Notas históricas do direito e proteção da propriedade imóvel no Brasil: Breves considerações sobre a evolução da legislação fundiária do período colonial ao período republicano


Portiagomodena- Postado em 06 maio 2019

Autores: 
Rubem Ribeiro de Carvalho

Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO E PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL NO BRASIL. 2.1 PERÍODO COLONIAL. 2.2 PERÍODO IMPERIAL. 2.3 PERÍODO REPUBLICANO. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.

 

Rubem Ribeiro de Carvalho¹

 

Resumo

Diante das diversas alterações legais do sistema de registro de imóveis e do seu papel com instrumento de garantida da propriedade privada, o presente artigo traça, por meio de notas sobre a história do direito e proteção da propriedade imóvel no Brasil, como se deu a construção histórica do atual sistema de registros de imóveis, a fim de subsidiar novas reflexões sobre a necessidade de alterações do atual sistema e a construção de uma nova ordem legal e procedimental sobre o tema.

Palavras-chave: Propriedade Privada. Propriedade Imóvel. História do Direito da Propriedade Privada. Registro de Imóveis. Legislação Fundiária.

 

1 INTRODUÇÃO

 

            A compreensão do atual estado do direito à propriedade imóvel no Brasil deve partir do conhecimento histórico sobre como se deu a sua constituição no plano legal desde o período colonial até o atual período republicano, pois, como se sabe, a legislação regente sobre a matéria resulta de contextos que ligam no tempo modelos econômicos, políticas públicas e práticas culturais, entre outras singularidades próprias das relações sociais.

Certamente um dos maiores expoentes do Direito Brasileiro e profundo conhecedor do regime normativo e histórico das terras no Brasil, o Professor Rui Cirne de Lima iniciou uma das principais obras acerca do tema revelando-nos que “a história territorial do Brasil começa em Portugal” (Lima, 2002, p. 13). Conforme Lima (2002, p. 13), naquele pequeno Reino são encontradas as origens remotas do regime de terras brasileiro, que regula este vasto e intricado território, cujo domínio outrora pertenceu inteiramente à Coroa Portuguesa, mas que gradualmente e ao longo dos séculos transferiu-se ao Império, à República e também ao domínio privado.

            Assim, o objetivo do presente artigo, baseando-se nos fatos históricos jurídicos tratados por Rui Cirne de Lima, é apresentar por meio de notas históricas sobre a evolução da legislação fundiária a partir da colonização até a República, alcançando-se, após, a legislação atual.

 

2 ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO E PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL NO BRASIL

 

2.1 PERÍODO COLONIAL

 

            Um sistema jurídico de transcrição do título da propriedade imóvel surgiu diante da necessidade de se prestar maior garantia ao comércio por meio da hipoteca e decorreu da Lei n.º 1.237 de 24 de setembro de 1864, conforme se verá adiante.

            Um longo período decorreu para se alcançar tal sistema, e no início, passado o período pré-colonial, a Coroa Portuguesa cedeu a posse de quinze capitanias hereditárias a nobres portugueses que se denominavam capitães donatários. Os instrumentos legais de transferência eram a carta de doação de terras e a carta foral.

A posse hereditária era atribuída ao nobre donatário, que não poderia vendê-la e cuja administração era repassada a seus descendentes após a sua morte. A carta foral estabelecia os direitos e deveres do capitão donatário, entre os quais criar vilarejos, doar terras, denominadas sesmarias, desempenhar o papel de autoridade judicial e administrativa, escravizar índios, receber a 20ª parte do lucro sobre o comércio do pau-brasil, repassar ao Rei de Portugal 10% da receita com o comércio dos produtos da terra e um quinto dos metais preciosos encontrados na capitania hereditária.

            Todavia a transferência não era definitiva e as terras não cultivadas retornavam ao domínio do Rei de Portugal, conforme o sistema legal estabelecido por Portugal através da Lei D. Fernando I do ano de 1375 (Lei das Sesmarias), que foi incorporada nas ordenações Afonsinas de 1446, Manoelinas de 1511-12 e Filipinas de 1603.

            Diversos fatores dificultaram a colonização do vasto território através do sistema de capitanias hereditárias e sesmarias o que contribuiu para a ocupação das terras por posseiros, os quais cumpriam o principal requisito para o recebimento da sesmaria, qual seja o cultivo, mas que não possuíam a transmissão legal da propriedade. Decorrente das dificuldades enfrentadas, efetivou-se a suspensão das sesmarias em 17 de julho de 1822, por ato do Imperador D. Pedro I:

Houve S.M.I. por bem resolver a consulta que subiu a sua augusta presença com data de 8 de julho do ano próximo passado,pela maneira seguinte: Fique o suplicante na posse das terras que tem cultivado, e suspendam-se todas as sesmarias até a convocação de assembleia geral constituinte. (SALOMÃO, 2009, p. 13).

 

2.2 PERÍODO IMPERIAL

 

            Proclamada a independência, a Constituição Política do Império do Brasil de 1824 nada tratou acerca do regime de sesmarias, regulamentando no tocante à propriedade, a previsão de indenização em hipótese de desapropriação, garantindo o direito à propriedade e abolindo o confisco[2].

            No período inicial do império permaneceu a ocupação da propriedade territorial sem regulamentação jurídica por três décadas, até que o Imperador D. Pedro II, buscando estabilizar as relações fundiárias no território brasileiro, promulgasse a Lei n.º 601 de 1850, conhecida como Lei de Terras, cujo ordenamento somente foi regulamentado pelo Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854.

            Hely Lopes Meirelles (2014) traçando uma retrospectiva sobre a falta de sistematização da legislação e de atos sobre as terras, apresenta a seguinte digressão:

A legislação pertinente até a Lei das Terras – Lei 601, de 18.9.1850 – era a seguinte: Ordem de 27.12.1665, estabeleceu um foro para o concessionário, além do dízimo; Carta Régia de 7.12.1667, limitou a extensão das sesmarias; Carta Régia de 23.11.1698, declarou imprescindível a confirmação das concessões de sesmarias; Carta Régia de 3.3.1704, exigiu a demarcação judicial das terras concedidas; Decreto de 20.10.1753, proibiu a confirmação das concessões de sesmarias sem prévia medição e demarcação; Provisão de 11.3.1754, regulou a concessão de terras cortadas por rios caudalosos, reservando uma faixa para fins de utilidade pública; Carta Régia de 13.3.1797, proibiu a concessão de terras junto às costas marítimas e às margens dos rios que as banham; Alvará de 5.10.1797, consolidou as disposições  até então vigentes; Alvará de 25.1.1807, proibiu se passasse carta de concessão de sesmaria sem prévia medição judicial julgada por sentença; Decreto de 2.7.1808, estabeleceu a obrigatoriedade da confirmação das concessões de sesmarias pela Mesa de Desembargo do Paço e assinatura real; Resolução de 17.7.1822, suspendeu as concessões; Provisão de 22.10.1822, manteve a suspensão anterior até que sobre o assunto se manifestasse a Constituinte.

 

 

            Este novo ordenamento jurídico estabelecido então em meados do Império e impulsionado pela necessidade de minimizar as perdas que se vislumbrava com o fim do tráfico de escravos, através da expansão territorial rural por aqueles que possuíam condição financeira para adquirir a propriedade[3] (CALDEIRA, 1995, p. 92), criou o registro paroquial[4]. Porém, referido registro, distante da criação jurídica do registro imobiliário da transmissão de propriedade, não estabelecia direito de propriedade algum ao possuidor, se a posse decorrente da concessão de sesmaria ou de ocupação primária não fosse submetida ao crivo administrativo das Repartições Provinciais para revalidação, ou para legitimação na hipótese de posse de fato, na forma dos artigos 4º, 5º e 11, da Lei n.º 601-1850[5].

            O registro paroquial resumiu-se, portanto, a um registro estatístico, não decorrendo deste o direito de propriedade. Todavia, o objetivo econômico era estabelecer a aquisição da propriedade pela compra e venda. Teixeira de Freitas assim escreveu sobre o registro paroquial:

A revalidação e legitimação, das posses de terras, nos termos da legislação das terras devolutas e públicas, não é uma obrigação dos possuidores, a cujo cumprimento possam ser compelidos judicialmente ou administrativamente. É um direito, que lhe foi facultado, e de que podem usar, se quizerem. Não usando, deixando de proceder à respectiva medição nos prazo marcados, incorrem no comisso do Art. 8º da Lei de 18 de setembro de 1850.

[...]

Com esse registro (o Paroquial) nada se predispõe, como pensão alguns, para o cadastro da propriedade de immovel, base do regime hypotecario germânico. Teremos uma simples descripção estatística, mas não uma exacta conta corrente de toda a propriedade immovel do paiz, demonstrando sua legitimidade, e todos os seus encargos. O systema cadastral é impossível entre nós. (FREITAS, 2003, p. 533-534).

 

            Ainda acerca do registro levado a efeito pelo vigário da respectiva freguesia, por meio do qual o pároco não possuía atribuição, nem mesmo autorização legal para avaliar a legitimidade da posse, Francisco Morato discorreu:

É crença mui vulgarizada entre os que exercitam em divisões e demarcações de terras, que constituem títulos de jus in re os denominados registros dos vigários; pelo que, frenquentemente se depara em autos papeis dessa natureza, em original ou certidões extrrahidas dos livros recolhidos ao archivo do Estado, opostos e prevalecendo contra documentos de valor indiscutível. Erro manifesto; o registro do vigário não confere jus in re nem direito nenhum.

[...]

Fazia-se o registro perante os vigários das freguezias dos immoveis, mediante simples declaração dos possuidores, escriptas em dous exemplares eguaes, datados e assinados por elles ou por aquelle que lavrasse os escriptos, caso soubessem escrever. (...) Não era licito aos vigários conhecer da procedência ou falsidade das declarações, e menos ainda impor multas. Si as declarações fossem deficientes ou pejadas se achassem de erros grosseiros, nem assim podiam recusa-las, cumpria-lhes advertir e instruir as partes e, si estas insistissem no registro, proceder a elle, a despeito de tudo. Contra o registro nenhuma reclamação se permittia, pelo motivo que a ninguém podia prejudicar senão à Nação e a Nação previamente se declarava contente com as terras que não tinham pretendentes. Compreende-se que registro assim feito, calcado em taes moldes, não podia conferir direito algum aos possuidores; e nenhum conferia, nos termos expressos do art. 94 do decreto n.º 1.318 de 1854. (MORATO, 1944, p. 145-147).

 

            Percebe-se que a Lei de Terras buscando a regulação da situação fundiária do Império, trouxe importantes regramentos para consolidação da propriedade por quem detinha a posse e cultivava a terra.

No entanto, não garantiu uma forma segura de se externar o domínio, deixando de regular a publicidade da propriedade, o que gerava insegurança acerca da garantia da propriedade e ainda nas relações comerciais, na medida em que estabelecia regras para a alienação e para a hipoteca do bem, conforme artigo 11 daquela lei, tratando que para tanto deveria o possuidor buscar o procedimento regido pelos artigos 4º e 5º da respectiva legislação, mas por outro lado não estabeleceu uma forma de se dar publicidade à transcrição do domínio em cadeia única de forma a impedir a negociação do mesmo imóvel rural com pessoas distintas, ocupantes das condições de comprador e vendedor.

            Tudo isto gerava insegurança no comércio, notadamente para a garantia real dos pagamentos de créditos concedidos, garantia que se dava através da hipoteca.

            Para resguardar a segurança comercial nas transações de crédito, retornando ao tema tratado no primeiro parágrafo, surgiu a lei n.º 1.237/1864, segurança que não foi alcançada também pela lei orçamentária n.º 317 de 21 de outubro de 1843 que instituiu o registro geral de hipotecas.[6]

            A Lei n.º 1237 de 1867, antes de garantir a segurança da propriedade, buscou a segurança comercial, criando, porém o primeiro sistema de registro da transmissão da propriedade imóvel no território brasileiro, regulamentado pelo Decreto 3453 de 1865.

            A necessidade de garantia real para impulsionar o sistema financeiro de crédito no Império, fez com que o sistema financeiro pressionasse o governo para adoção da garantia do crédito imobiliário, permitindo aos credores tomarem conhecimento acerca de hipotecas já preexistentes sobre o bem dado em garantia pelo tomador do empréstimo, circunstância que o registro geral do art. 35 da Lei Orçamentária n.º 317 de 1843 não garantiu. A iniciativa permitiria empréstimos com juros inferiores aos praticados à época e prazos mais longos, fator importante para o desenvolvimento da economia agrícola do Brasil Império, cujo crédito ainda baseava-se na confiança pessoal sendo necessário aprofundar o uso do sistema da garantia real, aumentando assim a confiança dos credores, principalmente do sistema bancário de crédito.

            Neste novo sistema jurídico foi criada a transcrição, ato necessário que se tornou obrigatório para que se operassem os efeitos da transmissão entre vivos por ato oneroso[7].

 

            Todavia a transcrição ainda não operava a garantia do domínio[8], pois como dito anteriormente o objetivo deste sistema legal era a segurança comercial e não tinha como foco principal a segurança do direito da propriedade, apesar de uma complementar a outra necessariamente.

            Estabeleceu-se uma segurança para o registro da transcrição, mas como forma de se firmar a certeza da relação comercial, qual seja o empréstimo, cuja hipoteca era a garantia real inscrita no documento de transcrição da transmissão por ato entre vivos, apesar do ato da transcrição em si não se firmar como momento de transmissão da propriedade privada, diversamente no que viria a ocorrer em 1917, com a vigência do Código Civil Brasileiro, mas servindo apenas, e tão somente, a dar publicidade à transmissão. Outro aspecto referia-se à individualização do imóvel que garantia a dívida, criando-se a certeza de que não havia outra hipoteca sobre aquele bem, ou acaso existisse, estabelecendo-se a ordem legal de garantia.

            Dava-se neste aspecto a especialidade, um dos princípios norteadores do registro público de imóveis. Outro princípio observado pelo referido sistema legal implantado em 1864, foi da publicidade[9], obrigando-se ao oficial a fornecer as certidões e informações necessárias acerca do registro da propriedade. Outro princípio atual, já elencado naquele sistema legal foi o da prioridade[10], quando se estabeleceu a ordem da prenotação para os títulos levados a registro, através da anotação no livro de protocolo. Surgia assim o sistema de prenotação ainda utilizado no sistema atual. 

            A Lei das hipotecas, precursora do registro de imóveis, constituiu a propriedade imóvel, garantia real de crédito nas transações comerciais. A vedação da condição de prova do domínio à transcrição[11], certamente ocorreu devido às incertezas quanto à propriedade rural e aos conflitos existentes sobre a relação fundiária na época. Como era incerto o domínio e as dimensões das propriedades, o parlamento, naquele momento histórico, decidiu não reconhecer que o registro da transcrição da escritura de compra e venda, por certo lavrada sem o conhecimento da cadeia dominial, constituir-se-ia prova cabal do domínio da terra. Isto é percebido pela conjuntura fundiária da época, assim como pelas declarações do então Ministro da Justiça, José Thomaz Nabuco de Araújo, autor do projeto da Lei n.º 1.237/1864, para quem a prova do domínio pela transcrição somente poderia ser infirmada após uma completa regularização fundiária que individualizasse as propriedades imóveis rurais, estabelecendo-se os limites das respectivas áreas (FREITAS, 2003. 1867 p. CCIII).

            Augusto Teixeira de Freitas ao elaborar a Consolidação das Leis Civis, em 1876, por autorização do Governo Imperial se contrapôs aos opositores do projeto e se manifestou em consonância com o mesmo, mas em relação ao discurso de Nabuco de Araújo, acrescenta que a comissão especial da câmara sugeriu que a transcrição deveria ter sido mais valorada:

Coube ao laborioso ministro da justiça o Sr. Nabuco de Araújo a glória de propagar no país as novas ideias que dominam a matéria das hipotecas em harmonia com os progressos da ciência. Seu relatório de 1854 lançou as primeiras sementes, fez compreender a urgência da reforma hipotecária, a necessidade de fundar o crédito territorial sobre a base da hipoteca. O pensamento cardeal do seu Projeto apresentado ao corpo legislativo na sessão de 25 de julho do mesmo ano foi a publicidade das hipotecas e com ela a de todas as transmissões de imóveis por título entre vivos, e constituições de direitos reais. Uma comissão especial da câmara dos deputados examinou esse projeto e seu parecer abundou nas mesmas ideias e até excedeu-as, opinando que a transcrição no registro público dos títulos de transmissão dos imóveis devia ter um valor ainda maior do que se lhe dera no projeto. (FREITAS, 2003. p. CXCIX.)

                Para Lysippo Garcia, tratou-se de uma negativa de prova de direito, conforme leciona ao tratar do registro de imóveis:

como guzano, que coroe o tronco em que consegue aninha-se, ficou, em nosso sistema imobiliário, a corroer a consolidação da propriedade, o princípio, que negava à transcrição a força de provar o domínio... a Lei de 1864, assim como a de 1890, esquecendo que o fim visado era a segurança da propriedade imóvel e da garantia hipotecária, negou em absoluto à transcrição poder para provar os direitos que publicava. (GARCIA, 1922. p. 97)

 

            Todavia o instituto, combatido por alguns à época, foi pouco utilizado, podendo extrair-se tal conjuntura do relato do Magistrado de Itajaí, Manuel Martins Torrres, em 1876:

Em princípios de 1873, quando na forma do decreto 3.572 de 30 de dezembro de 1865, tivemos que organizar a estatística judiciária do ano anterior desta Comarca de Itajaí, oito anos depois da publicação da lei, deixamos de remeter o mapa relativo às transcrições de imóveis por não constar uma só do livro respectivo, que se achava em branco, quando pelos livros de notas, verificamos que desde a época da promulgação da lei até aquela data, muitos contratos de transmissões de imóveis entre vivos (além dos particulares) tiveram lugar. Faltando, portanto, a todos esses contratos a solenidade importante e garantidora da transcrição, de cuja data tais contratos, perfeitos e acabados entre as partes contratantes ou seus herdeiros, principiam a operar seus efeitos a respeito dos terceiros.

Procurei por todos os meios ao meu alcance tornar bem conhecida essa disposição e os inconvenientes que poderiam resultar de sua não observância. E hoje, felizmente, já consta do livro respectivo mais de cinquenta transcrições.

Sou informado de que em muitos municípios o livro n. 4 para esse fim destinado, ainda se acha em branco! [...] A lei vigora há onze anos mais ou menos; tempo mais que suficiente para ser bem conhecida e executada! (TORRES, 1876, p. VIII-X.)

 

                Mesmo não conferindo valor de prova do domínio à transcrição, a referida lei estabeleceu que sem a observância do requisito da transcrição, o objeto da escritura, qual seja a transmissão da propriedade, não se operaria. Ou seja, não garantia o direito de propriedade, mas sem a observância do procedimento, então instituído, a transmissão também não se completava, pois deixou a tradição de ser o ato consumador da compra e venda. Garantia por sua vez a hipoteca, visto que o adquirente ao registrar a escritura, obrigatoriamente tomaria conhecimento da referida garantia real, que prevaleceria em relação à propriedade. Se não levasse a registro, não teria valor legal e também nesta hipótese, a hipoteca, mesmo não sendo de seu conhecimento, teria prevalência. Estava alcançado o objetivo da Lei n.º 1237 de 1864, qual seja a garantia da segurança comercial. Assim, a lei das hipotecas trouxe a certeza da garantia do crédito pela hipoteca, sem, contudo concorrer para a certeza do domínio, pois atestava tão somente a alienação.

 

 

2.3 PERÍODO REPUBLICANO

 

            Passado o Império e proclamada a República, a Constituição de 1891, manteve em vigor parte da legislação então existente, e manteve as regras legais existentes acerca da transmissão e do registro de imóveis.

            Nesta época já não mais se encontrava em vigor a Lei n.º 1.237/1864, revogada pelo Decreto 169-A de 19 de janeiro de 1890, aprovado, pois já no novo regime republicando, mas que não trouxe alteração substancial no sistema instituído pela lei das hipotecas, mantendo a exigência da transcrição da transmissão do domínio e a inscrição da hipoteca, excluindo o dispositivo que tratava da hipoteca do escravo, pois já se encontrava abolida a escravatura.

            Naquele mesmo ano, não tendo sido alcançada a regularização da situação fundiária no país e reinando a incerteza acerca da propriedade territorial rural, foi instituído, pelos Decretos 451-B de 31 de maio e 955-A de 05 de novembro, o Registro Torrens.

            Este sistema registral, implatado no governo provisório do Presidente Marechal Teodoro da Fonseca por ação de Rui Barbosa, Ministro da Fazenda, Campos Salles, Ministro da Justiça e Francisco Glycerio, Ministro da Agricultura e dos Transportes, é reproduzido a partir do sistema instituído na Austrália, em 1858 por Robert Richard Torrens, patronímico que dá origem ao título do sistema, cuja implantação teve por objetivo, segundo Lopes (1925, p. 15), “estabelecer um systema efficaz de publicidade imobiliária, e commercialisar a circulação dos títulos relativos ao domínio sobre a terra[12].” Tratava-se de um sistema facultativo para a propriedade particular. Para a alienação de terras públicas o registro tornou-se obrigatório a partir de 31 de maio de 1890[13].

            Barbosa, Salles e Glicerio (1890, p. 12), expõem as vantagens do referido sistema apresentadas ao parlamento da época:

Reduzindo-o aos seus traços capitaes, o regimen proposto assignala-se caracteristicamente por estes predicados:

1º Faculdade aos proprietarios de acceitarem-no, ou permanecerem no direito commum;

2º Registro de todos os direitos, que gravarem o immovel, para a constituição delles entre as partes e a sua acção contra terceiros;

3º Garantia do Estado aos proprietarios inscriptos e, em consequencia, responsabilidade pecuniaria do Thesouro para com os prejudicados por erros na matricula, ou na entrega dos titulos;

4º Publicidade real, e não pessoal, isto é, instituição de um grande livro das terras, onde cada propriedade, em vez de cada proprietario, tenha aberta a sua conta;

5º Entrega a cada proprietario de um certificado com o valor do titulo, renovavel em cada transferencia da propriedade;

6º Facilidade aos proprietarios de constituirem emprestimos, mediante penhor do titulo, consignado em garantia ao mutuante;

7º Substituição da incerteza pela segurança, da obscuridade e do palavreado pela brevidade e pela clareza;

8º Reducção de avultados gastos a um desembolso minimo, e abreviação de mezes a dias no tempo despendido;

9º Protecção ás transacções sobre a propriedade territorial contra a generalidade das fraudes;

10º Restituição do seu valor natural aos titulos de propriedade, depreciados pela interdependencia das escripturas successivas de acquisição e transmissão.

O decreto, que ora vos apresentamos, delineia essa instituição, que o regulamento desenvolverá. (Barbosa, Salles e Glicerio, 1890, p. 12),

 

            Neste sistema se estabeleceu a transcrição como prova do domínio e seu deferimento torna o registro livre de qualquer vício capaz de macular a propriedade.

            Se ocorresse erro no processo de constituição do registro e no reconhecimento do domínio para este não haveria retrocesso, sendo na hipótese, paga indenização ao real proprietário, e para tanto se constituiu pelo referido decreto um fundo de garantia, que serviria também para indenizar o credor que se visse privado de uma garantia hipotecária. [14]

            O decreto 451-B de 1890 foi revogado em 1991, pelo Decreto 11 de 18 de janeiro. Todavia, referido sistema de registro permanece existente em nosso ordenamento jurídico, tendo convivido com o sistema de registro de imóveis comum instituído pelo Código Civil de 1916, estando atualmente regulamentado pela Lei n.º 6.015 de 31 de dezembro de 1973[15], a mesma legislação que estabelece as regras atuais do sistema de registro de imóveis comum.

            O sistema de registro de imóveis, amplamente difundido e utilizado nos tempos atuais, teve seu início com a vigência do Código Civil Brasileiro em 1º de janeiro de 1917[16].

            O Código Civil de então estabeleceu que a propriedade passava a ser adquiria pela transcrição do título de transferência no registro de imóveis[17]. A presunção de propriedade é estabelecida de forma “juris tantum”, na medida em que o título carregado de vício permite que o terceiro prejudicado busque a anulação do registro[18], observado nesta circunstância o princípio da legitimidade. Uma vez contestado o domínio caberia ao prejudicado provar a existência de vício que maculasse o registro pela falha do título de transmissão, estando o ato do registrador revestido de fé pública.

             Outro aspecto importante tratado pelo legislador foi a previsão da inscrição de outros atos no registro do imóvel, permitindo um maior conhecimento da situação jurídica do imóvel, entre os quais os julgado das ações divisórias, as sentenças proferidas em inventários e partilhas que promovessem a adjudicação do imóvel para pagamento de dívidas do espólio e as arrematações e adjudicações em hastas públicas[19].

            Para execução dos novos comandos legais instituídos no Código Civil de 1916, foi editado em 24 de dezembro de 1928, o Decreto n.º 18.542[20], o qual trouxe novos requisitos para a escrituração pública e para os registros[21], o que segundo pensamentos de jurista da época (LINS, 1930, p. 166), o tornaria inconstitucional por se tratar de um regulamento editado pelo Presidente da República. Por outro lado o Decreto n.º 4.827 de 1924 já obrigava a inscrição das penhoras e citações nas ações reais e reipersecutórias relativas a imóveis[22].

 

            Após a década de 1930, o Brasil passou por grande transformação política, econômica e social. Principalmente nos último 70 anos do século XX. Todavia, até a promulgação da Lei dos Registros Públicos de n.º 6.015 de 31 de dezembro de 1973, neste período houve pouca transformação da legislação regradora do registro de imóveis. Dois Decretos foram promulgados em 1939 e 1969: Decreto n.º 4.857 e Decreto Lei n.º 1000. Este último, buscando atualizar o anterior e unificar alterações outras ocorridas nas três décadas que os separam, objetivava a modernização do registro público e aprimorou, nas regras que jamais chegaram a viger, a aplicação do princípio da especialidade, constituindo como requisito para a transcrição a menção ao estado civil e nacionalidade do comprador e do vendedor.

            No transcorrer destas décadas, em que o país viveu intercaladamente períodos democráticos e de supressão de direitos com forte atuação do poder central na ordem econômica, a elite agrário-exportadora perdeu influência e a legislação regente da propriedade não sucumbia mais exclusivamente a seus interesses, apesar do Brasil continuar predominantemente rural nas décadas que se seguiram[23].

Skidmore retrata bem a situação em que a dependência do café persiste após a primeira grande guerra, mas que esta vai cedendo espaço à industrialização e as mudanças decorrentes desta transformação econômica:

 

Embora a economia brasileira saísse dos anos de guerra com inflação alta, ela demonstrou ser notavelmente elástica na década de 1920. O país dependia pesadamente das exportações de café, como antes da Primeira Guerra Mundial, mas felizmente os preços mundiais para as exportações brasileiras começaram a subir em 1923 e haviam mais do que dobrado em torno de 1925, nível esse que se manteve apenas com um ligeiro declínio até a crise de 1929. Esses preços elevados possibilitaram ao Brasil aumentar suas exportações em 150% entre 1922 e 1929, período no qual a indústria brasileira foi capaz de duplicar as importações de bens de capital (o elemento essencial para a industrialização subsequente). O que esses dados nos dizem é que o Brasil estava usando boa parte de seus ganhos com a exportação para financiar às importações necessárias à industrialização. Em outras palavras o Brasil estava diversificando sua economia afastando-se da dependência da agricultura. O rápido crescimento da indústria na década de 1920 criou a oportunidade para a organização mais efetiva dos sindicatos de trabalhadores urbanos. Na verdade, contudo, os sindicatos continuavam a ser fracos pelas razões já expostas – a pequena escala da maioria dos locais de trabalho, o suprimento excedente de trabalhadores e, mais notavelmente a interminável repressão da atividade pelos empregadores, polícia e governo. (SKIDMORE, 2003, p. 14-142)

 

            Após sucessivos adiamentos da vigência do Decreto n.º 1000/1969, adveio a Lei n.º 6.015/1973, ordenamento jurídico que institui o sistema de registro de imóveis, que atualmente rege a relações da propriedade imóvel.

            Naquele momento histórico era crescente o movimento pela revisão do tratamento da propriedade. Para tanto se buscava a reforma da legislação civil, estando em andamento estudos para um novo Código Civil, que diversamente do Código Civil de 1916, assentado em um pensamento dominado pelas oligarquias rurais, deveria enxergar na propriedade privada sua função social, cujo regramento tornaria a propriedade passível de limitações pelo Direito Público e pelo Direito Privado de maneira a atender também ao interesse coletivo.

            A Lei de Registro de Público que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1976, após reforma no período da “vacatio legis”, concentrou a normatização sobre registro, inclusive o sistema de Registro Torrens, mantido apenas para o imóvel rural[24].

            Referida legislação revogou expressamente a Lei n.º 4.287 de 7 de março de 1924, os Decretos n.º 4.857 de 09 de novembro de 1939, 5.318 de 29 de fevereiro de 1940 e 5.553 de 06 de maio de 1940 e o Decreto-Lei n.º1000 de 21 de outubro de 1969, não tendo este último entrado em vigor[25].  Não houve revogação expressa do Decreto 451-B/1890 que instituiu o Registro Torrens. O artigo 310 que tratou expressamente das referidas revogações, foi alterado antes de sua vigência pela Lei n.º 6.064/1974, e em sua nova redação faz menção apenas a revogação das disposições contrárias[26]. No entanto o referido Decreto 451-B/1890 somente foi revogado em 18 de janeiro de 1991 pelo Decreto n.º 11[27].

            A Lei n.º 6.015/1973 sofreu diversas alterações ao longo destas três décadas, e dentre as mais recentes está a modificação promovida pela Lei n.º

  11.952 de 25 de junho de 2009[28], cujo artigo 40, inseriu um quarto inciso no art. 250, da lei alterada, trazendo ao ordenamento jurídico a previsão de cancelamento do registro de título expedido para fins de regularização fundiária após a declaração da rescisão do título em procedimento administrativo próprio.

            Este sistema conviveu com as regras do Código Civil de 1916 e após o ano de  2002 com as regras do vigente Código Civil.

            O Código Civil atual, Lei n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002, surgiu dos pensamentos advindos das décadas do século XX, que se seguiram à promulgação do Código Civil de 1916, que buscavam conciliar o interesse particular e o coletivo. Como já exposto acima o pensamento predominante no final do século XIX e início do século XX, sofreu grande transformação pelos eventos que marcaram fortemente o século passado, entre eles as duas grandes guerras mundiais que alteraram substancialmente a formação geopolítica e econômica e do mundo, influenciando diretamente o pensamento dos juristas brasileiros, assim como da sociedade e por consequência do governo e do parlamento.

            Dentre as mudanças buscadas pelas comissões de juristas da época, interessa observar a inclusão do artigo 429[29], no anteprojeto elaborado por Orlando Gomes que declarava nulo o registro se o título levado à transcrição fosse inválido, diferentemente da redação final constante no Código Civil aprovado, derivado de um novo anteprojeto, cujo artigo 1245, § 2º[30] normatiza que enquanto não houver a decretação de invalidade do registro e seu respectivo cancelamento, por meio de ação própria, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel. Já o anteprojeto elaborado por Orlando Gomes normatizava que não seria necessária ação direta para invalidação de registro nulo[31].

 

            O Código Civil vigente buscou corrigir as falhas na sistemática de tratamento do registro imobiliário tratando da transferência da propriedade e da aquisição do domínio pelo registro, deixando, porém, a matéria atinente aos procedimentos para a legislação própria, Lei de Registro de Públicos, apesar de ainda trazer algumas previsões que poderiam perfeitamente ficar adstritas à Lei n.º 6.015/1973, como exemplo a possibilidade de retificação[32].  O novo Código atualizou a terminologia do ato de transcrição definindo-o como registro de forma a manter coerência com a Lei de Registros Públicos que também utiliza tal terminologia[33].

            Alcançada razoalvemente a segurança do comércio e prestada maior garantia ao direito de propriedade, deve-se caminhar em direção à regularização da vasta área de terras ainda dependentes de regularização fundiária, dada a confusão entre terras devolutas e propriedades privadas na região da Amazônia legal, posses sem a existência de títulos que confiram legalmente à propriedade àqueles que de fato a possuem, usufruem e produzem.

            Novo instrumento ao alcance dos possuidores e do poder público para alcançar tamanho objetivo surge com a promulgação da Lei n.º 11.952 de 25 de junho de 2009[34], que permitirá se bem utilizada, grandes avanços no terreno da regularização fundiária. Mas é necessário controle e atenção pelos agentes envolvidos para que referido instrumento não sirva à especulação da terra, afastando seus verdadeiros objetivos.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Estas notas históricas sobre o direito privado da propriedade imóvel demonstra o quão importante é o conhecimento do desenvolvimento do direito pátrio sobre matérias específicas, no caso aqui sobre a garantia da propriedade imóvel e a necessidade e importância da regularização fundiária para o desenvolvimento econômico no âmbito regional, mas, também, nacional.

            Como se vê, muitas alterações, idas e vindas do sistema de registro de imóveis ocorreram no decorrer da história da propriedade privada de imóveis no Brasil. Esta, por sua vez, só demonstra que ainda há muito a se fazer no plano legal para que se consolide o sistema de registro e efetivamente se garanta o direito de propriedade. A mutação tecnológica e a necessidade de novos instrumentos de publicização dos títulos de propriedade se mostram urgentes.

            Mas, como já dito, tal desenvolvimento depende de profundas reflexões sobre a construção do atual sistema e a projeção, a partir do seu real conhecimento, de uma nova realidade que se impõe e nos leva a uma nova dimensão de garantias, instrumentos de desburocratização do atual sistema de registros e de um novo sistema de registros que, de fato, cumpra com a sua função social e econômica.

 

REFERÊNCIAS

 

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TORRES, Manuel Martins. Lei Hypothecaria: Lei n. 1.237de 24 de setembro de 1864 e Decreto 3453 de 26 de abril de 1865, completamente annotada. Rio de Janeiro: Editor A. A. da Cruz, 1876.