Formação do Bacharel em Direito


PorPedro Duarte- Postado em 25 junho 2012

Autores: 
Mariana Carvalho Fraga

Trata da formação do Bacharel em Direito no Brasil durante o Império e a República, com contextualização, caracterização e análise crítica de cada período e da influência do primeiro sobre o último, demonstrando as mudanças ocorridas.

Introdução

O objetivo deste artigo é desenvolver uma análise crítica, em que estará presente a contextualização e caracterização, da formação do Bacharel em Direito no Brasil durante o Império e a República. Permitirá-se observar em que o primeiro período influenciou o segundo, quais as mudanças que puderam ser observadas e, por fim, o que foi repercutido e o que continuou estático do Império aos dias atuais com relação à formação de intelectuais na esfera do direito.

Um dos motivos pelo qual decidi desenvolver este trabalho foram as dúvidas que surgiram quando no dia 26 de setembro de 2002 assisti na UFBA um seminário sobre o “Ensino Jurídico no Brasil”. Onde um dos assuntos abordados foi: a formação do Bacharel em Direito aqui no país. Na apresentação de Calmon de Passos, sobre “O Papel do Profissional do Direito na sociedade contemporânea”, aprendi que a função do profissional do direito em determinada sociedade está diretamente relacionada com o sistema político adotado pela mesma. Questionei-me então: Como teria sido o papel destes profissionais assim que o curso de Direito fora implantado aqui no Brasil? Com que intuito teria sido fundado a Academia de Direito no Brasil? Quais teriam sido os interesses que levaram a elite da época a implantar esse curso aqui? Com o tema “O Ensino Jurídico e a Ética profissional”, desenvolvida por Paulo Barba Costa, fiquei em dúvida se existia mesmo ética profissional dentro das academias de direito, logo que essa instituição foi estabelecida, observando a presença do patrimonialismo na sociedade brasileira pós-colonial. Qual teria sido a função do poder judiciário nas transformações sociais consolidadas? Na palestra de Paulo Roberto de Gouvêa Medina “Formação e Deformação do profissional do Direito”, perguntei-me qual teria sido os reflexos deixados à sociedade contemporânea pela formação dos primeiros bacharéis do direito, em que eles influenciaram? Estes questionamentos acabaram desencadeando em mim uma ambição em saber mais a respeito da formação do Bacharel em Direito.

Este trabalho será fundamentado com os seguintes autores: Abreu (1988),o qual retrata o papel do profissional do direito; Wolkmer (2000), que explora as características dos juristas no Império e cultura jurídica na República e Lopes (2000), o qual desenvolve idéias sobre o perfil dos Bacharéis em Direito das Academias Brasileiras, ressaltando o ambiente acadêmico dos primeiros cursos fundados no Brasil, em São Paulo e Recife.

O texto está organizado em duas partes: a primeira trata do liberalismo disseminado no Brasil, abordando as influências e reflexos que tal ideologia surtiu, enquanto a segunda expõe como era o perfil e a formação do bacharel em direito brasileiro.

1. Liberalismo no Brasil: Influências e Reflexos

De acordo com Abreu (1988), o período anterior ao 7 de setembro de 1822 no Brasil foi uma época que se finalizou sem grandes traumas e conflitos. A Independência concretizou-se fundamentada em idéias liberais ímpares adotadas pela elite emergente com o objetivo de conciliar a natureza patrimonial do Estado brasileiro com o modelo jurídico de exercício de poder.

Essas idéias liberais brasileiras tornaram-se ímpares pela exclusividade das características das mesmas. Diferente da Europa, onde o liberalismo nasce de uma revolução centrado nos princípios de igualdade, fraternidade e liberdade, aqui, as idéias liberais foram impostas e vincularam-se a muitos dos fundamentos coloniais. Sendo que no Brasil desta época, essas idéias eram predominantemente antimetropolitanas. Nas idéias liberais brasileiras o princípio de liberdade associou-se à modernização e progresso, e o princípio da democracia à anarquia. Desde então já podiam ser constatadas as ambigüidades de tal ideologia aqui.

Wolkmer (2000) cita Roy Macacridis que enumera três núcleos nos quais o liberalismo se centrou: o “ético-filosófico”, o “econômico” e o “político-jurídico”.

“A dimensão "ético-filosófica” do liberalismo denota “afirmação de valores e direitos básicos atribuíveis a natureza moral e racional do ser humano”. Suas diretrizes assentam nos princípios liberais da liberdade pessoal,do individualismo, da tendência, da dignidade e da crença na vida. Já o aspecto “econômico” refere-se, sobre tudo, às condições que abrangem a propriedade privada, a economia de mercado, a ausência ou minimização do controle estatal, a livre empresa e a iniciativa privada. Ainda como parte integrante desse referencial, encontra-se os direitos econômicos, representados pelo direito de propriedade, o direito de herança, o direito de acumular riqueza e capital, o direito à plena liberdade de produzir, de comprar e de vender. Por último, a perspectiva “política-jurídica” do liberalismo está calcada em princípios básicos como: consentimento individual, representação política, divisão dos poderes, descentralização administrativa, soberania popular, direitos e garantias individuais, supremacia constitucional e Estado de Direito”. (op.cit: 74)

As exposições desses núcleos auxiliam o entendimento das ambigüidades disseminadas pelas idéias liberais. As formas destas enquadravam-se à estrutura oligárquica, que tinham como fundamentos político-econômicos os princípios: patrimonialistas, conservadores e escravistas.

Estas ambigüidades, para Abreu (1988), também esteve presente com relação ao significado da proposta liberal que para a elite proprietária rural significou progresso, liberdade, modernidade e civilização – apesar de proporem a manutenção da escravidão, de não haver pressões democratizantes, de não demonstrar intenções de instalar uma república e de não falar de uma igualdade jurídica, política e social - enquanto que para a população mais pobre fraternidade, liberdade e igualdade significaram “o fim da miséria, da diferença de cor, de privilégio de fortuna e de ocupação de cargos preferenciais”.

Desde o nascimento do Estado Nacional, a variação do liberalismo brasileiro, na prática, escoltou a vida social e política da sociedade no século XIX. A independência do país que visava a autonomia acabou não passando de ficção, em decorrência dos limites liberais. A independência acabou reduzida à esfera política, não alterando em praticamente nada a realidade sócio-econômica, que se manteve com as mesmas características do período colonial.

As modificações no campo político foram concretizadas com a criação da Constituição de 1822. Com esta, a autonomia dos brasileiros aumentaram com relação aos portugueses e foi com tal codificação que a desarmonia entre o liberalismo e o conservadorismo foi solucionada. Para Lopes (2000) essa codificação era moderna, idealista e reformadora. Moderna por estar presente princípios e concepções européias (direitos civis de liberdade e propriedade). Idealista porque não passava do plano das idéias, além de desconhecer a realidade. E reformadora porque quebrava com vínculos coloniais para implantar idéias da Revolução Francesa em busca de reformar o país.

Comenta ainda, que na Constituição de 1822 é consolidada a formação do novo Estado Nacional que se caracterizava pela implantação do Poder Moderador, do Conselho de Estado, do Senado Vitalício e da Religião de Estado. A implantação destes órgãos, regulamentada na constituição, explicitava a forma conservadora, elitista, antipopular e antidemocrático do documento – reflexo das mutações do liberalismo brasileiro.

Já Wolkmer (2000), explica que, em decorrência das modificações dos princípios liberais, no Brasil o liberalismo restringiu-se aos bacharéis – a maior parte da população era analfabeta e, portanto, alienada da realidade. Ao mesmo tempo em que o Estado Nacional se forma o bacharel se transforma num profissional político. Estes intelectuais objetivavam chegar ao poder por intermédio dos partidos, lutando por causas e trazendo a ética para a esfera política. Tal profissionalização, entretanto, não trouxe à democratização da sociedade benefícios.

2. A Formação e o Perfil dos Bacharéis nas Primeiras Faculdades de Direito

Afirma Wolkmer (2000), que, antes da Independência, foi na Universidade de Coimbra, onde se formaram os primeiros bacharéis brasileiros, sendo esta a culpada pela cultura alienígena implantada, que transformou os bacharéis em uma elite privilegiada e afastada da população, calcada na superioridade e preponderância magistral.

Argumenta que, em 1808, com a chegada da Família Real no Brasil, foram fundadas as primeiras escolas e universidades brasileiras, para atender os portugueses e não por uma exigência de camponeses. A maioria, não cogitava a possibilidade de portugueses trabalharem em empregos braçais. Agora seria preciso formar no Brasil a elite dirigente do país – já que os bacharéis formados em Portugal eram preparados para servir aos interesses da administração colonial. Por isso D. João criou diversos cursos superiores.

Destaca as primeiras Faculdades de Direito no Brasil que surgiram com o intuito de atender aos anseios da elite do Estado. Estas foram fundadas em São Paulo, em 1827, e no Recife, em 1854. Esses dois Estados, na época, eram pólos com realidades culturais, sociais e econômicas bastante distintas. Sendo esta a principal razão pela diferenciação de profissionais formados no Recife e em São Paulo.

Enquanto Recife era “um centro intelectual de idéias autônomas”, onde dominava um “modelo determinista”, produtor de doutrinadores que elaboravam teorias que confinavam do descontentamento com relação à realidade, já que se encontravam afastados da oligarquia rural, São Paulo tinha como característica o liberalismo de fachada, que defendia o poder vigente, visto que era nele onde estava situada a emergente elite econômica, os formandos tinham destaque na política da nação.

Conforme Abreu (1988) em São Paulo configurou-se um curso difusor de mudanças. A criação dessa academia solidificou o governo constitucional, que visava a sustentação: de um obstáculo natural de acesso comum de todas as classes à universidade, da criação de uma elite político intelectual dirigente e da eqüidistância com as regiões.

Afirma que a Academia paulista enfrentou inicialmente alguns problemas que resultaram na ineficácia do currículo pedagógico da mesma. São exemplos de tais problemas: os ritos de avaliações, os apontamentos de freqüência, a grade curricular, a contratação de lentes e o vencimento dos lentes, o conflito de interesses entre corpo docente e discente, a grande insatisfação entre ambas as partes. Isso, no entanto, não afetou a formação de um intelectual politicamente disciplinado conforme os moldes ideológicos do Estado. Os bacharéis formados em São Paulo apresentavam-se aptos a controlar o aparato administrativo e convencimento da legalidade da forma de governo instaurada. A prática habitual do aprendizado tinha como características o desinteresse e a dispersão tanto do corpo docente como do discente, com uma visão acrítica do Direito dotada de uma concepção de mundo ingênua, voltada para a preservação do poder. O bacharel, na verdade, apresentou-se apto a exercer suas funções em decorrência da realidade da rotina extra-acadêmica.

Esses problemas da vida acadêmica de São Paulo acompanharam todo o Império recaindo sobre a estrutura didática e administrativa do Direito, surtindo efeitos nas relações sociais e no fundamento do curso em conjunto, que resultou numa formação ornamental e quase literal, sem qualquer efeito modificador do pensamento.

A profissionalização desses intelectuais foi propiciada por fora das relações didáticas entre lentes e estudantes, não tendo o Estado controlado diretamente o processo de transmissão e produção de conhecimento. As academias tinham como base uma tradição jusnaturalista dualista – preservavam a relação do Estado com a Igreja ao mesmo tempo em que sobrepuja o passado colonial. Esse foi outro fator de produção de um profissional uno, que substituía o jurisconsulto. Além disso, os estudantes acabaram interiorizando um caráter político. Faziam parte dessa mescla: o jornalismo, a literatura e a militância política. Em decorrência da tradição conservadora do ensino jurídico essas universidades tinham a incumbência de sistematizar e integrar a ideologia liberalista do Estado Nacional. Isso favoreceu a homogeneização da elite política, sendo estas a razões da eficiência destes estabelecimentos.

A Imprensa também foi importante no processo de formação dos bacharéis em Direito. Ela foi a responsável pela produção do intelectualismo desses profissionais, já que era quem produzia os debates sobre questões nacionais. Tal instituição era usada pelos acadêmicos como um órgão de propagando e divulgação de idéias e de críticas, dos hábitos da política nacional, por exemplo, voltada à população.

Coligado com a literatura o publicismo político apresentou-se como um instrumento eficaz de educação político-sentimental do acadêmico. E configurado com o complexo de prática jurídico-políticas o jornalismo se prestou a alterar as expressões do Estado. Ao lado de sua faceta repressiva, o Estado patrimonialista, adquiriu um publicismo político, uma personalidade polissêmica e tutelar. O papel do publicismo foi configurar um modelo de cidadania que decretou um equilíbrio entre as funções de razão e a expressão livre dos sentimentos – baseado no individualismo possessivo.

Em 1889, ocorreu a Proclamação da República que foi concretizada com a ascensão do federalismo. Lopes (2000) afirma que nesta época se vivia praticamente em estado de sítio em decorrência da oligarquia do café-com-leite controladora. Sendo assim, as bases orientadoras desta República, principalmente as estruturas jurídicas são as liberais, positivistas e evolucionistas. O positivismo chega por vias norte-americanas, no entanto, o Brasil se diferencia dos EUA que se baseava na jurisprudência. Aqui, era considerada lei apenas aquilo que estava positivado – pensamento de Comte.

Cita que foram feitas mudanças substanciais na concepção do direito. As primeiras modificações foram na constituição que se insere no caráter federalista e evidencia a descentralização do poder. Os EUA tiveram nas mãos as estruturas políticas e administrativas, apesar da doutrina ser de orientação francesa, as instituições políticas brasileiras foram influenciadas por este país – este foi um dos dilemas apresentados que apareceram na aplicação, a realidade brasileira preconceituosa não permitia que os direitos ultrapassassem a lei. Outras reformas ocorridas foram: a extinção do patronato, a laicização do direito e a estruturação da soberania nacional.

Expõe que foram alteradas também algumas instituições nos âmbitos societários, já que os republicanos haviam sido socializados nas faculdades de direito, adquirindo uma nova mentalidade. Foi repercutido na cultura jurídica e no discurso dos bacharéis o evento do liberalismo na República. Os liberalismos jurídico e econômico conviveram com revoluções e com uma sociedade dividida e antidemocrática. Tornava-se indispensável uma reforma no sistema de direito público que causasse a formação de um Estado regulador. Simultaneamente eram constantes os debates sobre a reforma do ensino jurídico visando incluir no curso disciplinas como história e filosofia do direito.

A República tinha a obrigação de ser tranqüila em termos políticos, visto que, seria melhor manter a realidade como se encontrava, sendo adaptado só o que estivesse em desconformidade. O autoritarismo era associado ao intervencionismo do Estado pelo imaginário jurídico que percebia a introdução do pensamento social numa época autoritária. A tradição jurídica brasileira apresenta-se, diante das situações, perplexa.

 
Conclusão

O estudo sobre a formação do bacharel em direito precisa ser ligado ao liberalismo, já que, no Brasil essa ideologia teve um alcance ético, político, econômico e filosófico. As academias aqui implantadas surgiram objetivando construir uma elite política coerente, disciplinada e obediente aos interesses estatais, não se preocupando em formar operadores do direito que produzissem a ideologia jurídica-política, que lutassem por justiça, sobretudo pelas partes menos favorecidas da população – o liberalismo brasileiro, tinha em seus princípios o conservadorismo e o patrimonialismo, com os quais objetivava-se a manutenção do status e poder para a parcela beneficiada da população da época.

Em cada período histórico em que o Brasil viveu a importância do direito foi diferente, assim também como a importância do operador do direito. No Império tal profissional teve a função de organizar um Estado Nacional, na República se encarregou de manter estática a situação do país, e hoje, o mesmo ocupa uma posição única no sistema democrático aqui adotado. Os reflexos de cada época, entretanto, encontram-se refletidos atualmente nos bacharéis formados e nas codificações. Com este trabalho constata-se as influências deixadas pelo Império e pela República. As medidas provisórias adotadas pela constituição atual, por exemplo, são vestígios do Poder Moderador que vigorou por algum tempo no Brasil. A própria constituição vigente evidencia as ambigüidades do liberalismo conservador adotado no Brasil desde no séc. XIX. Os direitos iguais a todos, que é garantido pelas letras da lei, é outro exemplo, na prática não são constatados para a maioria. Muitos brasileiros ainda são analfabetos e alienados da realidade.

Além disso, a sociedade brasileira ainda tem nos Bacharéis do Direito uma classe privilegiada, dos que mandam, estando estes situados as voltas de um Estado que se formou com um agrupamento de magistrados.

 

Referências Bibliográficas

ABREU, Sérgio França Adorno de. Os Aprendizes do Poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.19 a 246.

LOPES, José Reinaldo de Lima. As instituições e a cultura jurídica: Brasil: Séc. XIX. IN: O Direito na História: Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 311 a 360.

WOLKMER, Antônio Carlos. Estados, elites e construção do Direito nacional. IN: História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 73 a 104.