AS LUTAS SOCIAIS PELA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS EXPERIÊNCIAS DA ARGENTINA, CHILE E BRASIL


PorCaio Muniz- Postado em 01 abril 2019

Autores: 
Alex Daniel Barreto Ferreira
Gabriela Maia Rebouças

Resumo

O presente trabalho busca destacar as experiências e tentativas de afirmação do direito à verdade e à memória após a superação dos regimes ditatoriais no âmbito dos territórios da Argentina, Chile e Brasil, comparando as suas peculiaridades e destacando as suas práticas, erros e acertos. Para atender aos objetivos propostos, realizou-se uma análise circunstanciada dos processos de afirmação desencadeados em cada um daqueles Estados, pontuando-se por fim o significado das lutas sociais como força motriz da (re)construção da paz social e da consolidação democrática.
 
Palavras-Chave: justiça de transição, direitos humanos, direito à verdade e à memória, democracia, movimentos sociais.
 
Abstract

The present article aims to presents the experiences and attempts to affirm the right to memory and truth after overcoming dictatorial regimes within the territories of Argentina, Chile and Brazil, comparing their peculiarities and highlighting their practices, errors and correctness. To attend the proposed objectives, a detailed analysis was made of the affirmation processes in each of these States, and the meaning of social movements as agents capable for the (re) construction of social peace and democratic consolidation.
 
Keywords: transitional justice, human rights, the right to memory and truth, democracy, social movements.
 
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1. Introdução
 
O estarrecedor silêncio dos Estados, que não incomumente se calam quando provocam direta ou indiretamente episódios de violação de direitos humanos, é a força motriz para que vítimas, familiares e grupos sociais de um modo geral, pressionem os agentes estatais pelo seu direito de conhecer a verdade histórica. O desconhecimento acerca do que realmente ocorreu, assim como a imposição do esquecimento, faz com que as vítimas e a sociedade em si busquem respostas e exijam do Estado esclarecimentos sobre seu passado. O processo de lutas dos povos é fundamental para obtenção das respostas jurídicas, sociais ou políticas, e que exercem papel fundamental na condução da relação entre os grupos sociais e o passado. É, a propósito, a luta por tais respostas que dá esteio ao que se convencionou chamar, especialmente em sede de Direito Internacional Público, de “Direito à verdade e à memória”.  Desse modo, este artigo objetiva enfrentar questões que dialogam com o processo de empoderamento para plena democratização nos Estados da América Latina, pautando, por via transversa, o valor das lutas destes povos e a sua relevância para superação das perturbações sociais que ainda se apresentam no cone sul.  Para tanto, serão analisadas neste trabalho, por meio de uma pesquisa exploratória, descritiva e bibliográfica e com a adoção dos métodos dedutivo e histórico, as experiências do direito à memória e verdade a partir da inspiração de uma matriz engendrada nos limites do sul. Metodologicamente, pretende-se assim explorar a aptidão de Argentina, Chile e Brasil em relação à instituição das Comissões da Verdade e condução das suas formas de lidar com os traumas em matéria de Direitos Humanos havidos no curso das suas ditaduras civis-militares instaladas na segunda metade do século XX.  Ao aproximar os exemplos latino-americanos de transição no presente artigo, adota-se o entendimento de que pavimentar um caminho democrático e emancipador, pautado na experiência regional de consagração do direito à memória e à verdade, sob a égide dos seus próprios padrões culturais, sugere uma possibilidade de identificação e experimentação colaborativa.  Na esteira dos exemplos latino-americanos propostos pelo presente artigo, explora-se primordialmente a experiência dos Estados nas lutas pela garantia dos seus direitos à memória e verdade e seus avanços nas suas transições. Para tal, elegemos os casos paradigmáticos, tendo utilizado como parâmetro para escolha: i) a instituição das comissões da verdade nos territórios
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de tais Estados; ii) a precedência de lutas populares pela criação das comissões; iii) o reflexo perante os órgãos dos sistemas de justiça conhecidos e perante as estruturas do Estado.  É desta forma que se buscará evidenciar a amplitude destas experiências, apontando as eventuais possibilidades de aperfeiçoamento das democracias e dos caminhos de afirmação dos direitos humanos a partir da consolidação do direito à memória e à verdade.
 
2. O caso argentino: As lutas da Plaza de Mayo pela memória e pela verdade e a rápida instituição da Comissão Nacional de Investigação sobre o desaparecimento de pessoas
 
A Argentina, usualmente referida como pioneira na adoção de instrumentos transicionais, viu o seu governo ditatorial perder a legitimidade gradativamente. Malgrado não se possa falar em queda revolucionária da ditadura argentina, já que as eleições diretas foram convocadas pelo próprio governo militar que já admitia ser impossível continuar no poder, sobretudo em razão da crise econômica que assolava o país, não se nega que o fim do regime tenha sido precedido por uma grande insatisfação social, manifestada através de intensas lutas que congregavam a sociedade em seus mais diversos segmentos1 e que desaguavam na Plaza de Mayo (COGGIOLA, 2001, p.80).  O modelo argentino de transição é representado por um processo redemocratizante retratado por uma desvinculação moderada2 que permitiu ao governo eleito, já nos primeiros atos constitucionais, criar a Comissão Nacional de Investigação sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), encarregada de investigar as violações de direitos humanos ocorridas nos anos de chumbo3. Naquelas condições, a CONADEP passou a atuar com o objetivo de esclarecer as questões primordialmente relacionadas ao desaparecimento de pessoas no período da ditadura militar argentina4. Por determinação legal, o material adquirido pela Comissão em suas
                                                          
 1 Cabe destacar que a resistência operária marcou a experiência autoritária argentina. Coggiola (2001, p. 77) aponta inclusive que a crise econômica que culminou na deslegitimação do regime autoritário foi impulsionada, em parte, por greves longas e duras dos ferroviários e operários da carne, por exemplo.  2 Diz-se desvinculação moderada porque, o país, como aliás, sempre acontece em períodos de transição, vivia um clima de instabilidade e, o aparato estatal ainda era povoado por membros da repressão que, em alguma medida estavam envolvidos nas apurações e trabalhos da CONADEP. 3 Antes de deixar o poder, os militares argentinos promulgaram uma lei de autoanistia. Tamanha insatisfação popular permitiu que o congresso nacional anulasse a lei de anistia, anulação cuja validez constitucional a Suprema Corte Argentina mais tarde referendaria. 4 Do texto encontrado no Decreto Lei 187/1983, extraímos do Art. 1º que o estado argentino, com a promulgação do instrumento legislativo se propunha a: “Constituir una Comision Nacional que tendra por objeto esclarecer los hechos relacionados con la desaparicion de personas ocurridos en el pais”.
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investigações e procedimentos seria remetido aos órgãos do Poder Judiciário, esse encarregado de apontar eventuais responsabilidades. No esteio das razões que conduziram a escolha deste trabalho em falar do Estado argentino como exemplo de aproximação, é relevante que sejam ressaltadas as ações e movimentos que impuseram a criação da CONADEP.  Mariasch (2009) propôs a criação de uma cartografia dos movimentos de luta pela memória e verdade que se desencadearam na Argentina mesmo no curso do regime autoritário, e elencou a existência de pelo menos quatro movimentos sociais que lutavam diretamente pela causa: Madres e Abuelas de Plaza de Mayo e Familiares de Detenidos e Desaparecidos por Razones Políticas; Movimento Ecumênico por los Derechos Humanos (MEDH) e o Servicio Paz y Justicia (SERPAJ), este último, um organismo internacional, que tem ligação com aquilo que se convencionou chamar de “esquerda cristã” e que se enraizou por toda América Latina naquele contexto, pautando uma proposta de formação e educação em Direitos Humanos (FRUHLING, 1989, p. 366). Não obstante, a CONADEP, embora formalmente representasse uma conquista aos movimentos de luta pela memória e pela verdade, seguiu em parte, a dinâmica dos pactos democratizantes típicos dos processos de redemocratização na região. Assim narra Mariasch (2009): A composição burguesa dos notáveis da CONADEP e a preeminência de adeptos da teoria dos “dois demônios”5, dentre outros, a jornalista Magdalena Ruiz Guinazu, Graciela Fernandez Mejide militante dos direitos humanos e o escritor Ernesto Sábato, membros da APDH, foram fatores de fervorosas discussões, especialmente nos movimentos de afetados diretos. (...) Esses foram também os motivos da oposição das Madres aglutinadas em torno de Hebe Bonafini, que acusaram ainda a permanência em serviço de uns 400 juizes da ditadura e a Ley de Presunción de Fallecimiento, uma “solução final”, que segundo as Madres tinha sido preparada por Alfonsín para Videla em agosto de 1979. (MARIASCH, 2009, p.166).  
 Ao cabo de nove meses de trabalho, a CONADEP apresentou um levantamento das suas atividades, reunindo depoimentos e outros dados. Aquele relatório ganhou o nome de: "Nunca Más: Informe de la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas" e promoveu diversas recomendações para diferentes ramos do governo argentino com a finalidade de prevenir, reparar e evitar a repetição de violações de Direitos Humanos. Possivelmente, por razões que podem ser explicadas com base na visível ligação da CONADEP com figuras do prior regime, foram precipitadas pela aprovação das leis do “Ponto
                                                          
 5 Em linhas gerais, a argumentação que varia em torno da chamada “teoria dos dois demônios” pretende se justificar na medida em que a violência da parte dos opressores teria sido praticada apenas em razão da violência igualmente praticada pelos atores sociais que se opunham ao regime.
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Final” (Lei n. 23.492) e “Obediência Devida” (Lei n. 23.521), a primeira em dezembro de 1986 e a segunda em junho de 1987. As leis autoanistiantes foram aprovadas após o episódio que ficou conhecido como “Nuremberg Argentino”6, em 22 de abril de 1985. A Lei do Ponto Final estabelecia prazo para que novas ações penais fossem ajuizadas em desfavor dos perpetradores, no caso da Lei da Obediência Devida, passava-se a considerar isentos de responsabilização aqueles que alegavam ter cometido crimes por ordens superiores. Mais tarde, o sucessor de Alfonsin, o ex-presidente argentino Carlos Menem, ainda concederia o perdão presidencial7 a pelo menos quatro líderes das juntas que já haviam sido julgados e condenados. Todavia, graças a perene mobilização dos movimentos sociais argentinos que, segundo Médici (2007), passaram a adotar estratégias de escândalo, de escracho8, impondo que os poderes do Estado pudessem apresentar respostas às suas demandas, os perdões presidenciais acabaram sendo revogados perante os tribunais argentinos.  Diante desse cenário, o Estado passou ainda a adotar uma política de reparação econômica e de reconhecimento do direito à memória e à verdade que, entre outras conquistas, passou a identificar crianças sequestradas pelo regime ou nascidas em cativeiro. O Poder Judiciário, por sua vez, reconheceu a inconstitucionalidade das leis autoanistiantes, retomando a rotina de julgamentos em sede criminal9.  Segundo Pita (2004, p.435, 458), trata-se de um processo que, apesar de resultar de decisões governamentais (Estado liberal na sua acepção), vincula-se muito diretamente com as estratégias de intervenção dos atores sociais, que propuseram a construção de condições para que as suas demandas fossem reconhecidas como uma questão de relevância pública na construção de uma identidade coletiva.  
 
                                                          
 6 O episódio ficou conhecido como “Nuremberg Argentino” em alusão ao julgamento do Tribunal Militar que, no contexto do pós-Segunda guerra, decretou 12 condenações à morte, 3 prisões perpétuas, 2 condenações a 20 anos de prisão, uma a 15 e outra a 10 anos, todas em desfavor de dirigentes nazistas. 7 Temos aqui uma evidente manifestação de engodo na política do perdão argentino. No entender de Ricoeur (2008), o perdão presidencial é algo impossível, sendo no máximo uma teatralização do perdão, por ser uma ação de Estado e não das vítimas (individualmente), agora em condições de punir e consequentemente, perdoar. 8 Segundo o próprio Médici (2007), o escracho é uma forma de condenação social que tem por objetivo “pôr em evidência”, “tornar visível” o que está oculto e encarna uma forma de resistência ativa que instala, no centro da cena pública, o debate sobre o lugar da lei, o sentido da justiça e o efeito degradante e perverso das diversas formas de impunidade. 9 O processamento de agentes do regime tem se dado de maneira contínua. Enquanto o presente trabalho era redigido, mais precisamente em 30 de novembro de 2017, o Portal de Notícias “G1” publicava matéria dando conta da condenação de 48 ex-militares por crimes praticados durante o período autoritário: https://g1.globo.com/mundo/noticia/argentina-condena-48-ex-militares-por...
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Quadro 1. Análise descritiva da experiência argentina Comissões da Verdade Precedência de Lutas Sociais Reflexos no sistema de Justiça e estruturas do Estado.  Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas – CONADEP: Mandato para investigar os eventos ocorridos entre 1976 e 1983.  Mobilização de atores sociais, com destaque para Madres e Abuelas de Plaza de Mayo e Familiares de Detenidos e Desaparecidos por Razones Políticas  Apesar do expressivo número de condenações criminais, registrase a recorrente tentativa de barrar as investigações através do legislativo.  O Judiciário, por sua vez, alterna entre condenações, absolvições e abrandamento de penas, como no caso recente da aplicação da chamada Lei do 2 x 1. Fonte: Elaboração própria, 2018. De fato, é possível observar que o modelo argentino de luta pela memória e verdade é propositivo no sentido de incluir o coletivo de nacionais na sua dinâmica a partir do reconhecimento da pauta como matéria de relevância geral. Contudo, é necessário que se registre, que até os dias atuais, o Estado argentino de forma não pouco usual, pauta demandas de revisão das punições como quando o congresso argentino buscou aprovar lei que prevê a redução das condenações de responsáveis da ditadura militar10. Por outro lado, mesmo reconhecendo a culpabilidade de alguns perpetradores em determinados processos e afastando a aplicação das leis autoanistiantes, o Poder Judiciário argentino oscila entre condenações, absolvições11 e diminuições de pena. Assim, não têm sido ocasionais as idas dos movimentos sociais às ruas, sempre hasteando a bandeira que prega o fim da impunidade12.  
 
3. O caso chileno: As lutas populares e a busca pela consagração do direito à verdade em dois tempos  
 
                                                          
 10Nesse sentido, confira notícia publicada nos portais de notícia, e que datam de maio de 2017: https://www.dn.pt/mundo/interior/milhares-de-argentinos-protestam-contra... 11 Como no caso que envolvia o julgamento dos militares supostamente envolvidos na “Operação Condor”. Cf em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/02/1862278-absolvicao-de-militar... 12 Recentemente, no ano de 2017, a Suprema Corte Argentina decidiu aplicar em favor dos presos a chamada Lei do 2 x 1. A legislação esteve em vigor por curto período no país, entre 1994 e 2001, e tinha como objetivo acelerar os julgamentos e impedir longos períodos de prisão preventiva. Pelo texto, cada ano em que alguém ficasse detido esperando julgamento valeria por dois após a condenação. Na prática, reduzia a pena pela metade.
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Assim como na Argentina e na grande maioria dos Estados latino-americanos, o regime autoritário chileno apenas deixou o poder após a realização de um arranjo institucional.  Após plebiscito, cuja previsão era contida na Constituição promulgada pelo regime autoritário, o povo chileno optou, no ano de 1988, pela realização de eleições diretas para os poderes Executivo e Legislativo. Apesar da suposta derrota, o então ditador Augusto Pinochet, por força do que diria a Constituição chilena por ele referendada, manteve-se como senador vitalício, chefiando as forças armadas e integrando o conselho nacional de segurança, que na estrutura do então Estado Chileno se reputava mais relevante do que a Presidência da República13.   Após a eleição de Patricio Aylwin, opositor de Augusto Pinochet, a chamada Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação – CVR foi criada no Chile. Orellana e Hutchison (1991, p. 20) registraram que ainda no curso do regime autoritário chileno pelo menos dois grandes movimentos haviam se organizado com o propósito de lutar pelo direito de conhecer a verdade histórica: Chile Defiende la Vida e Comité por la Vida, la Justicia y la Verdad. Segundo os autores: Este esforço de coordenação teve sua máxima expressão na Jornada pela vida, realizada em Agosto de 1984. Durante essa jornada foi o “Plenário” e as demais instituições de Direitos Humanos. Nesta jornada participaram dezenas de milhares de pessoas. (ORELLANA e HUTSCHISON, 1991, p.50)14.  
 O “Plenário” a que Orellana e Hutschison fazem referência foi fruto da união de uma série de movimentos de defesa dos Direitos Humanos no Chile, liderado pelo Servicio de Paz y Justicia - SERPAJ, mesmo grupo que atuou no modelo argentino. Assim, a instituição da CVR no governo Aylwin não se deu por mera política de governo, mas decorreu de intensa pressão dos movimentos sociais. A CVR tinha objetivo de contribuir para o esclarecimento da verdade sobre as graves violações de Direitos Humanos ocorridas durante o período do autoritarismo e trouxe as sugestões de reparação às vítimas, consistentes em medidas sociais concretas, como estabelecimento de pensão, auxílio especial à saúde, prestação à educação, habitação, além de ter recomendado a isenção de prestação de serviço militar obrigatório para os filhos das vítimas.  
                                                          
 13 Linz e Stepan (1999, p. 243) recordam que Augusto Pinochet apenas abriu mão do poder porque a própria oposição já havia se reunido, em consenso, com o propósito de aceitar a mantença da chamada “Constituição do General”. Para os autores, o modelo chileno representa a mais “desleal” transferência de poder nos casos de transição da América Latina. Cf. em: https://tn.com.ar/sociedad/quien-luis-muina-el-torturador-civil-benefici... 14 Tradução livre do original: “Este esfuerzo de coordinacion tuvo su maxima expression en Ia Jornada por la vida, realizada en Agosto de 1984. En esa jornada, uno de los principales organizadores y movilizadores fue el Plenario y las demas instituciones de derechos humanos. En esta Jornada participaron varias decenas de miles de personas.”.
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A Comissão chilena, assim como a CONADEP, apresentou recomendações legislativas, naturais medidas de não repetição. Exemplos destas eram: a) sugestão da adequação da legislação nacional ao direito internacional sobre os Direitos Humanos e a ratificação de tratados internacionais de Direitos Humanos, b) reformas no sistema judicial e as forças armadas (RAMOS, 2012).   Sob o ponto de vista da interação dos mecanismos de verdade com os órgãos de justiça formal, as políticas do governo Aylwin caminharam no sentido de que, após divulgação do Relatório da CVR, o Informe Rettig, os casos seriam submetidos a apreciação do Poder Judiciário, apenas mediante provocação das vítimas. As buscas pelos tribunais, entretanto, não resultavam positivamente, na medida em que encontravam dois significativos óbices: i) a Lei de Anistia promulgada em 1978, o Decreto-Lei n. 2191/78, e ii) o aparelhamento dos órgãos de Estado com o legado autoritário15. Em face desses óbices, apesar do relevante trabalho desempenhado, os resultados do Informe Rettig, como ficou conhecido o documento produzido pela CVR, tornou-se parcialmente ineficaz, apresentando números que inclusive não traduziam a realidade do número de mortos e desaparecidos no Chile. O movimento só retomaria força treze anos após a criação da Comissão Valech.  A nova Comissão, assim como a primeira, surgiu a partir dos tensionamentos provocados pelos movimentos sociais chilenos, insatisfeitos com a solução parcial ofertada pelo Informe Rettig. Assim como no exemplo Argentino, os movimentos sociais chilenos, além da organização das passeatas e manifestações nas ruas de Santiago, passaram a adotar a rotina do escracho através do que chamaram de comisiones FUNA. A proposta seria, portanto, denunciar publicamente aqueles que cooperaram com o Regime autoritário, expondo-os perante a sociedade.  Por outra via, em busca da feição da chamada “Justiça Material”, os movimentos sociais passaram a disparar demandas perante os órgãos de Justiça Transnacional, a exemplo do caso Almonacid Arellano vs. Chile, submetido em 1998 ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, e que pretendia questionar a validade da lei autoanistiante16.  
                                                          
 15 Antes de transmitir o poder a Alwyin, o regime autoritário deu conta de assinar leis constitucionais que favoreciam a intangibilidade dos perpetradores, além de garantir a manutenção do poder pela via do Conselho de Segurança ao próprio Augusto Pinochet. Linz e Stepan (1999, p. 247) indicam que doze dias antes de deixar o poder, Pinochet havia nomeado, por exemplo, no Ministério do Interior, 556 (quinhentos e cinquenta e seis) novos servidores públicos, conferindo-lhes estabilidade.  16 Em decisão paradigmática, a Corte IDH considerou que o assassinato do senhor Almonacid Arellano formou parte de uma política de Estado de repressão a setores da sociedade civil e representa apenas um exemplo do grande conjunto de condutas ilícitas similares que se produziram durante essa época.
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Nesse contexto, a segunda comissão da verdade, conhecida como “Comissão Valech”, ampliou significativamente os trabalhos, e praticamente dobrou o número de vítimas do regime autoritário, antes fixado pelo Informe Rettig em 27.200 (vinte e sete mil e duzentas) vítimas, e depois atualizado pelo Informe Valech para 40.280 (quarenta mil duzentos e oitenta) pessoas, entre desaparecidos, mortos e torturados17.  Como reflexo da mobilização da Corte Interamericana, a Suprema Corte chilena afastou a lei autoanistiante quando da análise de processo criminal que se referia à execução forçada praticada por agentes do regime e que vitimou dois militantes dos movimentos insurgentes18.  O Chile, por outra via, registrou a existência de outros processos de reparação, como o pagamento de pensões ou concessão de aposentadorias de dezenas de milhares de pessoas que foram exoneradas de seus trabalhos na administração pública ou em empresas estatais por razões políticas, além das alterações de nomes de logradouros e, por último, uma reforma nas instituições de processo penal do Estado chileno.  Quadro 2. Análise descritiva da experiência chilena Comissões da Verdade Precedência de Lutas Sociais Reflexos no sistema de Justiça e estruturas do Estado.  Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação  - Comissão Rettig (Mandato para investigar eventos ocorridos entre 11.09.1973 e 11.03.1990)  
 
Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura – Comissão Valech. (Comissão com fim específico constituída para apurar eventos de 11.09.1973 e 11.03.1990).
 
Mobilização de atores sociais, com destaque para Chile Defiende la Vida e Comité por la Vida, la Justicia y la Verdad, além da concentração de outros movimentos junto a “Plenária”.  
 
Permanente tensionamento promovido pelas Comissões FUNA e pelo Agrupamento de Familiares de Detidos Desaparecidos do Chile.
Diversas condenações criminais, superação da lei autoanistiante, reforma da estrutura de Justiça Criminal.
 
Apesar do expressivo número de condenações criminais, registrase a recorrente tentativa de barrar as investigações através do legislativo, e uma retomada de escalada do conservadorismo. Existe também interpretação recente da Suprema Corte que aplicou a regra de prescrição dos crimes comuns em favor de alguns agentes do regime.  
 
Por outro lado, a prisão para a qual a maioria dos agentes do regime Pinochet foram encaminhados é cercada de
                                                          
 17 A íntegra do Informe é acessível em:  http://www.derechoshumanos.net/paises/America/derechos-humanosChile/info... 18 Tratamos aqui do caso “Miguel Angel Sandoval”. Rol 517-2004, Corte Suprema Chilena, julgado em 17/11/2004, cuja integralidade pode ser acessada em: http://dx.doi.org/10.4067/S0718-00122004000200011.
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regalias, incluindo até quadra de tênis e sala de cinema. Fonte: Elaboração própria, 2018. Apesar dos processos reparatórios, algumas insuficiências ainda são notadas no modelo transicional chileno. Embora a Suprema Corta tenha pacificado o entendimento no sentido de afastar a incidência do Decreto-Lei autoanistiante, a sociedade chilena ainda aguarda a revogação formal do dispositivo19. Nas próprias estruturas do Judiciário, registra-se a aplicação de penas brandas aos perpetradores. Mais do que isso, segundo Castro e Almeida (2015, p. 216,217), grupos específicos, a exemplo de indígenas Mapuche e exilados, não possuem suas verdades relatadas até a presente data, e parte das informações extraídas nos informes Rattig e Valech permanecem sob sigilo.  No Chile, assim como na Argentina, apesar dos significativos avanços em determinadas matrizes, também não se verifica o alcance da plenitude democrática, tal como se defende no curso do presente trabalho, persistindo um perene dissenso social que atualmente permite, por exemplo, a escalada de grupos inspirados no regime autoritário20.  Além disso, assim como acontece na Argentina, os movimentos sociais, especialmente representados no Chile pelo Agrupamento de Familiares de Detidos Desaparecidos sugere que o Poder Judiciário tem sido benevolente com os agentes do regime Pinochet, reconhecendo a prescrição de crimes que, de acordo com a normativa de Direito Internacional dos Direitos Humanos, não se sujeita à prescrição21.  Em todo caso, as manifestações que tomam as ruas clamam pelo fim da impunidade e pelo fim das regalias concedidas aos agentes do regime que já foram condenados, visto que aqueles que cumprem pena, segundo denúncias formuladas pelos movimentos sociais e imprensa chilena foram encaminhados ao presídio de “Punta Peuco” e “Cordillera”, onde gozam de regalias que, segundo informe realizado pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile, conta com sala de cinema e quadra de tênis, por exemplo22.                                                            
 19 Promessa a propósito feita pela ex-presidente Michelle Bachelet, mas não cumprida até o fim do seu mandato no final do ano de 2017. 20 Exemplo cabal disso é o resultado das últimas eleições presidenciais chilenas. No primeiro turno, José Antônio Kast, que é um aberto defensor do regime Pinochet, obteve aproximadamente 8% (oito por cento) dos votos dos chilenos. O eleito foi Sebastian Piñera, que no segundo turno contou com o apoio explícito de Kast. 21 Em muitos casos, a solução encontrada pelo Poder Judiciário, é atribuir à prática dos repressores a conduta do “sequestro” e não do “desaparecimento forçado”. Por se tratar, então, de um crime de natureza comum, aplica-se a regra usual de prescrição.  22 Matéria inclusive com registro fotográfico da estrutura de Punta Peuco pode ser acessada através do website do Portal de Notícias Chileno “El Repúblico”: https://www.elrepublico.com/pais/25/03/2017/el-hotel-informe realizado por el Instituto Nacional de Derechos Humanos.-de-punta-peuco-por-dentro/. O fechamento da prisão de Puenta Peuco era uma promessa da ex-presidente chilena Michelle Bachelet, que contudo não se cumpriu até o término do seu mandato em Dezembro de 2017. A prisão de “Cordillera”, por sua vez, foi fechada no ano de 2013.
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4. O caso brasileiro: A Comissão Nacional da Verdade ou a Comissão da Verdade Possível?
 
A Comissão Nacional da Verdade, no Brasil, é resultado de uma série de embates promovidos, especialmente por familiares das vítimas do regime autoritário brasileiro. Ao contrário do que aconteceu em Estados como aqueles dois estudados panoramicamente ao longo deste artigo, a Comissão Nacional da Verdade brasileira somente ganhou projeção e se estabeleceu após aproximadamente 30 (trinta) anos da distensão oficial da ditadura civil-militar. A ambição desses atores sociais finalmente se concretizou a partir da composição colateral de pelo menos três elementos que derivaram das suas lutas e contribuíram diretamente no tensionamento institucional da questão: i) a inclusão do eixo orientador referente à Memória, Verdade e Justiça no PNDH-3, ii) a problematização23 e posterior promulgação da Lei de Acesso à Informação e; iii) a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil.  Apesar da precedência de tais elementos, o caminho que seguiu até a promulgação da Lei que criou a Comissão Nacional da Verdade foi ruidoso. Nos meses que antecederam a publicação da lei, houve tensões e protestos. Dentre as insatisfações, as mais incisivas publicamente vieram dos clubes militares, como não poderia deixar de ser, registraram através da imprensa sua discordância24. Por outro lado, a tramitação da Lei perante o Congresso Nacional foi permeada por negociações, fruto de um acordo de coalizão. O texto final, assim, somente foi aprovado, após a concordância com alguns destaques feitos pela bancada da então oposição. Na ocasião, o líder do partido “Democratas”25, indicou e aprovou uma emenda no sentido de restringir as hipóteses
                                                          
 23 A Lei de Acesso à Informação, apesar de somente ter sido promulgada em 2011, esteve no centro dos debates desde o ano de 2005, especialmente perante o Conselho de Transparência Pública e combate à corrupção. Esta informação pode ser verificada no Portal da Transparência do Governo Federal: http://www.acessoainformacao.gov.br/assuntos/conheca-seu-direito/histori... 24 Dentre tantas, a declaração do General da Reserva Marco Antônio Felício da Silva chamou especial atenção. O militar classificou a CNV como um teatro montado pela esquerda armada “(...) colocando-os como democratas e defensores da liberdade e dos direitos humanos quando, no passado, desejavam a derrubada do governo e a instalação de uma ditadura do proletariado por meio da luta armada, usando do terrorismo, assassinatos, roubos, sequestros e justiçamentos". A íntegra da matéria pode ser acessada em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,militares-reagem-a-declara.... 25 O então deputado Antônio Carlos Magalhães Neto é neto do falecido Senador Antônio Carlos Magalhães, político baiano que guardava uma íntima relação com o regime autoritário, tendo sido nomeado prefeito da capital baiana ao final dos anos de 1960 e posteriormente indicado para assumir o governo do Estado por Emílio Garrastazu Médici.  
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de nomeação dos membros da CNV26, o que atrasou em aproximadamente 6 (seis) meses o início das atividades da Comissão Nacional da Verdade. Outra relevante questão tratada por força de emenda, e que demonstra a disposição da elite conservadora brasileira em combater os termos da Lei que instituiu a CNV, foi apresentada pelo então líder do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB na Câmara, o deputado Duarte Nogueira, que pretendia incluir no rol de “investigados” os militantes de esquerda e até mesmo órgãos ou governos estrangeiros que, supostamente tivessem “(...) combatido o governo do país durante o período da apuração.”27. Referida emenda do Deputado Duarte Neto foi rejeitada sob o argumento de que os militantes de esquerda já haviam sido reprimidos, investigados e julgados perante cortes militares. Por fim, a aprovação do texto perante o Congresso Nacional foi precedido por um debate acerca da extensão da Lei autoanistiante brasileira. Políticos da ala conservadora exigiam que a redação da lei que instituiria a Comissão Nacional da Verdade garantisse adstrição aos limites da Lei de Anistia. Um retrato exato disso é a disposição do Art. 6º da referida lei, que limite a atuação da Comissão Nacional da Verdade à Lei nº 6.683/7928.  Vale ressaltar que, na forma de que foi aprovada, a Lei nº 12.528 desagradou aos movimentos sociais de luta pela verdade e memória, que em sua grande maioria desaprovou os termos do acordo que possibilitou aquilo que mais tarde seria chamado de “Comissão do Possível” ou “Comissão do Consenso”29. Um desses grupos, relacionado no tópico anterior, e considerado um dos mais relevantes na luta da pauta da memória e verdade, o Grupo Tortura Nunca Mais, divulgou artigo em periódico próprio, logo após votação do Projeto de Lei perante a Câmara dos Deputados, classificando a Comissão Nacional da verdade como um “engodo”.  
 
                                                          
 26 Nesse sentido, o texto original previa a nomeação de sete membros designados pelo Presidente da República entre brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos. Com a alteração proposta pelo deputado baiano, o Art. 2º da Lei ganhou um parágrafo que excepcionava as hipóteses de indicação. Assim, não mais poderiam ser indicados: i) aqueles que exercessem cargos em partidos políticos; ii) aqueles que não fossem imparciais; iii) aqueles ocupantes de cargos comissionados ou função de confiança.  27 Emenda nº 13 – Plenário. Disponível para visualização na íntegra através do sítio: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=9230... 3D%3E+PL+7376/2010. 28 Nesse sentido a redação do dispositivo: “Art. 6º: Observadas as disposições da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, a Comissão Nacional da Verdade poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos, especialmente com o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia, criada pela Lei no 10.559, de 13 de novembro de 2002, e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, criada pela Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995.”.  29 O termo remete à infeliz definição de “Democracia do Possível” do constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, autor de sustentação teórica do modelo de governabilidade do regime autoritário. Contudo, na prática, a “Comissão do Possível” é um retrato fiel do modelo de coalizão que se retratou no primeiro capítulo do presente trabalho, cuja expressão era singularizada pelos politólogos da transitologia.  
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Antes, o texto do projeto estreitava a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes, negando-lhe orçamento próprio; desviando o foco de sua atuação ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988!), extrapolando assim em duas décadas a já extensa duração da Ditadura Militar. Além disso, impede que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes, para que estas promovam a justiça. (GRUPO TORTURA NUNCA MAIS, 2011).
 
A Lei nº 12.528 também foi alvo de contundentes críticas formuladas por um coletivo de famílias das vítimas do regime autoritário. O “Manifesto das famílias das vitimas da ditadura”, veiculado em 19 de setembro de 2011 em alguns órgãos de imprensa, dá conta da insatisfação desses atores sociais que, além de replicarem as críticas formuladas pelo Grupo Tortura Nunca Mais, reclamaram a submissão dos nomes dos membros da Comissão à apreciação dos movimentos sociais: “em particular aos resistentes (militantes, perseguidos, presos, torturados, exilados, suas entidades de representação e de familiares de mortos e desaparecidos).”30.  Nesse contexto, a Comissão Nacional da Verdade finalmente deu início aos seus trabalhos, em 16 de maio de 2012 a partir da cerimônia oficial da sua instalação. Naquela altura, Anthony Pereira (2014), atento às mobilizações dos grupos de pressão existentes nos dois lados, assim observava: A Comissão da Verdade entra em operação num contexto de alta polarização política e é improvável que agrade a todos. Aparentemente a grande maioria da opinião pública brasileira é cética ou indiferente à Comissão. Os argumentos mais fortes contra a comissão tendem ao realismo político. Assim, se a negociação política que deu início a transição, diz o argumento, foi consensual, também deverá ser a amnésia. (PEREIRA, 2014, p.524)31
 
Da formulação de Pereira, chama atenção, especialmente no recorte metodológico proposto, a narrada indiferença da opinião pública em relação à instalação da Comissão Nacional da Verdade. A questão, que remete parcialmente ao tópico anterior, pode estar relacionada a pelo menos dois fatores: i) o longo lapso temporal havido desde a distensão do regime autoritário e a criação da CNV32 e, ii) o isolacionismo dos movimentos de luta pela
                                                          
 30 Ver o “Manifesto das famílias das vitimas da ditadura”, de 19 de setembro de 2011, disponível em: https://www.carosamigos.com.br/index.php/gallery/100-outras-noticias/mov... 31 Tradução livre do original: “The truth Commission is operating in a highly polarized political environment and is unlikely to be able to please everyone. It seems likely that a large portion of Brazilian public opinion is skeptical about or indifferent to the commission. The strongest arguments against the commission tend towards policital realism. The political negotiation that led to the transition, goes the argument, was consensual; so was the amnesy.”.   32 A comissão foi instalada 27 (vinte e sete) anos após a oficial saída do regime autoritário do poder, e o Relatório final foi apresentado no ano de 2014, quando se registrava a passagem de 50 (cinquenta) anos desde o golpe civilmilitar de 1964.
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memória e pela verdade, quase sempre endossados ao longo dos anos pelos familiares das vítimas. Naturalmente, não se pode desconhecer que essa pode ser uma consequência lógica da desmobilização do conjunto da sociedade, provocada pela tradição amnésica própria da experiência brasileira de transição.  Assim, havia na Comissão Nacional da Verdade a necessidade de cumprir um desafio que extrapolava o limite dos seus propósitos legalmente previstos. Havia, desse modo uma necessidade de congregar a opinião pública em torno do tema. Esse engajamento foi intentado através de uma verdadeira imersão da CNV nas mídias sociais33. Para além, talvez o mais relevante ponto de contato da Comissão Nacional da Verdade com os demais segmentos da sociedade tenha sido singularizado na criação de grupos temáticos de trabalho que, além de terem dedicado espaço às investigações relativas às operações e às atividades do regime autoritário, também designou grupos para alcançar as relações da ditadura civil-militar com setores e pautas específicas.  A combinação da análise dessas pautas foi possível em razão da aplicação de uma técnica denominada “Arqueologia da Repressão e da Resistência”. Poloni (2014), assim descreve a metodologia: (...) apresenta-se como um campo de estudos com contexto teórico, metodológico e objeto de estudos próprios, permitindo, através da análise da cultura material humana, a inclusão de um ponto-de-vista alternativo na compreensão tanto de contextos de ocorrência de ações de repressão e de resistência, quanto da ciência produzida em contextos autoritários. (POLONI, 2014, p. 269)
 
A metodologia disposta, portanto, pretendia não somente difundir o signo da verdade histórica, mas estender o alcance das informações de modo que se pudesse estabelecer um diálogo entre a sociedade e os diversos discursos sobre os contextos repressivos. A Comissão Nacional da Verdade apresentou seu Relatório Final em dezembro do ano de 2014, e embora tenha trazido no seu bojo relevantes contribuições no desvelamento das graves violações de Direitos Humanos ocorridas no curso da ditadura civil-militar brasileira, destacou igualmente as dificuldades encontradas na produção da sua síntese.  
 
Caso as Forças Armadas tivessem disponibilizado à CNV os acervos do CIE, CISA e Cenimar, produzidos durante a ditadura, e se, igualmente, tivessem sido prestadas todas as informações requeridas (...) a história de execuções, tortura e ocultação de cadáveres de opositores políticos à ditadura militar poderiam ser melhor elucidadas. (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p .28, v.III).  
 
                                                          
 33 A Comissão Nacional da Verdade dispunha de contas nas redes sociais como “Twitter”, “Facebook”, além de um sítio virtual interativo e uma conta no website de compartilhamento de vídeos “You Tube”.  
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A dificuldade narrada autoriza interpretar que, de todo modo, o trabalho da Comissão Nacional da Verdade tem raiz em duas escolhas metodologicamente feitas pelo grupo: i) a dedicação excessiva aos documentos e; ii) o objetivo de dar à história oral um caráter de “história oficial”. Embora o caminho seja legítimo, pode-se afirmar, resgatando a conceituação de memória, verdade e empoderamento já construída no segundo capítulo deste trabalho, que tal opção permite repousar a vítima numa mesma condição de vítima, recusando um engajamento pela dialética e um aprofundamento democrático (WEICHERT, 2014b, p. 114). Ainda segundo Cunha de Oliveira (2015):  
 
No acompanhamento das vítimas, principalmente na passagem dessa condição para a de sujeitos de ação, é imprescindível acolher histórias, criar caminhos de coletivização, criar juntos, saber cuidar. Trabalhar com a transdisciplinaridade e com as invenções coletivas, para a transformação das instituições públicas, de ambientes “totais” para “instituições permeáveis”. (CUNHA DE OLIVEIRA, p.171)  
 
Por outro lado, merece destaque as importantes recomendações apontadas pelo colegiado que sugere, ao fim do trabalho, que o Estado brasileiro adote uma série de medidas para pôr fim ao legado autoritário34. Dentre as vinte e nove recomendações contidas no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, destacamos as seguintes: i) Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV; ii) Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos; iii) Preservação da memória das graves violações de direitos humanos; iv) Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar. Ademais, outra relevante contribuição realizada pela Comissão Nacional da Verdade, relaciona-se com o engajamento que promoveu nos demais órgãos do Estado brasileiro, universidades, sindicatos, conselhos de classe, entre outros, que por sua vez, instalaram Comissões próprias (Estaduais, municipais e setoriais) para apurar violações ocorridas no âmbito desses espaços, chegando a articular ações com a própria Comissão Nacional da Verdade.  O fato, contudo, é que entre 1985 e 2015, o Brasil viveu a promessa da “redemocratização”, e acumulou a esperança pulsante de uma democracia que fosse capaz de se consolidar, tornando-se rígida para enfrentar eventuais intempéries. Durante esse período, as
                                                          
 34 Constam, ao fim do Relatório, 29 (vinte e nove) recomendações propostas pelo colegiado. As recomendações variam desde a internalização de políticas públicas à adoção de medidas reparatórias de um modo geral.  
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lutas pela transição foram se acirrando, na medida em que as conquistas – mesmo que modestas – surgiam no horizonte.  Um dos mais esperados momentos de ascensão da jovem democracia brasileira, a realização do Direito à Memória e à verdade através da sua Comissão Nacional e a possibilidade de construção de uma identidade coletiva autônoma, despregada do discurso do autoritarismo, imune aos retrocessos em matéria de Direitos Humanos, parece ter sido representada efetivamente como Comissão da Verdade Possível.  No modelo brasileiro, portanto, é possível reconhecer que há uma perniciosidade no tencionamento permanente por um modelo de transição que não permita contrariar as forças hegemônicas35, para daí inaugurar um paradigma sócio-histórico pautado no dever de construção de uma democracia de alta intensidade36.
 
5. Conclusão
 Ao fim do presente artigo, é possível constatar que sob o ponto de vista da análise histórica, a experiência latina notabilizou-se, de forma marcante, pelos arranjos institucionais, mas por outro lado também pelas resistências dos seus povos, sugerindo o dissenso social que de alguma maneira redimensiona a busca pela realização dos direitos da transição. A intensidade das lutas parece ter sido decisiva para que os movimentos de consagração do direito à memória e à verdade pudessem se afirmar especialmente na Argentina e no Chile, malgrado as duas experiências também apresentem as suas incongruências.   Por outro lado, analisando as práticas dos Estados, é possível afirmar que empoderar a sociedade através da garantia do direito à memória e à verdade significa dar início à construção de uma compreensão que seja capaz de lidar com os desafios impostos pelo legado autoritário de uma maneira assertiva, distinta do que propõem os modelos ratificadores dos acordos políticos celebrados em prol de uma cultura do esquecimento.  Em que pesem as dificuldades enfrentadas pelas sociedades argentina e chilena, o presente artigo demonstrou que há uma disposição estabelecida naqueles Estados e que, diante do estímulo de uma cultura de promoção do direito à memória e à verdade, mantém acesa a necessidade de problematização em torno da questão.                                                            
 35 Os acordos e concessões feitos quando da promulgação da Lei que instituiu a Comissão Nacional da Verdade é uma prova cabal de que os interesses hegemônicos ainda apresentam grande relevância e contato na dinâmica das lutas pela transição.  36Ou seja, como diz Sousa Júnior (2015), uma democracia que se alicerça na medida em que a práxis social seja reconhecida como consagradora de direitos capaz de subverter o monismo estatal, conferindo protagonismo aos movimentos sociais e outros sujeitos tradicionalmente negados e invisibilizados por um padrão burocrático institucional que é hegemônico.
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Sousa Junior (1997, p. 99) afirma que a perspectiva democrática é também uma experiência de recriação permanente e de renovação das instituições que resulta na determinação de novos espaços públicos e condições para o debate e formação de novos consensos. Ao que tudo indica, falta ao modelo brasileiro de resgate da memória e da verdade, a formação de um novo consenso.  Ao apresentar a experiência brasileira de memória e verdade, o presente trabalho demonstrou que a construção da Comissão Nacional da Verdade, cujos anseios povoaram as pautas dos grupos de vítimas e familiares, ao longo de mais de três décadas, se constituíram na forma da Comissão do Possível, relembrando o infeliz acordo que possibilitou o início da transição com a promulgação da Lei de Anistia.  Assim como o processo de “redemocratização” brasileiro, a constituição da Comissão Nacional da Verdade se deu mediante negociação com os mesmos representantes das forças do autoritarismo, de modo que o seu modo de atuação passou a dispor de limites muito claros, que dificultaram de sobremaneira os seus trabalhos, desde a formação do seu quadro de comissionados, até a impossibilidade da coleta de dados junto aos órgãos das Forças Armadas brasileiras. Contudo, apesar da incompletude da experiência brasileira, o presente trabalho evidenciou que a existência da centelha pode ser o começo para que se institua uma agenda permanente pela ampla fixação do direito à memória e à verdade dentro do espectro de defesa das agendas de Direitos Humanos. Ainda que a consolidação de tal direito pareça tardia, o seu efeito parece definitivo para a construção de uma democracia de alta intensidade.    6. Referências bibliográficas
 
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