A inconstitucionalidade do § 1°, do art. 1°, da Lei Estadual nº 10.982/01 e a possibilidade de sua imediata inaplicabilidade


Pormarina.cordeiro- Postado em 12 março 2012

Autores: 
BOLQUE, Fernando Cesar
Sumário: 1. Introdução; 2. Da competência concorrente; 3. Da possibilidade da imediata inaplicabilidade do dispositivo inconstitucional; 4. Conclusões; 5. Bibliografia.6. Notas
 
1.Introdução
O presente artigo busca analisar o disposto no § 1º, do art. 1º, da Lei Estadual nº 10.982, de 04 de dezembro de 2001. Referido dispositivo afirma a possibilidade da entrada, permanência e prática de jogos de sinuca, bilhar e congêneres por adolescentes maiores de 14 anos.
Busca-se, neste espaço, delinear a sua flagrante inconstitucionalidade, em face da usurpação da competência geral estabelecida no art. 24, inc. XV, da Constituição Federal para a proteção da infância e juventude e pelo confronto com o art. 80, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Busca-se ainda fundamentar a possibilidade da imediata inaplicabilidade do dispositivo em questão, em face da sua flagrante inconstitucionalidade e por colocar em perigo a estabilidade e segurança das relações sociais.
 
2.Da competência concorrente
Dispõe o art. 24, inc. XV, da Constituição Federal o seguinte, in verbis:
Art. 24 – Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
XV - proteção à infância e juventude.
A regra estabelecida no art. 24 da Constituição Federal é aquela denominada pela doutrina como decompetência concorrente.
Diz a doutrina:
O art. 24 da Constituição Federal prevê as regras de competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal, estabelecendo quais as matérias que deverão ser regulamentadas de forma geral por aquela e específicas por esses. [1]
Quando desta hipótese de competência, dispõe os §§ 1º e 2o, deste mesmo dispositivo:
Art. 24 -...
§ 1º – No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º – A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
Portanto, em sede de proteção à infância e juventude, temos a chamada competência concorrente, cabendo à União legislar sobre normas gerais e aos Estados a legislação suplementar. [2]
Segundo ainda o mesmo doutrinador, a competência do Estado-membro ou do Distrito Federal refere-se às normas específicas, detalhes, minúcias (competência suplementar). Assim, uma vez editadas as normas gerais pela União, as normas estaduais deverão ser particularizantes, no sentido de adaptação de princípios, bases, diretrizes a peculiaridades regionais (competência complementar). [3]
Muito bem.
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi instituído pela Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe o art. 80 desta Lei, o seguinte:
Art. 80 – Os responsáveis por estabelecimentos que explorem comercialmente bilhar, sinuca ou congênere ou por casas de jogos, assim entendidas as que realizem apostas, ainda que eventualmente, cuidarão para que não seja permitida a entrada e a permanência de crianças e adolescentes no local, afixando aviso para orientação do público.
Podemos concluir, sem nenhum esforço mental, que a regra estatuída pelo art. 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente e, portanto, lei federal (da União) dispõe a respeito das chamadas normas gerais, exatamente como disciplina o § 1º, do art. 24, da Constituição Federal.
O problema surgiu com o advento da Lei Estadual nº 10.982, de 4 de dezembro de 2001, que disciplina aprática desportiva da sinuca, bilhar e congêneres no Estado de São Paulo.
Não obstante a lei ter sido vetada pelo Governador do Estado, certo é que o veto foi derrubado parcialmente pela Assembléia Legislativa, culminando com a sua promulgação, disciplinando o § 1º, do art. 1º o seguinte:
Art. 1º...
§ 1º – As modalidades referidas no "caput", em razão de seu caráter esportivo, poderão ser praticadas, exercidas e disputadas por maiores de 14 (quatorze) anos, em qualquer lugar público, aberto ou não, tais como bares, restaurantes, mercearias, sorveterias, padarias, lanchonetes, clubes desportivos e de lazer, salões de jogos e grêmios recreativos, dentre outros.
Esta regra estabelecida pelo § 1º, do art. 1º, da Lei Estadual mencionada, usurpa claramente a competência constitucional estabelecida pelo § 2º, do art. 24, da Constituição Federal, já que estabelece normas de caráter gerale não simplesmente a suplementar, como determina o mencionado dispositivo. Não se trata simplesmente de instituir detalhes, suplementos, adaptar princípios, bases etc. O Estado, com o mencionado dispositivo, estatui regras gerais, normas que caberiam à União.
Portanto, a Lei Estadual é flagrantemente inconstitucional.
Aliás, também nos casos de colisão entre normas do direito estadual com as leis complementares, admitiu o Supremo Tribunal Federal a existência de inconstitucionalidade (Rp. 1141, rel. Min. DECIO MIRANDA, RTJ nº 105, p. 490; Rp. 1442, rel. Min. CARLOS MADEIRA, DJ, 1º jul. 1988). [4]
No mesmo sentido, Clemerson Merlin Cleve, ao afirmar que a invasão indébita, pelos Estados, da área reservada pela Constituição à lei federal (embora ordinária) dispondo sobre norma geral, consistirá em inconstitucionalidade suscetível de confrontação por via de ação direta. [5]
É de se destacar que por força do Protocolado nº 21.460/02-PGJ, o Exmo. Sr. Dr. Luiz Antonio Guimarães Marrey, DD. Procurador Geral de Justiça, representou ao Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República pelo ingresso de Ação Direta de Inconstitucionalidade da mencionada Lei Estadual.
 
3.Da possibilidade da imediata inaplicabilidade do dispositivo inconstitucional
Resta a seguinte dúvida: deve ou não ser cumprida enquanto não for declarada a sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal?
Diz a doutrina:
A inconstitucionalidade de uma lei é, pois, a circunstância de uma determinada norma infringir a Constituição, quer quanto ao processo a ser seguido pela elaboração legislativa, quer pelo fato de, embora tendo a norma respeito a forma de criação da lei, desrespeitar a Constituição quanto ao conteúdo adotado.
Segundo a técnica jurídica, esta lei inconstitucional é inexistente.
Em resumo: em nome do princípio da validade da norma em função da sua adequação à norma hierárquica superior, conclui-se que toda norma infringente da Constituição é nula, írrita, inválida, inexistente. [6]
Entretanto, prossegue o eminente doutrinador:
Ao conferir-se a qualquer um a competência de declarar uma lei inconstitucional, como escusa para o seu descumprimento, chegaríamos ao absurdo de ver o Executivo deixar de cobrar tributos, de efetuar prisões, de interditar estabelecimentos, toda vez que reputasse a lei como contrária à Constituição. Assistiríamos, por outro lado, ao particular resistir à bala à ordem de prisão emanada de autoridade, derrubar obstáculos ao trânsito em certas vias etc., toda vez, também, em que, segundo seu critério subjetivo, as medidas do Poder Público estivessem escoradas em leis inexistentes, por ferirem a Constituição, embora emanadas do Poder criado pela Constituição com o fim de fazer normas de direito. [7]
Assim, à primeira vista, chegaríamos à conclusão de que embora a Lei 10.982/2001 seja inconstitucional, enquanto não promovida a sua retirada do sistema por força de Ação Declaratória de Inconstitucionalidade a ser promovida por qualquer das autoridades elencadas no art. 103 da C.F., teríamos que suportar o ônus de sua eficácia e validade.
Entretanto, não é assim que a doutrina determina:
Por enquanto, cumpre apenas examinarmos que conclusões podem ser tiradas dos princípios firmados: a) o da validade da norma em função de sua adequação à norma hierárquica superior; b) o da presunção de legitimidade de toda norma, em nome da segurança e estabilidade das relações reguladas pelo direito.
A primeira conclusão é a de que, toda vez em que não houver desrespeito ao segundo princípio, pode-se, em nome do primeiro, desobedecer à lei inconstitucional. Pelo contrário, em nome do segundo princípio, nunca se pode desobedecer à lei inconstitucional, quando sua desobediência implicar sua transgressão. [8]
Teríamos, portanto, duas premissas: a) a necessidade de respeitar a lei, mesmo que inconstitucional, quando o seu desrespeito ferir a segurança e a estabilidade das relações sociais; b) a possibilidade de desrespeito da norma flagrantemente inconstitucional quando não houver perigo àquela estabilidade e segurança.
Indaga-se: o desrespeito à norma estatuída pelo § 1º, do art. 1º, da Lei Estadual nº 10.982/01 causará perigo à estabilidade e segurança das relações sociais?
A resposta, ao que me parece, é clara e objetiva em sentido negativo.
Em comentário à Lei das Contravenções Penais, destaca a doutrina:
O jogo... desorganiza o trabalho, exalta a imaginação, favorece os maus desígnios, aguça a cuspidez, avilta o caráter, entretém a ociosidade, gera ruína, motiva os crimes mais graves, sobretudo contra o patrimônio, as falsidades, as chantagens, os peculatos, e, por fim, insensibiliza, corrompe, degrada. [9]
Imagine esta situação quando o jogador é um adolescente, em formação do caráter e personalidade. Aliás, o sempre festejado Paulo Lúcio Nogueira, destaca:
O jogo é um mal indiscutível, em todos os aspectos, não só para adultos, mas principalmente para os jovens, que estão formando seu caráter e sua personalidade. O jovem, por natureza, já apresenta certa inclinação para os jogos, e, se lhe fosse permitido jogar, sofreria uma série de prejuízos. Assim, é perfeitamente justificável que se proíba a entrada de crianças e adolescentes em casas de jogos, sendo muito importante a fiscalização destes estabelecimentos, pois de nada adianta a previsão legal sem o devido cumprimento, como ocorre com diversas leis existentes em nosso país. [10]
Portanto, a conclusão inexorável que chegamos é a da possibilidade de desrespeito da norma flagrantemente inconstitucional, posto que não há perigo àquela estabilidade e segurança. Pelo contrário: cumprir-se a norma inconstitucional estadual é que gerará perigo à estabilidade e segurança sociais.
 
4.Conclusões
A competência concorrente vem estatuída no art. 24, da Constituição Federal, cabendo à União estabelecer normas de caráter geral e aos Estados e Distrito Federal normas suplementares.
O art. 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente é claramente uma norma de caráter geral, posto que estatui a proibição de crianças e adolescentes freqüentarem bares, restaurantes ou similares que explorem a prática de bilhar, sinuca ou congêneres.
O § 1º, do art. 1º, da Lei Estadual nº 10.982/01 não tem o caráter de norma suplementar, posto que não complementa a norma geral, culminando em flagrante confronto com a lei federal.
Por esta razão, o dispositivo estadual mencionado padece do vício da inconstitucionalidade.
Por colocar em risco a estabilidade e segurança das relações sociais, o dispositivo em questão pode ser imediatamente não aplicado, cabendo aos Conselhos Tutelares a tarefa de fiscalizar o cumprimento do art. 80 do Estatuto da Criança e do Adolescente e em caso de seu descumprimento proceder às autuações cabíveis, encaminhando-se notícia imediata ao Ministério Público.
 
5.Bibliografia
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000.
CLEVE, Clemerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
DUARTE, José. Comentários à Lei das Contravenções Penais. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1958.
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10ª edição. São Paulo: Atlas, 2001.
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: Saraiva, 1991
 
Notas
1. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10ª edição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 291.
2. Diz Alexandre de Moraes na obra citada, p. 293: "Essa orientação, derivada da Constituição de Weimar (art. 10), consiste em permitir ao governo federal a fixação das normas gerais, sem descer a pormenores, cabendo aos Estados-membros a adequação da legislação às peculiaridades locais".
3. Op. Cit., p. 293.
4. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 183.
5. Cf., A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 155.
6. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 388-389.
7. Op. Cit., p. 390.
8. Op. Cit., p. 391.
9. DUARTE, José. Comentários à Lei das Contravenções Penais. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 490.
10. Cf., Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 88.