O acesso à internet como dirieto fundamental (1ª parte)


Porjeanmattos- Postado em 17 outubro 2012

Por Ivar Alberto Martins Hartmann

 

 

RESUMO

 

O artigo realiza uma construção teórica que culmina com a caracterização do acesso à Internet como um Direito Fundamental na ordem jurídica brasileira. Ocorre que, a despeito da ausência de previsão expressa do mesmo na Constituição de 1988, esta estipula a abertura de seu catálogo de Direitos Fundamentais através do artigo 5º, §2º. Assim, o estudo destina-se a apresentar argumentos fundamentados que justifiquem a inclusão do referido direito através deste mecanismo. Trata, inicialmente, da Internet: seu histórico, conceito adotado e principais implicações sociais, principalmente a da criação de uma nova esfera pública. Ato contínuo, aponta determinados Direitos Fundamentais cuja relação com a Rede é mais próxima, abordando as implicações decorrentes da concretização destes na Era da Informática. O trabalho enfrenta a questão principal ao final, utilizando a teoria de Direitos Fundamentais e aspectos da atual realidade política e social para classificar o acesso à Internet como um direito fundamental decorrente da Constituição de 1988, indicando então suas características, classificação e eficácia.

 

Palavras-chave: Internet. Direitos Fundamentais. Informação.

 

INTRODUÇÃO

 

                A popularização da Internet é um dos mais importantes fenômenos sociais do mundo contemporâneo. Suas repercussões no estudo do Direito já são notadas, principalmente no campo do direito comercial e do direito penal. Mas a questão do impacto da Rede sobre o ramo das ciências jurídicas e sociais a isto não se resume.

Ocorre que a Internet verdadeiramente mudou a vida de todos. Está ligada a todos os aspectos de nossa existência: o trabalho, a vida social, a saúde, a educação. O Estado não mais prescinde dessa ferramenta. Preliminarmente, pode-se dizer que a Rede tornou-se muito importante para a sociedade. Intentamos, com este estudo, responder de que maneira e por quê.

                De fato, a Internet é de tal maneira importante que alguns já afirmam não poder viver sem ela. Para lá de uma banal e infundada argumentação empírica dessa importância, consideramos necessário demonstrar, através de argumentos teóricos e análise crítica, baseada na mais moderna doutrina constitucionalista, como, diante de sua relevância social, o acesso à rede mundial de computadores pode ser considerado um Direito Fundamental.

 

MARCO TEÓRICO: TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ADOTADA

 

                Primeiramente, antes de adentrar a questão da Rede, faz-se necessário, em vista do objetivo do trabalho, a identificação daquilo que temos por Direitos Fundamentais. Nessa seara, seguimos principalmente a doutrina de Ingo Sarlet, além de J. J. Gomes Canotilho, Vieira de Andrade e Antonio Enrique Pérez Luño.

                Partilhamos do entendimento do primeiro, quanto à abertura do catálogo constitucional brasileiro de Direitos Fundamentais, através da previsão do artigo 5º, §2º. Dessa maneira, reconhece-se a existência de direitos que, a despeito de não estarem expressos no local tradicional da Constituição de 1988, são também materialmente fundamentais: seja por subjazerem em determinado direito expresso, necessitando apenas redelimitação, seja por decorrerem dos princípios fundamentais, manifestando substância e relevância similares aquelas dos direitos expressos2. O conceito de Direitos Fundamentais adotado é aquele de Pérez Luño, que entende tratar-se de

“un conjunto de facultades y instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional y internacional”3.

 

 

INTERNET: UM FENÔMENO SOCIAL

 

                A rede mundial de computadores que conhecemos hoje resulta de um projeto do governo americano iniciado durante a Guerra Fria que pretendia criar uma rede de comunicação composta de diversas sub-redes, de maneira descentralizada, permitindo a compatibilidade entre o grupo através da adoção de um mesmo protocolo de transmissão de dados. De início, essa rede era administrada pelo órgão conhecido como ARPANET. Seu uso pela comunidade acadêmica, inicialmente, e, mais tarde, pelo público em geral através da popularização dos provedores de acesso, bem como a configuração de uma interface gráfica simplificada, de fácil manuseio por leigos, tornaram a Rede o meio de comunicação que atualmente usam centenas de milhões de pessoas no mundo inteiro. A lei 11.491, de 19 de dezembro de 2006, que trata do processo judicial eletrônico, define a Internet como uma “forma de comunicação a distância com a utilização de redes de comunicação” (artigo 1º, §2º, inc. II). Dessa maneira, por Internet, Rede ou rede mundial de computadores, temos “A vasta coleção de redes interconectadas que usam o TCP/IP como protocolo e que evoluíram da ARPANET no final dos anos sessenta e no início dos anos setenta.”4.

                O historiador americano Mark Poster analisava, já em 1995, quando a rede contava com apenas trinta milhões de pessoas conectadas e era considerada “elitista”, os efeitos da Internet na sociedade. Relatou que então, assim como hoje, muitos se perguntavam como essa nova tecnologia iria modificar a vida dos indivíduos. Mas Poster indica que o erro dessa pergunta está em qualificar esse novo fenômeno como uma “tecnologia”. Para ele, a Internet não é tão parecida com uma “tecnologia”, quanto o é com um “espaço social”. Em sua inteligente metáfora, associa as tecnologias aos martelos, e a rede mundial à Alemanha: os martelos têm a simples função de pregar pregos; a Alemanha afeta as pessoas no sentido de torná-las mais alemãs5. Explica então que a Internet, em sua complexidade, pode, eventualmente, exercer a função de um martelo. Isso ocorre quando a utilizamos para efetuar a reserva de uma passagem aérea ou mandar entregar flores para a parceira no Dia dos Namorados. Contudo, a falha em entender seu funcionamento está justamente em pensar que ela se resume simplesmente a isso. Assim, o mundo virtual é, em sua essência, um novo espaço social, que permite diferentes tipos de comunicações entre indivíduos.

Os elementos que tornaram a Internet um fenômeno social são, principalmente: a relativa facilidade de adquirir acesso, a mundialidade da estrutura, a sua descentralização6, a velocidade de transmissão da informação e a dupla via em que essa informação é transmitida. Essa última característica distingue a Rede dos meios de comunicação em massa tradicionais. A Internet cria uma nova esfera pública, ou uma nova comuna, apresentando similaridade com as assembléias das cidades-estado gregas ou as antigas reuniões no centro das pequenas cidades7. Pérez Luño denomina-a de “nuevo tejido comunitario”, ressaltando que houve uma mudança qualitativa radical no que se refere ao acesso à cultura, ao conhecimento e à informação8. Ao contrário do que alguns podem afirmar o mundo virtual não é antagônico ao real, não é um mundo inexistente, imaginário. É um novo tipo de realidade, um outro eixo de existência9. Esse novo plano de relações sociais provocou modificações no plano real ou tradicional de existência.

                Essa esfera pública, infelizmente, populada que está pelos mesmos indivíduos que habitam o mundo real, reproduz em seu meio problemas similares. Inicialmente uma comuna, onde circulava a informação sem qualquer critério hierárquico ou econômico, representando um meio de informação legitimamente democrático (o que não significa dizer popular), a Rede passou gradualmente a manifestar a forte presença das grandes empresas, impondo-se, aí também, a lei do mercado. Estas empresas pretendem ocupar espaço cada vez maior nesse meio10, competindo de maneira desigual com particulares, estabelecendo número excessivo de patentes comerciais11, procurando eliminar o software livre12, tornando a Internet um espaço muito mais do consumidor que do internauta. Trata-se da mercadorização da Rede13. Da mesma forma, repetem-se desvios sociais como o racismo e a discriminação sexual14, além da constante força no sentido do surgimento de hierarquias, mesmo dentro de espaços de discussão entre pessoas com as mesmas características15.

                São tecidas algumas críticas a essa nova esfera pública. Diz-se que permite que o indivíduo se informe apenas do que quer, além de propiciar o isolamento em grupos fechados de discussão16. Apesar de reconhecermos que as críticas não são infundadas, discordamos daqueles que entendem que o espaço público virtual tem influência dessocializadora sobre as pessoas, influenciando-as no sentido de propiciar a individualização. Acreditamos tratar-se de um meio que incentiva a comunicação aberta, indiscriminada, de maneira plural e democrática. O fato de que conta com alguns defeitos, como qualquer outro meio, não desmerece nem descaracteriza a Rede como uma nova esfera pública, um fenômeno social.

 

DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS

 

                Existem diversos pontos de conexão entre os Direitos Fundamentais e a Internet que, por merecerem análise mais detalhada, serão endereçados separadamente. Já em 1968, Bobbio previra que a revolução tecnológica no campo das telecomunicações implicaria em mudanças tais na organização dos indivíduos e nas relações sociais que surgiriam então situações favoráveis para “o nascimento de novos carecimentos e, portanto, para novas demandas de liberdade e de poderes”17.

               

Direitos Políticos e Teledemocracia

 

                A idéia de democracia que surgiu na Grécia antiga era sustentada pela participação de todos os homens livres da polis nas decisões acerca da administração e política externa da mesma. Essa participação era manifestada através de sustentações orais perante os iguais, expondo idéias ou argumentos e através do voto. Após séculos de autoritarismo e absolutismo reinando sobre o mundo civilizado, resgatou-se a noção de participação popular dos membros da comunidade através de sua manifestação de vontade acerca dos rumos da nação como parte da noção de cidadania. Mesmo mantendo-se nesse âmbito um tanto quanto restrito de representatividade, o processo de seleção popular passou por grandes transformações. Embora as mais importantes sejam aquelas concernentes à transição de um sistema de voto censitário, racialmente e sexualmente discriminatório, para o sufrágio universal, há que se considerar também a drástica reformulação que proporcionaram os avanços nas telecomunicações, mormente a Internet. O uso de um sistema computadorizado de manifestação, apuração e processamento dos votos, associado à interligação instantânea entre todas as regiões brasileiras no plano virtual permite que os resultados de uma eleição nacional sejam conhecidos em poucas horas.

                A discussão já se moveu para outro patamar. Com a popularização da Internet, realidade nos países desenvolvidos e projeção nos demais, a questão que naturalmente surge é: porque não se pode votar pelo computador? No Brasil, uma opção por uma tentativa de democracia direta parece ainda mais tentadora em razão da vergonhosa atuação das casas legislativas. Antes de tudo, há que se reconhecer que o suporte tecnológico para isso existe. Não é mais ficção científica, nem tampouco um sonho dos iluministas. Mas essa fascinante idéia esbarra de início na questão da digital divide, que será posteriormente abordada. Esse suporte tecnológico não está ao alcance de todos, sequer da maioria. Quando essa questão for resolvida, teremos então um sistema que permitirá manifestar o voto a partir de casa ou outro local de conveniência, estando isso disponível para todos os eleitores. A princípio seria a solução de muitos, senão todos, os problemas políticos da atualidade. O indivíduo escolheria diariamente a linha a seguir em termos de políticas publicas e determinaria a posição da legislação em assuntos controversos sem medo de desagradar seus eleitores, entre outras vantagens. Além do mais, não seria tão fácil para uma grande empresa com determinados interesses escolher um resultado se tivesse que “comprar” milhões de pessoas ao invés de algumas dezenas de deputados.

                O constitucionalista espanhol Pérez Luño redigiu importante obra a respeito do assunto da teledemocracia. Nela, aponta como teledemocracia fraca aquela em que a Internet é usada apenas para reforçar a atuação parlamentar, não implicando em um rompimento com a democracia indireta18. No Brasil, já se sentem os efeitos que aponta o espanhol. O uso da Internet já condiciona a atuação dos partidos políticos, em razão da facilidade de realizar pesquisas de opinião, resultando em uma grande aproximação entre os eleitores e os candidatos. Dessa forma, as eleições hoje têm uma dinâmica completamente diferente daquelas realizadas antes da Era da Informação19.

                A teledemocracia forte pressupõe a substituição da democracia parlamentar representativa por novos tipos de democracia direta ancorados na participação popular20. As democracias representativa e direta, não são, nem uma nem a outra, a melhor opção quando consideradas isoladamente. Necessários são o equilíbrio e complementaridade entre as duas, vez que “la democracia representativa (...) resulta imprescindible para asegurar la deliberación, mientras que la democracia directa es más eficaz para garantizar la participación”21.

                As considerações acima traçadas na defesa de uma democracia direta são compatíveis, em parte, com as vantagens deste sistema como referidas por Pérez Luño. Trata-se, segundo ele, da possibilidade de concretizar um poder democrático real, de deslocar o protagonismo político dos partidos para o indivíduo, de evitar as disfunções dos sistemas eleitorais e distorções do sistema de representação, de impedir a corrupção da democracia representativa e, por fim, de acabar com a manipulação da opinião pública22. Mas o autor menciona também os riscos da democracia direta: a promoção de uma cultura vertical das relações políticas, a apatia e despolitização dos cidadãos, resultando em uma atitude passiva, diante de uma possível manipulação e controle ideológico, a mercantilização da esfera pública, o empobrecimento da produção legislativa, a vulnerabilidade diante dos crimes informáticos e, por fim, ameaça ao direito a intimidade23.

                 

                Entendemos que a participação popular deva ser real e efetiva, dentro dos limites do adequado. Cremos que a inteira redação de leis pela população tornaria realidade o risco apontado acima, de pobreza legislativa. A participação popular poderia tornar-se disfuncional. Dentro de uma relação de complementaridade entre os dois sistemas, entendemos que uma solução a ser considerada é aquela que prevê o uso de democracia direta para a determinação do caminho a seguir nos temi caldi da atualidade: aborto, maioridade penal, eutanásia, etc.24. Ademais, a questão envolve muito cuidado quando se amplia o demos-poder além do ­demos-saber. Significa dizer, a teledemocracia não poderá amadurecer antes que a informação, a maturidade e a consciência política cívica atinjam toda população25. Aqui nos vemos novamente em contato com a questão de uma esfera pública virtual, que pode atuar como viabilizadora dessas condições. Para tanto, novamente resta configurada uma necessidade de constitucionalismo global.

                Profundo estudo merece a problemática de um sistema democrático direto. O objetivo aqui era meramente mostrar que a popularização da Internet torna esse estudo necessário e essa realidade iminente.

 

Direito à Liberdade Informática

 

                O direito a informação merece lugar de destaque no rol de Direitos Fundamentais, conforme o autor português Paulo Ferreira da Cunha. As liberdades de expressão e comunicação são sustentáculos da liberdade em si, dos direitos civis e políticos, da cidadania. Assegurada a vida e a saúde do indivíduo, “(...) o momento primeiro de livre desenvolvimento da personalidade em que se analisa a dignidade humana em acção, será o livre interagir com o seu semelhante.”26. Isso porque a sociedade é, em si mesma, comunicação27. Para Frank Michelman, a liberdade de expressão é, ao contrário da própria democracia, um fim em si mesma. A democracia serve ao homem para optimizar a concretização dos Direitos Fundamentais pelo Estado28. Já a liberdade de expressão é um destes Direitos. Ocorre que o direito à informação e o direito à liberdade de expressão são duas faces de uma mesma moeda29. Exceto quando a informação vem do Estado, recebê-la sempre significará que o emissor não está sendo inibido em sua atividade, seja ela profissional, seja amadora, de expressar-se. Dessa forma, elucidativa a explicação que nos proporciona o doutrinador lusitano: “Direito a informação pode ter conotações de liberdade de emissão de conteúdos, acesso a dados por ação própria de pesquisa, e finalmente, direito a recepção de elementos ou mensagens informativas – presume-se que por parte do Estado.”30.

                Todas essas idéias e conceitos são válidos para um Estado Democrático de Direito em qualquer época ou lugar. Informação é um instrumento de poder31. Contudo, a adição da Internet à equação inevitavelmente complicará as coisas. Frente ao totalitarismo, de que faz parte o monopólio informativo do Estado, uma sociedade democrática requer um pluralismo informativo, bem como o livre acesso e a livre circulação da informação32. Cunha sustenta, de maneira entusiasmada, porém não desligada da realidade, que, resolvidos alguns problemas de inclusão digital, a Internet será a solução para a comunicação33. Apesar de ser uma mídia democrática por excelência desde sua popularização, a rede mundial está sujeita aos mesmos malefícios que assolam a sociedade, segundo já explicitamos. Para Perez Luño, o verdadeiro desafio constitui assegurar o uso democrático da information technology34. Proliferam na rede discursos discriminatórios, ao mesmo tempo em que grandes empresas intentam obter controle do espaço virtual.

                Mas a maior ameaça aos direitos civis dos indivíduos continua sendo a atuação do próprio Estado35. Este sempre possui, na área da segurança pública, uma tendência ao autoritarismo, ao policiamento excessivo, ao inquisicionismo. Esse “instinto” já é de difícil controle em situações normais, mas passa a ser alimentado pelo medo em certas circunstâncias. É inevitável que, em um mundo globalizado, cuja sociedade é informatizada, violações de Direitos Fundamentais sigam ocorrendo na, e com o uso da, Internet. Além dos direitos à informação e liberdade de expressão, resta constantemente açoitado o direito à privacidade ou intimidade.

                O direito à privacidade está diretamente ligado ao intercâmbio, voluntário ou não, de informações entre os indivíduos e entre estes e o Estado. A doutrina é pacífica em indicar as raízes do direito à intimidade na idealização americana do senador Samuel Warren e do jurista Louis Brandeis36. O exercício da liberdade de expressão é normalmente visto como antagônico ao exercício do direito à intimidade37. Essa é uma visão simplista: o conceito daprivacy precisa evoluir para adaptar-se ao mundo informatizado. Uma questão nova surge a partir do desenvolvimento da Internet e da computação, que permitiu a criação e manutenção de bancos de dados com capacidades de armazenamento infinitas, associadas à possibilidade de captação da mais variada gama de dados acerca do indivíduo: o que compra no supermercado, o que lê na biblioteca, que páginas visita na Rede, que medicamentos toma, quando sofreu uma multa de trânsito pela última vez, etc. A doutrina aponta a necessidade de reestruturação do conceito de direito à intimidade para abranger novíssimas situações38.

                O poder de polícia do Estado que ameaça a liberdade de expressão é o mesmo que quebra constantemente a barreira da vida privada dos cidadãos. O espectro espacial da monitoração de dados dos indivíduos passa a ser significativamente estendido pelas possibilidades da computação ubíqua, ao passo que a cobertura temporal dessa monitoração cresce juntamente com a capacidade de armazenamento: uma autoridade governamental poderá, mediante simples acesso ao banco de dados referente a um determinado indivíduo, ser informada de diagnósticos pré-natais deste último39. Uma das razões de existência da intimidade privada é a impossibilidade material de uma monitoração e investigação individual e minuciosa de cada cidadão. Mas o aparato policial dos Estados começa lentamente a superar essa barreira com o uso da tecnologia. Para alguns, a mesma tecnologia que permite uma monitoração constante e intrusiva pode trazer a solução de violações dos Direitos Humanos em ações estatais como aquela empreendida pelo governo americano após os atentados do "11 de setembro". Um sistema avançado permitiria o rastreamento de suspeitos ou infratores mediante o uso de dados não discriminatórios40. Ocorre que a busca por suspeitos atualmente é orientada por critérios étnicos ou sociais, claramente realizando discriminação. Ora, o uso de dados pessoais deve respeitar também o princípio da igualdade41, que é violado constantemente através da criação de perfis em bancos de dados de empresas42. Por outro lado, Perez Luño faz a pertinente observação de que o emprego massivo da informática pelo Estado não é essencial a, e tampouco implica necessariamente em, a ameaça à liberdade dos indivíduos43.

                A coleta de informações deve seguir o princípio norteador segundo o qual são coletados e mantidos apenas os dados relevantes para a finalidade para a qual foi criado o banco de dados, ao mesmo tempo em que o acesso a estes dados deve ser permitido apenas em razão desta finalidade44. A evolução do direito à intimidade levou a composição de um novo direito, mais amplo, baseado nos direitos à personalidade, à liberdade, à identidade45, à igualdade, ao acesso e à imagem46. Todos esses são sopesados e avaliados sob o prisma da dignidade humana47, criando então a noção de liberdade informática ou direito à autodeterminação48. Em sua dimensão negativa, implica em uma abstenção de particulares e Estados de tornarem públicos determinados dados pessoais, relativos à identidade ou formadores da imagem do indivíduo. Na dimensão positiva, implica em que o indivíduo exerça controle sobre os dados acerca de sua pessoa que são publicizados, mediante a possibilidade de acesso, retificação e supressão destes dados49.

                A última significativa evolução desse direito à liberdade informática, segundo Piñar Mañas, se deu com seu desprendimento da idéia de intimidade e privacy50, passando a ser, conforme a interpretação do Tribunal Constitucional espanhol51, um “direito fundamental à proteção de dados de cunho pessoal”. Esse direito é, agora, independente e autônomo52. Confirmando esse desligamento da idéia de privacidade, já se reconhece inclusive a proteção mesmo dos dados pessoais que sejam públicos e notórios53.

                Entendemos que o direito a liberdade informática pressupõe uma ampla categoria de Direitos Fundamentais relacionados à informação: sua emissão, transmissão, veiculação, seu armazenamento e sua publicidade. É a construção que julgamos mais apropriada para a Era da Informática, da Informação. Além disso, o termo indica já a intrínseca ligação existente entre essa categoria de direitos e a Rede. Aí incluímos todos os direitos há pouco analisados: direito a informação em um sentido estrito, direito a liberdade de expressão, direito a intimidade e direito a proteção de dados pessoais. A maneira como é utilizada a Internet definirá a amplitude da efetivação destes direitos bem como a gravidade das suas violações.

                Quanto à efetivação da liberdade informática, necessário abordar a questão dos mecanismos de contenção dos riscos de violação, bem como os instrumentos processuais adequados para combater violações de fato. No primeiro quesito, a Internet e a tecnologia aparecem como solução para o problema que elas mesmas ajudaram a criar. A opinião pública internacional pressiona, através da Internet, países e grandes empresas violadoras da liberdade de expressão e do direito a proteção dos dados pessoais. A título de exemplo, pode ser mencionada a divulgação internacional das severas restrições de tais direitos imposta na China, principalmente quando são aplicadas duras penas como sanção pela propagação de idéias “anarquistas e subversivas”. A Internet funciona como mecanismo de contenção, neste sentido. Por outro lado, conforme já havia sido sustentado, a tecnologia pode ser utilizada para melhorar os sistemas investigatórios dos órgãos estatais, atenuando ou evitando violações à intimidade ou aos dados pessoais.

Quanto a remédios processuais para sanar violações de Direitos Fundamentais, há que se reconhecer como propício, nesta seara, o habeas data. Este se conforma muito bem com a salvaguarda do direito de proteção de dados de cunho pessoal, já que consiste em ação que visa garantir o direito de acesso a registros e direitos de retificação e complementação dos mesmos54. Todavia, importante ressaltar que a previsão é de cabimento da ação apenas em razão de dados armazenados em registros públicos ou a estes equiparados. Esta delimitação não respeita a eficácia horizontal do direito de proteção de dados pessoais, que permite ao indivíduo requerer os mesmos direitos de acesso e retificação, porém contra bancos de dados particulares. Da mesma maneira, o entendimento reinante é o de que o instrumento serve apenas para retificar dados considerados inverídicos55, delimitação esta que é incompatível com o referido Direito Fundamental: a escolha sobre a constância de um dado pessoal, mesmo que verdadeiro, em um banco de dados, é exclusivamente do titular destes dados. Assim, entendemos que a ação de habeas data necessita ampliação para permitir a adequada tutela do direito fundamental à proteção de dados pessoais.      

               

Direito Administrativo e Teleadministração

 

                A doutrina do direito administrativo de há muito identificou o novo rumo que tomaram as atividades do Poder Executivo quando este incorporou o uso da Internet em suas funções. Essa incorporação é estudada como o uso da informática, o tratamento lógico e automático da informação, e da telemática, o tratamento da informação e distância e sua respectiva integração, na execução das competências da administração direta e indireta. Desenvolve-se então um novo tipo de administração: a teleadministração56. Esse conceito, surgido na década de oitenta na Itália, é diferente do governo eletrônico, pois pressupõe a existência e validade de atos administrativos realizados no mundo virtual57. Por força do princípio constitucional da eficiência dos atos administrativos, Filgueiras Júnior entende que essa prática é obrigatória58. Da mesma forma, a teleadministração deve, assim como a administração, seguir os princípios do artigo 37 da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, além da eficiência59. Na doutrina espanhola, a interpretação do artigo respectivo na Constituição da Espanha, permitiu inferir que há uma ordem constitucional que obriga a Administração a empregar as novas tecnologias de informação60.

                Filgueiras Júnior apresenta uma classificação, que atribui à jurista italiana Daniele Marongiu, dos atos administrativos praticados no âmbito da teleadministração: os atos administrativos eletrônicos são aqueles praticados por um servidor, à distância ou não, através de um sistema computadorizado; os atos administrativos automáticos são aqueles meramente burocráticos, executados pelo próprio computador61. No último caso, o agir humano está embutido na programação da máquina, sendo desnecessária sua incessante repetição em milhares de situações iguais. A prática de tais atos sob a perspectiva da teleadministração traz diversos benefícios para a atuação do Poder Executivo. Em primeiro lugar, como já referido anteriormente, a publicidade da atuação do Estado é fundamental para o verdadeiro exercício da democracia. Essa publicidade, no âmbito aqui discutido, será viabilizada em razão da informatização dos atos administrativos, seu acesso e divulgação, realizados estes últimos através da Internet62.

                Filgueiras Júnior lista, de maneira sucinta, ainda outros substanciais benefícios da teleadministração63. Sem atendimentos face a face entre servidor e cidadão, haverá uma drástica redução das diferenças de tratamento, atingindo máxima incidência do princípio da impessoalidade. A administração será mais ágil e eficiente com a fácil pesquisa de documentos a partir de um terminal que vasculha bancos de dados em todo o território nacional. Uma melhor organização do trabalho permitirá evitar o uso do sistema postal, abolir longas filas para atendimento em órgãos previdenciários, impossibilitar a perda de documentos e registros, e talvez introduzir até o trabalho domiciliar dos servidores públicos, motivando-os à ação em razão de estarem participando de uma Administração ágil e efetiva. Todos esses fatores contribuem para diminuir o impacto negativo da má Administração na economia do país. Em termos de eficiência e economia, conveniente lembrar a transição que diversos entes da União, inclusive o governo federal, estão empreendendo para utilizar o método do pregão eletrônico no maior número possível de licitações. Por fim, nada disso seria possível sem a devida previsão legal da aplicação de princípios da teleadministração, visto que o Poder Executivo atua mediante estrita vinculação à lei, conforme o princípio da legalidade. Ocorre que a Medida Provisória 2.200 de 2001 dispôs sobre a validade dos documentos eletrônicos, permitindo a existência e uso dos atos administrativos eletrônicos e automáticos64. Além disso, a lei 9.755 de 1998 instituiu e regulou a criação de páginas virtuais para a divulgação de dados da administração, através do Tribunal de Contas da União, tornando-se a lei que propicia o cumprimento das exigências do artigo 37 da Constituição Federal de publicidade e transparência65. 

 

Direito de acesso à Justiça e Processo Eletrônico

 

                No âmbito do exercício da atividade jurisdicional do Estado, da mesma forma que nos demais apontados, surgem mudanças significativas decorrentes do uso da Internet. O judiciário, que sempre foi condenado por sua morosidade, já havia sido instigado pela recente emenda constitucional que instituiu o direito ao prazo razoável. De fato, apesar de possíveis longas divagações acerca da eficácia deste direito, não é muito arriscado afirmar que esta consiste na elaboração e aplicação de regras e métodos que aperfeiçoem a prestação jurisdicional, acelerando, de maneira proporcional, a tarefa de dizer o direito.

                Em conclusão que a esta altura parecerá óbvia, cabe dizer que este aperfeiçoamento passa, inevitavelmente, pela implementação de um sistema processual parcialmente ou completamente virtual. De certo que alguns princípios caros ao direito processual necessitariam adequada adaptação: o princípio da oralidade e o princípio da identificação física do juiz com a lide, entre outros. Mas essa adaptação não significa, ao contrário do que céticos possam afirmar, supressão.

 

 

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