporações, os quais intencionam promover as metas da corporação através dos indivíduos (Clinard, 1983; Clinard & Quinney, 1973; Coleman, 1985; Farrell & Swigert, 1985)”.20

Como se vê, a questão conceitual do crime do colarinho branco continua pautando os estudos dos criminólogos. A respeito dessa problemática, parece ser oportuno lembrar as considerações feitas por JULIO E. S. VIRGOLINI: “Esta discussão parece, na realidade, obedecer à dificuldade existente para marcar os limites conceituais de um objeto de estudo resistente a uma definição dogmática e que, além disso, apresenta contínuas transformações em sua fenomenologia. Daí que o debate contemporâneo sobre os delitos de colarinho branco parece limitar-se a aspectos somente conjunturais do problema, na busca de procurar assinalar as características dos fatos que justificam um capítulo particularizado da criminologia,

 

 

 

17 Apud Cláudia Cruz Santos, op. cit., pág. 197.

18 Idem, pág. 196.

19 Op. cit. pág. 17.

20 Tradução livre do autor, extraído da obra “The Organization of Corporate Crime”, Studies en Crime, Law and Justice – SCLJ-11, Sage Publications, London, pág. 3.

 

 

 

precisar uma definição apta a abarcar tais fatos, estabelecer sua possível etiologia e desenhar respostas mais adequadas no campo da política criminal.”21

De qualquer forma, apesar de todos os questionamentos e críticas a respeito do conceito original formulado por SUTHERLAND, pode-se dizer que, ao reclassificar o conceito de crime segundo a sua danosidade social, incluindo-se aí condutas violadoras de normas de outra natureza (civil, administrativa, etc.)22, e não apenas aquelas condutas legalmente tipificadas como crimes e reconhecidas como tal pela Justiça Criminal, o criminólogo norte-americano modificou não só todo panorama estatístico sobre a criminalidade, mas também o rumo dos estudos desse fenômeno, demonstrando que os ricos e poderosos cometem crimes com muito maior freqüência do que se cogitava até então.

Ainda assim, o estudo de SUTHERLAND mostrou-se importante ao demonstrar também que as teorias que buscavam explicar o comportamento criminoso através da identificação de fatores patológicos, fossem de caráter individual23 ou social24, partiam de dados insuficientes e, às vezes, equivocados, não conseguindo explicar certas espécies de crimes, a exemplo do próprio crime do colarinho branco. As explicações monofatoriais receberam contundentes ironias por parte do estudioso norte-americano, especialmente ao criticar a instabilidade emocional, que naquela época já vinha sendo questionada enquanto explicação dos comportamentos criminais comuns, quando disse que nem se podia sonhar em sustentar que os crimes praticados pela Ford derivavam de um complexo de Édipo, os da Aluminium Company of America, de um complexo de inferioridade, da U.S. Steel Corporation, de frustrações e agressividade, os da DuPont, de uma experiência traumática e os da Montegomery Ward, de uma regressão infantil.25

Enfim, pode-se arriscar a dizer que o grande impacto causado pelos estudos e as afirmações de SUTHERLAND residiu na quebra da noção comum que se tinha do criminoso e da própria noção de crime, dando o primeiro passo para desvincular a criminologia da dogmática

 

 

 

21 Tradução livre do autor, extraído da obra “Delito de Cuello Blanco. Punto de Inflexión en la teoria Criminológica”, in “Doctrina Penal, Teoría y Prática en las Ciencias Penales”, Año 12, n.ºs 45 a 48, Ediciones Depalma, Buenos Aires, 1989, p. 354.

22 Sobre essa questão, interessante a crítica feita pelos Professores Jorge de Figueiredo Dias e Manoel da Costa Andrade, no sentido de que, tendo Sutherland exigido simultaneamente a danosidade social e o a violação de uma norma, ainda que não penal, sua ética não produz grandes avanços na medida em que o seu anti-positivismo atua apenas no interior do próprio positivismo, ou seja, a ética continua dependendo do sancionamento legal do Estado. (ver em “Criminologia – O Homem Delinqüente e a Sociedade Criminógena”, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, 1997, p. 77)

23 Essas teorias apontaram como fatores patológicos individuais, primeiramente, anomalias biológicas. Depois, atribuía-se à inferioridade intelectual e, posteriormente, de instabilidade emocional (Sutherland, op. cit., pág. 5).

24 Dentre as patologias sociais apontadas, dava-se grande relêvo à pobreza, às precárias condições habitacionais, à falta de instrução e à desagregação familiar (idem).

25 Op. cit., pág. 327.

 

 

 

jurídico-penal. Mostrou-se que o criminoso não pertencia a uma “espécie” diferente, fosse ela física ou social. Democratizou-se, a partir de então, a figura do delinqüente, que não mais pertencia às chamadas classes perigosas, dos “Feios, Sujos e Malvados”26.

Por tudo isso, apesar das críticas que se possam fazer aos conceitos formulados sobre “crime de colarinho branco” – que, ao que parece, deve conjugar o critério subjetivo com o objetivo tal como indicado por CLÁUDIA CRUZ SANTOS27 –, essa criminalidade parece merecer subsistir senão como uma categoria criminológica, ao menos como objeto de estudo especial, na medida em que reúne características, em fronteiras esfumaçadas é verdade, de um certo tipo de delinqüência.

 

3. OUTRAS CARACTERÍSTICAS DO WHITE-COLLAR CRIME

3.1. As causas do crime

Já alertando que não se tratava de uma explicação completa para o crime do colarinho branco, SUTHERLAND teorizou que a gênese desse tipo de crime poderia ser encontrada no mesmo processo que origina os outros comportamentos criminais, ou seja, na associação diferencial. Segundo SUTHERLAND, a teoria da associação diferencial estabelece que o comportamento criminal nasce do aprendizado pelo maior contato com indivíduos que transmitem a idéia de que tal comportamento apresenta aspectos mais favoráveis que desfavoráveis do que com aqueles que sustentam ou transmitem a idéia contrária. Para a verificação dessa realidade, na ausência de pesquisas que cuidassem especificamente da carreira criminal dos homens de negócios, SUTHERLAND apegou-se aos dados que tinha à sua disposição: nas biografias e autobiografias que relatavam comportamentos desse gênero e na análise de dados acerca da difusão do comportamento criminal em casos específicos.28

Sem pretender adotar qualquer teoria de comportamento (freudiana, behaviorista, etc.) ninguém há de negar que, a grosso modo, grande parte de nossas ações ou reações são tomadas também a partir do aprendizado. Por que também? Porque, além do aprendizado, outros fatores interferem no agir, tais como o instinto e o arbítrio (esse recebendo os influxos do inconsciente individual, do inconsciente coletivo, etc.). Mesmo o “aprender”, dotado de valorações (quando SUTHERLAND fala sobre as definições mais favoráveis que as desfavoráveis do comportamento criminal29), é absorvido pelos indivíduos de diferentes maneiras, como nos lembra MANUEL LOPEZ-REY, numa crítica à teoria da associação

 

 

 

26 Filme dirigido por Ettore Scola em 1976, cujo título original é “Brutti, Sporchi e Cattivi”, que trata com sensibilidade e bom humor mazelas sociais protagonizadas por habitantes da periferia de Roma.

27 Op. cit., págs. 203/204.

28 Op. cit., pág. 305.

29 Op.cit., pág. 305.

 

 

 

diferencial: “(...) aprender para o homem significa mais que modificar sua conduta como conseqüência de uma experiência. Se vislumbra aqui a formação de um reflexo condicionado que não se pode negar tampouco utilizar generalizando no que diz respeito ao homem. Convém recordar que o aprendizado não é sempre uniforme, que depende da natureza de aquilo que se aprende, de onde, quando e como se aprende e quem aprende. O aprendizado e a aquisição de conhecimentos que capacitam para responder a uma situação previamente conhecida ou não, tomar uma atitude ante um determinado fato ou acontecimento, formar um juízo ou uma opinião ou, simplesmente, incrementar um conhecimento já adquirido ou originar um novo. Nem todo processo de aprendizagem requer uma mudança de conduta. Em relação ao delito, este pode originar-se como conseqüência do referido processo, consciente ou não, com ou sem comunicação com outras pessoas e sem necessidade de que a lei amplie ou não as definições que se têm como contrárias à mesma. Paixão e tendência dão causa ao cometimento de não poucos delitos, às vezes sem um conhecimento prévio do que é isso. Outros, como os culposos, cada vez mais numerosos, não requerem um learning process prévio.”30

Para FERRACUTI, mais do que a aprendizagem que trata as associações diferenciais, outro fator criminógeno necessário no que se refere ao crime do colarinho branco é a identificação diferencial. Com efeito, além de se apresentar (ou seja, de se mostrar factível) a conduta criminal, deve trazer uma conotação positiva e, principalmente, uma identificação com a pessoa que a pratica. Para ele, nas sociedades acentuadamente competitivas, “o critério do sucesso pode constituir um elemento suficiente para identificação”. Ressalta, ainda, o autor que, com tal identificação, “mesmo os elementos negativos da própria identificação desaparecem, ainda que com possível ambivalência, para que pareçam desejáveis.”31

SUTHERLAND menciona, ainda, a respeito de outro fator de explicação do crime dado por alguns criminólogos da época, desta feita do ponto de vista da sociedade e não do indivíduo (associação diferencial), que é a teoria da desorganização social ou organização social diferencial, podendo esta se revelar de duas maneiras: ausência de regras ou o conflito entre as regras. Segundo o criminólogo norte-americano duas condições favorecem a desorganização da sociedade no controle dos comportamentos econômicos: a complexidade desses comportamentos que os tornam inobserváveis à média da população não afeita à

 

 

 

30 Tradução livre do autor, extraído de “Criminologia – Teoria, Delincuencia Juvenil, Prevención, Prediccion y Tratamiento” Tolle, Lege, Aguilar S. A. de Ediciones, Madrid, 1973, pág. 155.

31 Franco Ferracuti, “Aspetti crminologici delle frode alimentari”, in “Universitá degli Studi di Roma, Facultá di Giurisprudenza – Appunti di Criminologia”, Liv. Recerche, Roma, 1970, p. 263. Referência extraída do já citado texto de Manoel Pedro Pimentel, p. 14.

 

 

 

matéria; e a velocidade das mudanças dos comportamentos nas áreas econômicas, defasando o sentido das regras, que levam algum tempo para se adaptar. O próprio SUTHERLAND reconhece, ao final da análise dessa teoria, que, dada a ausência de uma definição mais precisa do que vem a ser a desorganização social e devido ao fato de que o conceito é carregado de implicações éticas que prejudicam o seu valor analítico, essa explicação não revelou possuir grande utilidade.32

Outros fatores criminógenos de grande relevância, especialmente nos crimes de colarinho branco, são as denominadas “técnicas de neutralização”, cujo primeiro estudo sistemático se deve a SYKES e MATZA. Tratam-se de fenômenos psicossociais que incidem sobre os indivíduos, que tornam, para o juízo de censura do delinqüente, a violação legal como algo aceitável e, por vezes, até recomendável. Não se trata aqui da eleição de valores diametralmente opostos aos da cultura convencional – como mencionam as teorias da subcultura delinqüente. Essas técnicas de neutralização encerram um paradoxo, pois procuram explicar e exculpar determinadas condutas sem comprometer a sua adesão aos valores tradicionais e dominantes. Isso faz com que não só aquele que comete o crime não se sinta criminoso, mas também este não é visto como tal pela sociedade que, de um modo geral, assimila com facilidade essas técnicas.

Dentre outras técnicas de neutralização possíveis, JORGE FIGUEIREDO DIAS e MANOEL DA COSTA ANDRADE, referindo-se aos estudos de SYKES e MATZA, citam cinco tipos fundamentais:

1.º) Negação da responsabilidade: ligada aos aspectos da autoria, da imputação ou da imputabilidade, o delinqüente projeta o evento como algo que lhe acontece e não como algo que ele faz. Nega a sua identificação com os fatos e atribui-os a circunstâncias irresistíveis.

Um exemplo que parece se amoldar à essa técnica é o do comerciante ou industrial que, diante de uma crise econômica ou queixando-se da excessiva carga tributária imposta pelo Estado, sente-se à vontade e legitimado para sonegar impostos, burlando o fisco, em nome da sobrevivência de seu negócio. Assim agindo, o comerciante ou industrial supõe não negar a validade da norma, mas explicá-la, ao seu modo, que, diante de determinada situação, não se podia exigir seu cumprimento.

2.º) Negação do dano: fundamenta sua conduta na ausência de prejuízo, “não prejudica ninguém”, comum nos casos de vítima abstrata ou nos crime sem vítima. Exemplos dessa técnica podem ser encontrados na operação de câmbio negro de moedas (justificar-se-ia pela

 

 

32 Op. cit., pág. 323 e 324.

 

 

“lei da oferta e da procura”), na lavagem de dinheiro (ou branqueamento de capitais), na fraude às bolsas de valores (uso de informações privilegiadas para se aproveitar de altas e baixas do mercado de ações) na falsificação de documentos pessoais (passaportes, carteiras de habilitação para condução de veículos).

3.º) Negação da vítima: técnica que consiste em negar a existência propriamente dita da vítima ou anular suas qualidades positivas que poderiam gerar o sentimento de identificação, simpatia e culpa. Citam-se como exemplos os crimes cometidos contra grupos marginais. A vítima para o delinqüente passa a merecer o crime que se pratica contra ela. Exemplos dessa técnica são os crimes de violência contra homossexuais, prostitutas, mendigos, etc. Na criminalidade econômica, um exemplo dessa técnica pode ser encontrado nos crimes de contrafação de produtos manufaturados por monopólios ou oligopólios, em especial os produtos de informática. Nesses casos, o comportamento da vítima, de monopolizar o mercado e controlar preços, gera tal antipatia no mercado consumidor que os falsificadores não encontram dificuldade em vender seus produtos.

4.º) Condenação dos condenadores: transporta-se, por essa técnica, a reprovabilidade do comportamento do delinqüente para o do seu algoz. Baseia-se, por vezes, na concepção de que a lei penal em determinados casos é injusta. Ou, a estrutura sócio-política e, por que não dizer econômica, em que se incrimina e se pune a conduta não é tida como legítima. Nos crimes econômicos, pode ser verificada tanto no modelo socialista-marxista de economia (burla-se o modelo estatizante, adotando condutas próprias na livre iniciativa, buscando o lucro, como legítima expressão do trabalho) quanto no capitalista (aqui também podem servir de exemplo as fraudes fiscais praticadas sob o pretexto de combater a sanha arrecadatória do Estado);

5.º) Apelo a lealdades superiores: isto quer dizer que algumas condutas são praticadas em nome de valores que estariam acima da norma. Esses valores podem pertencer a grupos sociais menores (gangues, seitas religiosas, grupos políticos, organizações não-governamentais em defesa desta ou daquela coisa) ou mesmo a sociedade que recrimina a conduta, mas que não consegue proporcionar que os mesmos (valores) sejam preservados. Exemplos: a) corrupção de agentes governamentais para que o Estado pague o que ele deve sem que o particular tenha que aguardar um longo período de tempo para receber, justificando-se que se não o fizesse poderia provocar um desequilíbrio em suas finanças e até mesmo sua quebra. Criam-se dificuldades para se vender as facilidades; b) corrupção policial para que, mesmo no horário de seu serviço, estes priorizem a segurança que o Estado não tem dado à sua residência ou de seu estabelecimento comercial; corrupção sindical em nome da pacificação no trabalho; etc.

Outras características marcantes da criminalidade econômica – que não se confunde necessariamente com o white-collar crime, mas sem dúvida é uma de suas mais importantes variantes – são os efeitos criminógenos propagados pelas condutas, tal como o efeito ressaca (ou espiral).

O efeito ressaca pode ser explicado pela disseminação da prática de determinado crime a partir de uma ou mais empresas que buscam, com a violação da lei, diminuir custos e aumentar sua competitividade, por necessidade de sobrevivência ou simplesmente para atingir melhores resultados financeiros. Essa atitude tende a ser imitada por mais e mais empresas que, se antes eram competitivas, com a diferença na formação do preço de custo de seus produtos ou serviços em relação às outras, deixaram de sê-lo, necessitando, a partir de então, de recorrer às práticas criminosas para voltar a concorrer em situação de igualdade. Cada uma das empresas, lembra RODRÍGUEZ MORULLO, se converte então em novo foco de disseminação da prática criminosa, causando uma nova ressaca (espiral).33 Esse efeito pode ser observado comumente a partir dos delitos fiscais

Um outro efeito provocado pela delinqüência econômica, que não é necessariamente um efeito criminógeno, é a reação em cadeia, como explica o citado catedrático espanhol: quando um delito econômico causa graves danos materiais, o prejudicado ou os prejudicados se convertem num primeiro elo de uma cadeia de vítimas, porque transmitem de umas à outras as dificuldades de pagamento, as crises e as quebras, sobretudo em períodos de recessão econômica.34 Embora, como já dito, esse efeito não possua à primeira vista a característica de um fator criminógeno, não há como negar que essas nefastas conseqüências mencionadas de alguns crimes econômicos geram a perda da confiança no sistema, induzindo as vítimas (empresas e pessoas naturais) a buscarem, por vezes no crime, a restauração do seu status quo ante ou mesmo a sua sobrevivência.

Também efeito dessa criminalidade é o chamado poder corruptor que arrasta a administração pública para a corrupção, essa praticada com o intuito de camuflar os sinais da infração e, conseqüentemente, alcançar a impunidade.

Por outro lado, não se deve desprezar que a criminalidade do colarinho branco se constitui em fomento da própria criminalidade chamada de comum. Isso porque os crimes do colarinho branco, não raro, se servem da criminalidade comum para o alcance do seu intento, como, por

 

 

33 op. cit., pág. 681

 

 

exemplo, falsificadores (notas fiscais falsas para sonegação fiscal), contrabandistas (para adquirir mercadorias com menor custo, concorrendo assim deslealmente em relação aos demais comerciantes ou industriais), etc. Ou, ainda, o criminoso do colarinho branco que presta serviços criminosos à criminalidade comum, tais como a lavagem de dinheiro e a evasão de divisas para o exterior em favor dos traficantes de entorpecentes, traficantes de armas, quadrilhas de furto e roubo.

3.2 O tratamento da justiça penal: até que ponto os crimes do colarinho branco ficam mais impunes?

A partir das inovações trazidas por SUTHERLAND, que demonstravam que os white-collars cometiam crimes com grande freqüência, observou-se a partir de muitos estudos que, apesar disto, estes não apareciam com a mesma freqüência nas estatísticas criminais que os outros criminosos (sobretudo as carcerárias), deixando em aberto o questionamento sobre o porquê isso ocorria.

A despeito da impossibilidade lógica de se estabelecer uma relação direta de determinados fatores com as estatísticas da impunidade do crime do colarinho branco, é certo que alguns deles, em grande medida, contribuem para que haja desigualdade no tratamento desse crime em relação àqueles chamados de comuns.

Um fator que se destaca é a dificuldade enfrentada pela dogmática jurídico-penal para a construção dos tipos criminais que se pretendam ver punidos. Isto se deve, sobretudo à complexidade das condutas, envolvendo, na maioria das vezes, bens jurídicos supra-individuais, intrinsicamente ligados a aspectos da realidade econômica, sabidamente dinâmica, principalmente a partir da revolução tecnológica introduzida pela informática, sendo muitas vezes cometidos em várias etapas – muitas delas sem traduzir qualquer ilegalidade – e em diferentes países (crimes transnacionais).

Aliás, justamente por envolver condutas complexas – que se revestem da aparência de legalidade – e bens jurídicos supra-individuais (a ordem econômica, as relações de consumo, o sistema financeiro, a ordem tributária, etc.), é que a criminalidade do colarinho branco torna-se menos visível, menos sentida pelos indivíduos35 e, por isso mesmo, chega mais dificilmente às esferas formais de controle. Exemplo lapidar de como a criminalidade do colarinho branco pode se tornar “invisível” é o caso do fabricante de pasta de dentes que diminui uma pequena quantidade do flúor na composição do produto. Com tal atitude, aufere vultosos lucros sem que o consumidor se dê conta de que está sendo ludibriado. Crimes assim

 

 

34 idem, pág. 682

 

 

podem passar anos sem serem descobertos. Raramente são objeto de prisão em flagrante, demandando, muitas vezes, longas investigações, que se arrastam até os limites da prescrição.

Outro fator que contribui para que essa criminalidade povoe em menor escala as estatísticas penais é a corrupção tanto dos agentes públicos (polícia, ministério público, magistratura) quanto dos particulares (a imprensa, as vítimas, os sindicatos, as organizações não-governamentais). Pode-se dizer, a grosso modo, que a corrupção, em sentido lato, nada mais é do que um acordo de vontades celebrado entre duas ou mais pessoas, no qual uma delas, dispondo dos mecanismos necessários, viola uma norma legal, ética ou moral, permitindo, com isso, que a outra atinja determinado “resultado”. Esse “resultado” pode ser o inicialmente desejado pelo agente corruptor. Neste caso, a corrupção é o meio pelo qual atravessa o iter do agente na busca de determinado fim. Ou, ainda, esse “resultado” pode tão-somente significar a ocultação e a impunidade de um fim já atingido.

No caso dos agentes públicos, a violação é de caráter legal. O agente dispõe de algo que era legalmente indisponível (dever de aplicar multas, dever de autuar em flagrante delito, dever de sigilo, etc.). No caso dos particulares, embora a violação também possa ser de ordem legal, no mais das vezes ela é de cunho ético ou moral. Exemplos não faltam: a) o jornal, tido como sério, que vende notícias ou que as oculta para atender interesses de particulares. Sabe-se o poder da mídia (ou dos media) para pressionar que se apure ou não determinados crimes – em especial dos white-collar. Não raro, a notícia do crime sequer vem à tona; b) as vítimas muitas vezes são estimuladas financeiramente a se calarem diante de fatos que não só as atingem como também põem em risco outras pessoas (bens supra-individuais); c) as cúpulas dos sindicatos que se vendem em troca de acordos salariais menos favoráveis aos trabalhadores, ou quando se corrompem para não exigir condições mais seguras de trabalho (polpando gastos para o “patrão”); as organizações não-governamentais que defendem o meio ambiente e que são corrompidas para não denunciar atos flagrantemente atentatórios contra o meio ambiente. Outras, que defendem as relações de consumo que são corrompidas para deixar de divulgar dados que comprometem a credibilidade dos produtos de determinada empresa (quem praticou a propaganda enganosa ou quem não está obedecendo regras da saúde, etc.)

Como assinalava LOPEZ-REY, a corrupção é uma característica normal de toda a sociedade36, tal como o crime. E, assim como este, a sociedade pode suportar determinada “quantidade” de corrupção sem ter seu desenvolvimento afetado por ela. A dificuldade,

 

 

 

35 Em sendo menos sentida, passa a ser também menos reprovada socialmente.

36 Aqui, convém lembrar que a disseminação da corrupção é também alimentada por outras técnicas de neutralização, como, por exemplo, o menor desvalor que se dá à ação do corruptor do que para a do corrupto

 

 

 

lembrava o criminólogo espanhol, estava em saber até quando ou qual a extensão do avanço da corrupção poder-se-ia agüentar, sem que esta não só levasse a um avanço excessivo da criminalidade como também ameaçasse o desenvolvimento econômico ou a riqueza nacional.37

Mais do que comprometer o desenvolvimento econômico, em certa medida, a difusão acentuada da corrupção termina colocando em xeque a própria legitimidade do Estado, pois, na medida em que aquela cresce, maior é a perda de confiança no sistema, que vai deixando de ser capaz de assegurar um mínimo de paz social, necessário à manutenção dos valores que pregam a observância das regras que sustentam a estrutura político-institucional desse mesmo Estado.

Inúmeros fatores parecem contribuir, em maior ou menor escala, para que a corrupção se faça presente. Dentre eles, destaca LOPEZ-REY: “os regimes anti-democráticos; a excessiva burocracia; os monopólios, as grandes corporações industriais, financeiras, etc.; o freqüente uso de influências no político, no administrativo, no comercial, etc.; uma política governamental de concessões para o desenvolvimento econômico e industrial; um serviço público mal organizado e mal pago, e a instabilidade econômica. Em determinados países, a lealdade imposta pela família extensa, a organização tribal, assim como um passado histórico de exploração, opressão e pobreza crônica, são fatores que contribuem a isso de maneira não menos decisiva.”38

Mesmo diante desses elementos que propiciam mais facilmente a ocorrência da corrupção, essa não é um fenômeno exclusivo dos países subdesenvolvidos (ou, como preferem os politicamente corretos, dos países em desenvolvimento). A única diferença entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos, como pontificava LOPEZ-REY, está nas quantidades necessárias para se corromper, que nos primeiros é geralmente mais alta que nos segundos.39

Talvez uma das características mais perversas da corrupção é a dificuldade do seu estudo provocada pela sua pouca presença nas estatísticas – o que torna as estatísticas dos outros crimes outra incógnita, posto que a corrupção se presta a fazer “desaparecer” outros crimes. Isto se deve principalmente pelo fato de que, ao contrário do resto dos crimes, os agentes ativos e passivos da relação fática sejam igualmente implicados pela lei penal. Assim, corruptor e corrupto agem nos bastidores, às escuras, sem que ninguém saiba ou veja. Cria-se, em muitos casos, uma relação de confiança perene. O corruptor não quer abrir mão de

 

 

 

37 Op. cit., pág. 333.

38 Tradução livre do autor, op. cit. pág. 333.

39 Idem.

 

 

 

descumprir a lei porque aquilo o beneficia, na maioria das vezes economicamente. E o corrupto não quer perder aquela fonte de renda. Criam-se laços de confiabilidade tais que, muitas vezes, a “credibilidade” dos corruptores em não denunciar o corruptor é afiançada a este por outros corruptores e vice-versa. Essa teia de relações, que vai se formando, torna praticamente inacessível o alcance da lei nos casos de corrupção, tornando-os invisíveis à sociedade.

A corrupção, neste contexto, torna-se sem qualquer dúvida em um fator de grande desequilíbrio na forma da aplicação da lei penal entre o white-collar e o blue-collar, tendo em vista que o primeiro tem um poder corruptor muito maior do que o segundo.

Fala-se também como fator de desigualdade nas estatísticas no “poder da defesa”. É inegável que a atuação de um bom advogado (na maioria das vezes inacessível àqueles que não tem como pagar) numa causa criminal pode contribuir para um aumento das chances de absolvição, prescrição ou a obtenção de outros benefícios legais. A atuação dos advogados, especializados na área criminal, desde os primeiros momentos da investigação – geralmente são advogados constituídos – certamente, incrementam, em muito, as possibilidades de sucesso na causa, seja com uma atuação dentro dos limites legais (orientando o cliente quanto à versão a ser dada para os fatos; evitando que o cliente venha a produzir prova contra si mesmo, muitas vezes produzindo provas favoráveis ao seu cliente, etc.) ou não (corrupção de agentes públicos). Porém, como aferir essa influência? Inviável!

Outro fator também seria a proximidade social entre o criminoso do colarinho branco e os agentes da persecução penal, gerando um processo de identificação inibidor da sua atuação, sem falar na facilidade proporcionada por esse fator para o tráfico de influência.

Como se vê, toda essa gama de fatores, notoriamente, contribuem para a desigualdade da justiça penal. Entretanto, como já dito, dada as características desses fatores, não há como estabelecer uma relação de causa e efeito entre os mesmos e o desequilíbrio do tratamento da justiça penal.

 

4. O CRIME DO COLARINHO BRANCO QUANTO À PREVENÇÃO E À REPRESSÃO

Embora não se tenha cuidado de falar, detidamente, até aqui, sobre a nocividade da criminalidade do colarinho branco, não há como duvidar da capacidade lesiva de algumas condutas dos white-collars. Como se sabe, o white collar crime não é apenas causador de prejuízos financeiros de muito maior vulto do que a chamada criminalidade comum. Por violar a confiança, vulnera o sistema econômico, e, em alguns casos, a própria estrutura política do Estado, pois concentra a riqueza com práticas que eliminam a concorrência (trust, dumping, etc.), subtraem recursos destinados ao desenvolvimento social (distribuição de renda, moradia, educação, cultura, etc.), além de provocar danos físicos (condições inseguras ou insalubres de trabalho) e ao meio ambiente.

Por tudo isso, se o Estado pretende continuar a existir como tal, não poderá abrir mão de seu papel interventor e regulador dos atos da vida econômica e social. Contudo, é preciso que a medida dessa intervenção, tanto no campo preventivo quanto repressivo, não seja de ordem tal a desnaturar o propósito das coisas, especialmente quanto à utilização do direito penal – que jamais poderá arvorar-se em instrumento de transformação social – para regular as atividades econômicas, pois a vida social e, conseqüentemente, a vida econômica, comportam riscos indissociáveis de sua dinâmica.

Sintetizando com propriedade essa dicotomia, o Professor EDUARDO FARIA já asseverava: “Em certos casos, tal caminho conteria cobertura para uma perigosa modelação ou direcção da vida económica que contraria o princípio da liberdade de exercício de actividades económicas, essencial ao seu sentido. Seguindo-o, ir-se-ia esfacelar a força dinamizadora da livre iniciativa, negando a finalidade do lucro, que largamente promove o desenvolvimento e o progresso económicos.”40

Ou, como BERCKAUER, citado pelo mestre acima mencionado, “a sociedade económica só se deixa regular até um certo ponto. A partir dele ela entorpece.”41

Parece-nos, pois, que é mais ou menos a partir dessa ótica que devemos encarar os modelos preventivos e repressivos do crime do colarinho branco.

4.1. Da prevenção

Embora a própria punição tenha um caráter preventivo (geral e especial), que será objeto de algumas considerações mais adiante, a prevenção aqui abordada concentra-se nas medidas não penais, destinadas a evitar o cometimento de crimes. E, quando se pensa em prevenir, convém apenas relembrar, não se discute a possibilidade de “curar” a sociedade, mesmo porque a criminalidade parece congênita a ela.

Ninguém discute a importância da prevenção do crime, notadamente no caso da criminalidade do colarinho branco, como alerta CLÁUDIA SANTOS: “(...) no âmbito do crime de colarinho branco, a importância da prevenção é, segundo cremos, acrescida: em primeiro lugar, porque o dano pode ser de tal modo grave e vitimar um tão elevado número de pessoas que a necessidade de o evitar é especialmente imperiosa; em segundo lugar, porque a repressão é confrontada com tantos problemas, sobretudo de índole “prática”, que a sua eficácia é freqüentemente escassa; finalmente, porque sendo o agente de colarinho branco alguém que

 

 

40 Op. cit., p. 12.

 

 

actuará, regra geral, no quadro de escolhas racionais, tornar-se-á mais fácil a prevenção situacional.”42

A literatura criminológica é escassa no que se refere à prevenção dos crimes do colarinho branco, como observado por CLÁUDIA SANTOS43. Parece-nos que essa escassez de literatura sobre prevenção não se deve exclusivamente às particularidades do white-collar crime, mas sempre marcou a criminologia de um modo geral, que, embora sempre tivesse reconhecido sua importância, pouco se dedicou a discutir métodos efetivos de prevenção do delito, e, quando o fazia, preferia, muitas vezes, mencionar programas de prevenção que, de tão abstratos, não possuíam utilidade prática alguma. Essa crítica à criminologia, que inclusive pôs em causa a sua própria razão de ser, foi feita com indiscutível vigor por LOPEZ-REY já em 1975, que terminou por extrair as seguintes conclusões:

“Em suma, a fórmula da prevenção do delito é suficientemente raquítica para duvidar da vitalidade da criminologia contemporânea e suas construções teóricas. Como desculpa se dirá que a causa do delito é complexa, coisa que se tem repetido à exaustão, mas tal raciocínio, mais que justificar o presente estado de coisas, o repudia, e estabelece a necessidade de enfocar a prevenção conforme um ponto de vista não causal, o que quer dizer, histórico, e em estreita relação com o desenvolvimento do país, e não conforme a uma exposição fatorial ou uma enciclopédia mais ou menos erudita de disciplinas afastadas da realidade.”44

Mesmo em meio a essa crise da criminologia, surgiram algumas propostas que procuravam concentrar esforços na prevenção do delito, como a de CHRISTOPHER STONE que defendia a idéia de se adotar medidas intrusivas que interferissem nos processos decisórios das corporações, através de registros das decisões que envolvam riscos, da imposição aos altos dirigentes de que conheçam o que se passa nos setores a eles subordinados45, além de obrigar que, nos centros de decisão, tenham lugar representantes alheios à estrutura da corporação,

 

 

 

41 Idem.

42 Op. cit., pág. 211.

43 Idem.

44 Tradução livre do autor, op. cit., p. 325. A propósito, vale lembrar que, como proposta de prevenção, o criminólogo espanhol enumerou áreas de prevenção, como o alcoolismo, a corrupção e o crime organizado, a educação, o desenvolvimento econômico, a população, o sistema penal, a toxicomania, a urbanização e a violência, áreas essas que reconhecidamente variam em importância e extensão, que requerem uma coordenação entre as várias políticas (social, econômica, etc), por traduzirem as zonas das relações humanas, o jogo das instituições, as ideologias, os interesses, os grupos e classes, que em resumo se constituem na estrutura evolutiva de um país, manifestando-se de forma relevante no tocante à prevenção do delito.

45 Sobre esse tema, Katherine M. Jamieson alerta que os altos executivos das corporações não estão interessados em controlar os processos de decisão de seus subordinados, pois enquanto as metas da corporação estão sendo atingidas, não se quer saber como (se ilegalmente ou não) aconteceu. Nesse sentido, adverte a britânica que os sistemas de controle são mais eficientes para detectar os crimes ocupacionais de que as corporações são vítimas do que as ilegalidades cometidas para atingir as metas da corporação (op. cit. p.s 13 e 14).

 

 

 

tais como consumidores, trabalhadores, membros de entidades de fiscalização da qualidade dos produtos e da segurança no trabalho.46

Essas idéias, entretanto, dificilmente ganharão espaço na realidade do mundo atual, excessiva e economicamente orientado, pois essa ingerência nas corporações seria contundentemente rechaçada, sob o argumento de que toda a estrutura do mundo econômico está centrada nas estratégias que se desenvolvem para orientar o funcionamento das empresas e que, tornar público – seja para muitos ou para poucos – os planos estratégicos das empresas seria o mesmo que dividir com o inimigo de guerra os próximos passos de seu ataque.

Outra idéia não só interessante, mas com grande possibilidade de se revelar eficaz na prática, é a dos processos de advertência, mencionada por CLÁUDIA SANTOS, através dos quais a Administração, verificando a potencialidade lesiva de uma conduta, ou até mesmo observando que a conduta já produziu uma lesão, mas de fácil reparação quando esta é “imediata”, lavra um auto advertindo o infrator de que se não modificar seu comportamento ser-lhe-á aplicada uma sanção. Como observa a Professora lusitana, “caso ainda não se tivesse verificado um prejuízo irreversível, este processo especial poderia evitá-lo, já que o infractor terá interesse em se empenhar nesse sentido para evitar a punição. É esta possibilidade de evitar um dano maior em domínios – como o do ambiente – em que a lesão pode prejudicar o bem jurídico de forma irrecuperável que nos parece justificar um alargamento do campo de aplicação do processo de advertência.”47

Outras técnicas de prevenção, como salienta ALBERTO ZACCHARIAS TORON, devem partir do próprio Estado, com a diminuição dos fatores criminógenos gerados por ele mesmo, tais como as políticas fiscais “confiscatórias” e a corrupção que minam a credibilidade das ações governamentais e “legitimam” a delinqüência da sonegação, da receptação de produtos de descaminho, condutas que, dentro desse quadro, terminam não sendo motivo de vergonha para quem as pratica.48

Apesar da existência de bem intencionadas propostas de prevenção do delito, temos para nós que essa a missão de prevenir o crime – a qual, repita-se, nunca pretendeu curar a sociedade do mesmo – continuará cada vez mais inglória, na medida em que perdurar, em praticamente todas as sociedades existentes, independentemente da classe social, a concepção materialista de sucesso, entendido este como a posse de bens e dinheiro49.

 

 

 

46 Seguimos Cláudia Cruz, op. cit., p. 211 (Cf. Christopher Sotne, Where the law ends: The social control of corporate behavior, Nova Iorque: Harper and Row, 1975, pp. 179 e seguintes e pp. 203 e seguintes).

47 Op. cit., p. 213

48 Seguindo Alterto Zaccharias Toron, in Revista Brasileira de Ciências Criminai 28, RT 1999, p. 83

49 Seguimos Lopez-Rey, op. cit., p. 333.

 

 

 

4.2. Da repressão

Antes de abordar o tema, é preciso deixar ressalvado que a legitimidade do Estado e a do direito de punir parecem algo improvável, ao menos do ponto de vista ontológico, de maneira que, sem nos determos a essa discussão – o que certamente exigiria um ou muitos outros trabalhos –, partiremos do postulado de que o são, ao menos quando esses poderes são “consentidos”50, como de certa forma ocorrem nos chamados Estados Democráticos de Direito.

Assim sendo, o Estado, incumbido da missão de gerar, em tese, o bem estar de todos, assume a função de intervir no comportamento dos indivíduos, administrando a convivência dos direitos e a preservação de bens jurídicos.

Para isso, o Estado deve dispor de um aparato – seja ele legislativo ou consuetudinário –, a fim de estabelecer meios coercitivos para fazer prevalecer os desideratos que motivaram, em princípio, a sua própria concepção.

O direito penal se apresenta também como um desses mecanismos de que dispõe o Estado para regular a vida social. Entretanto, a tutela a ser exercida pelo direito penal, dada a sua notória violência e poder estigmatizador, deve ser de natureza subsidiária, ou seja, deverá atuar nas hipóteses onde outros mecanismos de controle se revelaram ineficazes. É direito de ultima ratio. Mais do que isso, o direito penal só deverá fazer-se presente para tutelar bens jurídicos que possuam dignidade penal, ou seja, que encerrem, de certa forma, e numa concepção sociológica, os direitos individuais e sociais considerados fundamentais51 (preexistentes à norma?).52 Mesmo após a verificação de todos esses elementos, somente deverá incidir a tutela penal se esta revelar-se realmente necessária, do ponto de vista da prevenção geral53, da prevenção especial54, em seu aspecto positivo, sem que se adote o direito penal puramente simbólico, procurando atender às expectativas de integração e ressocialização.

 

 

 

50 Georges Burdeau, em “L‟Étá”, pp. 26 a 31, citado por Dalmo de Abreu Dallari em “Elementos de Teoria Geral do Estado”, 15.ª edição, Saraiva, São Paulo, 1991, p. 38.

51 Exemplos de condutas que possuem grande desvalor, dignos da repressão penal, são aquelas condutas em que dolosamente ou com negligência grave se põe em perigo a vida ou a integridade física das pessoas (Cláudia Santos, op. cit., p. 215).

52 Sobre esse tema ver em Figueiredo Dias, o Capítulo “A questão do conteúdo material do conceito de crime (ou fato punível)”, da obra “Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas”, RT, São Paulo, 1999.

53 A pena, como lembra Figueiredo Dias é um importante “instrumento político-criminal destinado a atuar(psiquicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-se da prática de crimes através da ameaça e da efetividade da sua execução.” (prevenção geral). Assume duas vertentes, uma é a da intimidação. Os indivíduos, observando o sofrimento do delinqüente no cumprimento da pena, sentir-se-iam menos propensos a cometer delitos (prevenção geral negativa). A outra, chamada prevenção geral positiva, é reafirmação a validade da norma com a efetiva punição.

 

 

 

Mas quanto ao crime do colarinho branco, o que fazer?

Parece-nos que ao crime do colarinho branco essas concepções continuam igualmente válidas. Porém, é preciso deixar claro que tentar superar indesejáveis desigualdades de tratamento não significa uniformizar o tratamento de condutas, por vezes, bem distintas. Quando se fala em crime comum e crime do colarinho branco não se pode ter a idéia de que são simplesmente duas categorias de crimes. Dentre os crimes chamados de comuns existem condutas as mais variadas, para as quais são recomendáveis diferentes tratamentos. Assim também ocorre no chamado crime do colarinho branco. Como bem anota CLÁUDIA SANTOS, algumas infrações do colarinho branco sequer poderiam ser objeto de incriminação, enquanto outras, dependendo da situação, não demandariam a aplicação da pena de prisão.

Alguns advogam a idéia de que, para os crimes do colarinho branco, são recomendáveis as penas de prisão de curta duração, em regimes fechados, uma vez que essas cumpririam o papel da prevenção geral e especial, na medida em que exporiam o delinqüente à vergonha social. Retribuir-se-ia a culpabilidade como elemento de reforço da validade da ordem jurídica, sem produzir no white-collar, entretanto, os efeitos deformadores do cárcere, por não ser este tão permeável à cultura prisional que leva o delinqüente a adquirir uma identidade com a carreira criminosa, advinda da estigmatização e da exclusão social de um modo geral.55 Entretanto, estudos já verificaram que essa teoria do sharp-short-shock não tem produzido os efeitos desejados, especialmente no tocante à prevenção especial, ante os altos índices de reincidência apresentados.

Para sustentar o encarceramento do criminoso do colarinho branco, muitos argumentam que a esse tipo de delinqüente, dispensáveis são as preocupações com a sua ressocialização, enquanto critério para aplicação da pena, visto que são indivíduos já inseridos no contexto social, bem educados, com ocupações lícitas, etc. Neste ponto, corretos estão FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE para quem a recuperação social não significa impor alterações às concepções globais do delinqüente. É evidente que a ressocialização do criminoso do colarinho branco não está em promover a sua inserção cultural, econômica e familiar. Essa espécie de crime também encerra um defeito de socialização, não nos moldes retro citados,

 

 

 

54 A prevenção especial é uma das finalidades da pena que deverá cumprir um papel de, respeitados os valores individuais do delinqüente, proporcionar condições a fim de que não volte a cometer crimes.

55 Jorge de Figueiredo Dias, em “Breves Considerações sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das penas em Direito Penal Económico”, do livro “Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico”, 1.ª edição, Coimbra, 1985, p. 38.

 

 

 

mas no que se refere à “atitude pessoal perante uma orientação estadual em matéria sócio-económica”56

Outros, em razão da dificuldade da dogmática jurídico penal em construir tipos criminais adequados, da dificuldade de produção probatória sobretudo nos crimes das grandes corporações, do fracasso da ressocialização e dos elevados índices de reincidência, defendem a pena de prisão como mera retribuição, “independentemente da culpa ou, em função de uma simples censura objetiva do facto, ao estilo da doutrina dos just deserts”.57 Isto, além de não atender às finalidades da pena (o direito penal assumindo-se mais do que nunca inócuo), certamente nos conduziria ao caos social, fruto da insegurança jurídica trazida pela responsabilidade penal objetiva que, paulatinamente, vai corroendo o consentimento popular (sensação de injustiça), e, em última análise, leva à perda da legitimidade.

Algumas alternativas à prisão parecem ter melhor atendido às finalidades da pena, tanto em relação à criminalidade comum quanto à criminalidade do colarinho branco. São, por exemplo, as penas restritivas de direitos, as de prestação de serviços à comunidade e as multas. Neste particular, algumas construções teóricas em torno da responsabilização penal da pessoa jurídica têm apontado as vantagens de uma nova dogmática que, sem desprezar a responsabilidade do indivíduo, pune a empresa ou corporação sob o argumento de que, nas empresas ou nas corporações, o papel do indivíduo perde relevo ante os anseios corporativos. Desse modo, de nada adiantaria punir o indivíduo – mero portador da vontade coletiva – para atender à prevenção especial, se o indivíduo dentro da empresa e das corporações torna-se fungível. Ou seja, pune-se o indivíduo, e a empresa ou corporação continua a delinqüir. Embora tais afirmações façam muito sentido, ainda não nos convencemos da necessidade ou da vantagem de se responsabilizar penalmente a pessoa jurídica, dada a indiferença qualitativa dessas penas, seja no âmbito do direito penal, seja no civil ou administrativo (suspensão parcial de atividades, interdição do estabelecimento, proibição de contratar com o poder público, multa)58. Alguns defensores da responsabilização penal da pessoa jurídica argumentam que o direito civil e o direito administrativo não conferem tantas garantias quanto o direito penal substantivo e adjetivo. Além disso, alertam que a parcialidade da Administração no trato de algumas questões poderia ocasionar indesejadas distorções e iniqüidades no julgamento dos casos. Como contra-argumento a essas objeções, pode-se sustentar a criação de tribunais administrativos, independentes da Administração, dotando-se

 

 

 

56 Idem, p. 37.

57 Ibidem, p. 34.

58 Aqui entendida como qualquer sanção pecuniária.

 

 

 

o ordenamento de regras que preservem algumas das garantias do direito penal clássico, sem que haja necessidade de se nominar como penal a responsabilização da pessoa jurídica.

Quanto à multa como alternativa de pena a ser aplicada, especialmente em relação à criminalidade do colarinho branco, deve se levar em conta não apenas a danosidade social da conduta, mas também a vantagem econômica obtida em função do cometimento do crime, a fim de que a sanção pecuniária a ser aplicada seja minimamente eficaz quanto a sua capacidade de inibir a prática da infração. Até porque, alerta FIGUEIREDO DIAS, “se conhece a facilidade com que a multa é integrada no cálculo dos potenciais delinqüentes, de modo que os ganhos com o crime excedam os custos da pena”.59

Outra alternativa, que tem mostrado alguma eficácia, está no aumento das práticas da chamada justiça reparadora, que permite ao criminoso a oportunidade de restaurar o status quo ante da vítima, sem que isso lhe acarrete as conseqüências penais da conduta lesiva. Ou, ainda, nos casos em que a iniciativa reparadora, apesar de não mais conseguir evitar uma ou outra lesão a bens jurídicos, surge como solução para se evitar lesões de proporções muitíssimo maiores, como no exemplo dado por CLÁUDIA SANTOS, no caso da indústria farmacêutica que desrespeitando as normas de qualidade, expôs os consumidores a graves perigos de saúde. Em casos assim, é preferível contar com o concurso do infrator para retirar o produto do mercado do que, em nome da preservação do caráter cogente do comando legal, continar a expor um maior número de consumidores a perigo.60

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS (À VISTA DO MOMENTO BRASILEIRO)

Observa-se, hoje em dia, em especial no Brasil, que após a abertura política – já que diante dos índices sociais não é possível dizer que vivemos uma democracia – a mídia e o Ministério Público (menos cativo dos poderes) passaram a desempenhar um grande papel na democratização do direito penal. Nunca se viu tantos ricos e poderosos sendo processados e, até mesmo, condenados, não só por crimes comuns, mas também por crimes do colarinho branco. Embora seja louvável que ricos e poderosos deixem de ser imunes ao direito penal, superando-se cada vez mais a desigualdade entre o tratamento penal do criminoso comum e do criminoso do colarinho branco, o que se tem observado, porém, é uma sanha desmedida de querer vingar décadas e, porque não, séculos de exploração, opressão e desigualdade. Esse comportamento pode ser observado já com o legislador, que, com voracidade e muita demagogia, tem criado um arsenal incontável de condutas delitivas, muitas delas que não possuem dignidade penal, outras com tipos abertos, ferindo o princípio da legalidade,

 

 

59 op. cit., p. 39

 

 

transformando o sistema jurídico num verdadeiro direito do terror. Tudo para atender às expectativas populares que vêem no direito penal a grande saída para a maioria das nossas mazelas. Tais posturas encontram também grande respaldo na mídia, que, para além do seu desejável papel denunciador e informativo próprio das tribunas livres, não deixa de insuflar essa verdadeira caça às bruxas, com a execração pública de acusados sem que estivessem garantidos o direito de defesa e o devido processo legal61. Conta-se, ainda, com o apoio de intelectuais e políticos de esquerda, os quais aproveitando todo esse clima, propalam o encarceramento indiscriminado dos autores de crimes do colarinho branco, num indisfarçável sentimento de desforra, assemelhando-se, e muito, aos discursos punitivos e popularescos dos regimes de direita. Nesse sentido, vale recordar as palavras de ALBERTO ZACCHARIAS TORON, em seu sugestivo texto “Crimes de Colarinho Branco: os novos perseguidos?”: “... o que outrora se combateu como opressão dirigida aos segmentos desfavorecidos, porque afrontoso aos Direitos Humanos, não pode, perversamente, vir validado e aplaudido como se fosse a “democratização do direito penal”, que agora também atinge os ricos.”62

Embora do ponto de vista histórico se possa atribuir a esses comportamentos a característica de um refluxo ou uma reação à forma que vinha se aplicando o direito penal – só para os criminosos das classes mais desfavorecidas, para as minorias étnicas, culturais, etc. – é lamentável observar que o “torturado” tenha aprendido tão depressa a ser “carrasco” que se olvidou do sofrimento a que já foi impingido.

 

6. BIBLIOGRAFIA

ALBERGARIA, Pedro Soares de. A posição de garante dos dirigentes no âmbito da criminalidade de empresa. Coimbra: Coimbra, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, Fascículo 4.º, Outubro-Dezembro 1999.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Princípio garantistas e a deliqüência do colarinho branco. São Paulo: RT, Revista Brasileira de Ciências Criminais 11, julho-setembro 1995.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CORREIA, Eduardo. Notas Críticas à Penalização de Actividades Económicas, Coimbra: Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico, 1985.

 

 

 

60 Op.cit., p. 208.

61 Seguindo Alberto Zaccharias Toron, in, Revista Brasileira de Ciências Criminais 28, RT, 1999, p. 74.

62 Idem.

 

 

 

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