FINANCIAMENTO DE CAMPANHA E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA ÓTICA DO STF: PARA UMA ANÁLISE CRÍTICA DA RELAÇÃO DIREITO E MORAL À LUZ DO DEBATE HART-DWORKIN


Pormarianajones- Postado em 02 junho 2019

Autores: 
Alexandre de Castro Coura
Lara Santos Zangerolame Taroco
Bruna Pinheiro Destefani

A matéria publicada nesse periódico é licenciada sob forma de uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/ Revista do Direito. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index ISSN on-line: 1982 - 9957 DOI: 10.17058/rdunisc.v3i56.11774

FINANCIAMENTO DE CAMPANHA E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA ÓTICA DO STF: PARA UMA ANÁLISE CRÍTICA DA RELAÇÃO DIREITO E MORAL À LUZ DO DEBATE HART-DWORKIN

ELECTION CAMPAIGN FINANCING AND CONSTITUTIONAL JURISDICTION IN THE OPTICS OF THE STF: FOR A CRITICAL ANALYSIS OF THE RELATION BETWEEN LAW AND MORALS IN THE LIGHT OF THE DEBATE HART-DWORKIN

Alexandre de Castro Coura1

Lara Santos Zangerolame Taroco1

Bruna Pinheiro Destefani1

Recebido em: 02/04/2018 Aceito em: 10/01/2019

Resumo: As questões relativas a relação entre o direito e a moral inspiram diversos debates teóricos, os quais influenciam sobremaneira os paradigmas dominantes na teoria do direito. Dentre esses diálogos, merece especial destaque o promovido entre Hart e Dworkin, justamente porque evidencia a concepção do positivismo jurídico de Hart e, consequentemente a oposição feita por Dworkin, principalmente no que diz respeito à discricionariedade. Trata-se, portanto, de tema de primeira ordem, uma vez que são dois autores que em muito influenciam o pensamento jurídico contemporâneo e refletem a disputa de paradigmas do positivismo jurídico e do pós-positivismo com vistas a orientar a teoria do direito. A atualidade deste debate e sua consequente pertinência teórica e prática podem ser verificadas pelo julgamento da ADI 4650/DF, na qual o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o financiamento de campanhas eleitorais por empresas, sendo que os princípios foram diversas vezes mencionados como fundamento relevante estreitando as aproximações entre direito e moral. Por tais razões, o intuito do presente estudo é analisar os argumentos levantados quando do julgamento da ADI 4650/DF, que tratou de declarar a inconstitucionalidade do financiamento de campanha por pessoas jurídicas, a fim revisitar o debate Hart-Dworkin, especialmente no que diz respeito as relações entre direito e moral para perquirir quais as contribuições ofertadas por estes dois autores.

Palavras-chave: Direito e moral. Financiamento de campanha. Herbert L. A. Hart. Positivismo jurídico. Ronald Dworkin. acastrocoura@gmail.com larasantosz@hotmail.com bruunapinheiro@hotmail.com

Abstract: Matters relating to the relation between law and morals inspire various theoretical debates, which greatly influence the dominant paradigms in law theory. Among these dialogues, deserves special mention the debate between Hart and Dworkin, precisely because it shows the conception of Hart's legal positivism and, consequently, Dworkin's opposition, especially with regard to discretion. It is therefore a matter of first order, since these two authors exert great influence in the contemporary legal thinking and it reflects the dispute of paradigms of legal positivism and post-positivism in order to guide the modern theory of law. The current relevance of this debate and its consequent theoretical and practical pertinence can be verified by the judgment of the ADI 4650 / DF, in which the Federal Supreme Court declared unconstitutional the financing of election campaigns by companies, and the principles have been mentioned several times as a relevant ground, narrowing the approximations between law and morals. Therefore, this article attempts to analyze the arguments raised at the judgment of the ADI 4650/DF, which sought to declare the unconstitutionality of campaign financing by legal entities, in order to revisit the Hart-Dworkin debate, investigating the contributions offered by these two authors, especially with regard to the relations between law and morals. 1 Faculdade de Direito de Vitória – FDV – Vitória – Espirito Santo - Brasil Revista do Direito 67 Coura, A. de C.; Taroco, L. S. Z.; Destefani, B. P. Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index

Keywords: Election Campaign Financing. Herbert L. A. Hart. Law and morality. Legal Positivism. Herbert L. A. Hart. Ronald Dworkin.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Depois de quase dois anos do início do julgamento, em setembro de 2015 o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do financiamento de campanhas eleitorais por empresas, quando da apreciação da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 4650/DF. Esta temática suscitou uma série de questões relacionadas ao modelo de processo eleitoral pretendido, bem como a definição da moralidade, enquanto critério determinante para a reformulação do modelo vigente. Isso porque, de forma reiterada os ministros apontaram para um “componente de imoralidade”, que persistia no sistema adotado até então, responsável por praticamente “coagir as empresas a colaborarem com as campanhas”, como destacou o Ministro Luís Roberto Barroso. Nesse sentido, cabe ressaltar que a aproximação entre direito e moral marcou a fundamentação dos votos dos ministros na ADI 4650, sendo mencionada ora como “moralidade pública” ora como “moralidade administrativa”. É temática ressaltada tanto como argumento a ser considerado para determinar a inconstitucionalidade do financiamento privado de campanha, tanto para refutar sua inconstitucionalidade, sendo utilizado pejorativamente como “virada moralizadora”, pelo Ministro Gilmar Mendes, por exemplo. No ano eleitoral de 2018 é possível constatar que embora já tenha sido julgada, a temática da mencionada ação declaratória de inconstitucionalidade segue latente e presente por retomadas feitas pelos próprios ministros, que tornam a se valer de argumentos fundados na “moralidade pública”, por exemplo. Essa linha argumentativa, utilizada tanto para fundamentar concordâncias como para embasar divergências, apenas ressalta de forma prática que, ainda hoje, a relação entre direito e moral apresenta-se como uma das mais controvertidas no âmbito jurídico, razão pela qual inspirou diversos debates entre juristas com compreensões distintas sobre a interação desses dois campos. Justice for Hedgehogs – “Justiça para ouriços” –, lançado originalmente em 2011, foi a última obra publicada em vida por Ronald Dworkin e retoma esta temática em capítulo específico, o que só reforça a atualidade também teórica da questão, ao passo que também permite recobrar o debate entre este autor e Herbert L. A. Hart. O embate entre as compreensões destes dois juristas mostrase profícuo para a teoria do direito, tendo em vista que tratam-se de paradigmas em disputa para informar o que vem a ser, inclusive, o próprio direito. Constitui, portanto, contribuição relevante para estruturar tanto uma crítica ao positivismo de Hart, direcionada por Dworkin, quanto para estimular reflexões críticas sobre o conceito de “justificação moral” apresentado por Dworkin e questionado por Hart. Por assim ser, o presente estudo objetiva analisar, por meio de pesquisa bibliográfica e a partir dos votos divergentes na ADI 4650, as discussões a respeito do financiamento privado de campanha travadas no STF, a fim de identificar como os elementos do debate Hart-Dworkin sobre o direito e a moral ainda se fazem presentes nos fundamentos da ADI 4650. Financiamento de campanha e jurisdição constitucional na ótica do STF: para uma análise crítica da relação direito e moral à luz do debate Hart-Dworkin 68 Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index

2. O FINANCIAMENTO PRIVADO DE CAMPANHA ELEITORAL NO BRASIL E A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4650

A legislação eleitoral brasileira permite que tanto pessoas físicas quanto pessoas jurídicas promovam doações em dinheiro, ou em bens estimáveis em dinheiro, para campanhas eleitorais e também para partidos políticos. Isso se depreende, dentre outros dispositivos, do art. 81 da Lei nº 9.504/97, que preceitua que “as doações e contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais poderão ser feitas a partir do registro dos comitês financeiros dos partidos ou coligações”. Além desse dispositivo, o art. 39 da Lei nº 9.096/95 também destaca que ressalvado o disposto no art. 31 da mesma lei, o qual impõe algumas vedações, “o partido político pode receber doações de pessoas físicas e jurídicas para constituição de seus fundos”. Frente a este cenário, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4650) no Supremo Tribunal Federal requerendo que fossem declarados inconstitucionais os dispositivos da legislação eleitoral supramencionado, juntamente com os demais, que autorizam doações de empresas a candidatos e a partidos políticos. Tudo isso com vistas a tornar o processo eleitoral mais equânime, inviabilizando a infiltração do poder econômico no pleito, o que vem gerando distorções, ao passo que os candidatos mais abastados podem exercer mais influência nos resultados eleitorais. Assim sendo, o objetivo pretendido pela organização de classe é discutir a validade jurídicoconstitucional do arcabouço normativo vigente, que disciplina o financiamento de campanhas eleitorais. Ao apreciar a questão o STF julgou a ADI 4650 parcialmente procedente, na medida em que entendeu que os dispositivos legais que autorizam as contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais e partidos políticos são inconstitucionais. Porém, as contribuições provenientes de pessoas físicas reputou como válidas, podendo ser feitas de acordo com a legislação em vigor. Entretanto, em que pese tal resultado, a discussão estabelecida em plenário foi marcada por argumentações polêmicas e fundamentos controversos, dentre os quais cabe mencionar a questão da moralidade, como vetor necessário a ser seguido, a fim de repesar o modelo de financiamento de campanha adotado até então. Entretanto, até mesmo em função da complexidade da temática suscitada na ação direta, diversos foram os fundamentos que motivaram as concordâncias e as divergências dos ministros, sendo que a questão foi tema de audiência pública em 2013, convocada pelo relator, ministro Luiz Fux, e começou a ser julgada pelo Plenário em dezembro daquele ano. Em 2015 foram apresentados os votos dos ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Celso de Mello, tendo sido votos vencidos os ministros Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes. Não se pode olvidar, também, conforme aclara o próprio relator, que a ação direta versa sobre temática diretamente relacionada com o sistema político eleitoral, razão pela qual a atuação da Suprema Corte deve ser definida em sua exata medida, a fim de não interferir de forma indevida em questões que a esta não pertine. Por isso, o pronunciamento do STF a respeito da matéria, como destaca o Ministro Luiz Fux, de forma alguma “afasta o debate acerca das reformas estruturais dentro 69 Coura, A. de C.; Taroco, L. S. Z.; Destefani, B. P. Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index de um Estado, como é caso da Reforma Política, que deve ser travado nas instâncias políticas majoritárias” (BRASIL, 2015, p.35). Com vistas a tais limites, cumpre ressaltar, todavia, que cabe ao Supremo Tribunal Federal quando do exercício da jurisdição constitucional “otimizar e aperfeiçoar o processo democrático”, com o intuito de “corrigir as patologias que desvirtuem o sistema representativo, máxime quando obstruam as vias de expressão e os canais de participação política” (BRASIL, 2015, p.35). Nesta toada, o controle de constitucionalidade assume feições de um sistema regulatório, tal qual o descrito por John Hart Ely, já que em vez de “ditar resultados substanciais, o modelo apenas intervém quando o político não funciona bem” (ELY, 1980, p.102). Isso porque, o mau funcionamento afeta diretamente a confiança no processo, ocorrendo quando: (1) os de dentro estão bloqueando os canais de mudança política de modo a assegurar que continuarão no poder e que os de fora continuarão alijados, ou (2) quando, embora ninguém seja, a rigor, excluído do processo, os representantes vinculados às maiorias estejam sistematicamente prejudicando alguma minoria por conta de simples hostilidade ou recusa preconceituosa do reconhecimento de interesses comuns, e, assim, negam àquela minoria a mesma proteção assegurada a outros grupos pelo sistema representativo (ELY, 1980, p.103). A discussão que se impõe no caso do financiamento de campanha é sem dúvida temática regulatória de alto impacto no pleito eleitoral, razão pela qual o relator novamente frisa a importância de antes de tudo “decidir como decidí-la” (BRASIL, 2015, p.37), optando por apreciar o tema com vistas a identificar se o legislador atuou dentro da moldura constitucional, sem a pretensão de substituí-lo, “reformulando o modelo de financiamento de campanhas vigentes, o que aí sim, violaria o princípio da separação de poderes” (BRASIL, 2015, p.43). Adentrando especificamente a temática das doações por pessoas jurídicas, cabe ressaltar que essas entidades podem fazer doações e contribuições até o limite de 2% (dois por cento) do faturamento bruto do ano anterior ao da eleição, excetuados os casos previstos em lei, na forma o art. 81, §1º da Lei nº 9.504/97. Cumpre acrescentar, ainda, que a legislação prevê a possibilidade de doação direta por parte de pessoas jurídicas aos partidos políticos, situação em que os partidos poderão distribuir os recursos por diversas eleições, na forma dos limites impostos pela lei nº 9.096/95, art. 39, caput, e §5º, bem como resolução do Tribunal Superior Eleitoral nº 23.376/2012, art. 20, §2º, II c/c art. 25, caput e inciso II. Tais dispositivos são atacados pela ação direta proposta pelo Conselho Federal da OAB na medida em que protegem de forma insuficiente os princípios da isonomia, democrático e republicano, motivo pelo qual a entidade pugna pela declaração de sua inconstitucionalidade. Neste ponto, cumpre ressaltar o destaque feito pela Advocacia-Geral da União, em defesa da constitucionalidade das normas impugnadas, por entender que inexiste fundamento constitucional que “interdite as pessoas jurídicas de atuar de forma participativa em algum modelo de financiamento de campanha política, através de doações legalmente contabilizadas” (BRASIL, 2015, p.47). Financiamento de campanha e jurisdição constitucional na ótica do STF: para uma análise crítica da relação direito e moral à luz do debate Hart-Dworkin 70 Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index Essa mesma linha de argumentação é seguida pela Presidência da República, por meio de parecer veiculado pela Consultoria-Geral do Ministério da Justiça e Consultoria-Geral da União, asseverando a inexistência de qualquer vedação constitucional, bem como a não constatação de qualquer desequilíbrio no pleito em razão das contribuições, desde que estas venham a respeitar os limites impostos por lei. Importa aludir que a tais pareceres desfavoráveis a declaração de inconstitucionalidade, pugnam por maior controle de transparência dos gastos, ao invés de adotar a linha que veda qualquer doação proveniente de pessoas jurídicas. O relator afasta este fundamento ao recobrar o entendimento de que a participação das pessoas jurídicas não tem qualquer relevância para o pleito democrático, ao passo que estas entidades não exercem diretamente a cidadania. Do contrário, “a participação de pessoas jurídicas tão só encarece o processo eleitoral, sem oferecer, como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate” (BRASIL, 2015, p.49), sendo que os candidatos que despendam maiores recursos “em suas campanhas possuem maiores chances de êxito nas eleições” (BRASIL, 2015, p.49). Mediante tal cenário, o relator destaca fundamento que será reiterado pelos demais ministros que o acompanham, tendo em vista que demonstra, em números, como se dá a concentração dos recursos destinados as campanhas eleitorais: Deveras, as pessoas jurídicas são as grandes protagonistas no financiamento das campanhas eleitorais, respondendo pela absoluta maioria das doações. E os dados a este respeito são bastante eloquentes. De acordo com a substanciosa petição apresentada pela entidade Clínica de Direitos Fundamentais da prestigiada Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Clínica UERJ Direitos, nas eleições de 2012, por exemplo, as pessoas naturais doaram pouco menos de 5% dos recursos. Mesmo entre as pessoas jurídicas existe uma forte concentração entre os principais doadores. No pleito de 2010, por exemplo, apenas 1% dos doadores, o equivalente a 191 empresas, foi responsável por 61% do montante doado. Não bastasse, os dez principais financiadores – em geral construtoras, bancos e indústria – contribuíram com aproximadamente 22% do total arrecadado. (BRASIL, 2015, p.50). Por tais motivos, em especial pela frontal violação ao princípio da isonomia, o relator vota pela procedência do pedido, declarando a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto do art. 24 da Lei nº 9.504/97, no trecho que permite a doação por pessoa jurídica a campanhas eleitorais, bem como do art. 24, parágrafo único, e do art. 81, caput, e §1º da Lei nº 9.507/94. A declaração de inconstitucionalidade também encobre o art. 31 da Lei nº 9.096/95, especificamente no trecho que autoriza a realização de doações por pessoas jurídicas a partidos políticos. A procedência do pedido formulado pela ADI4650 é parcial na medida em que no que diz respeito as doações por pessoas naturais e uso de recursos próprios por candidatos, o relator não acata os fundamentos propostos pela exordial, entendendo que quando observados os limites estabelecidos por lei, tais doações não vulneram o princípio da isonomia, democrático e republicano. Assim sendo, pugnou o relator, pela constitucionalidade do art. 23, §1º, I e II, da Lei nº 9.504/97 e do art. 39, §5º, da Lei nº 9.096/95. 71 Coura, A. de C.; Taroco, L. S. Z.; Destefani, B. P. Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index Tecidos tais esclarecimentos a respeito do teor da ação de inconstitucionalidade, bem como alguns aspectos de sua resolução, cabe destacar que é no que diz respeito as doações promovidas por pessoas jurídicas que observações mencionando a questão da moralidade são realizadas. No que tange a abordagem desta temática, a questão da moral aparece tanto associada a concepção da moralidade pública, quando a moralidade administrativa. Este ponto merece especial destaque para este estudo, e será desenvolvido em tópico separado, com objetivo de identificar como tais argumentações são construídas, e em que medida estas podem revistar o debate Hart-Dworkin.

3. A RELAÇÃO DIREITO E MORAL A PARTIR DO DEBATE HART-DWORKIN: DO CONCEITO DE DIREITO À JUSTIFICAÇÃO MORAL

Em novembro de 1961, na Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Albert Ehrenzweig promoveu o encontro de dois juristas, no intuito de discutir temáticas afetas ao pensamento positivista. Um deles era Hans Kelsen, que proferiu palestra a respeito dos tópicos principais de sua Teoria Geral do Direito, e o outro era Herbert L. A. Hart, responsável por tecer críticas aos tópicos explanados por Kelsen. Dentre as conclusões e divergências propiciadas pelo debate (HART, 2005, p.9), certamente a discussão a respeito das possibilidades de uma crítica moral ao direito é uma das mais instigantes, principalmente considerando a manifestação de Hart a respeito desta interrelação: Finalmente, diria que em nosso debate não nos aprofundamos nessas questões bastante complexas envolvendo as relações lógicas entre Direito e Moral. Kelsen disse, contudo, que estava considerando novamente a questão das possíveis relações lógicas entre normas e, particularmente, a possibilidade de que uma norma possa logicamente entrar em conflito com uma outra. Mas devemos esperar muito sobre esse tema que considero o mais difícil. São as contribuições de Hart e o consequente diálogo entre Hart e Dworkin, que guiam a compreensão a respeito do direito e moral proposto pelo presente estudo. A seleção desse debate em especial, apesar de outros igualmente importantes – vale mencionar o próprio debate com Kelsen ou o diálogo entre Devlin e Hart -, se deu em virtude das distinções teóricas entre Hart e Dworkin, as quais tratam de evidenciar uma possível mudança de paradigma no direito contemporâneo. Por assim ser, como ressalta César Rodríguez (1997, p.18): No es posible saber si la obra de Hart habría tenido mayor influencia sin las críticas de Dworkin, o si el pensamiento de éste habría llegado a ser predominante si no hubiese nacido bajo la sombra del hartiano. Lo que se indudable es el beneficio para la comunidade filosófica y jurídica que ha venido creciendo alrededor de este debate (…) la viva discusión HartDworkin proporcionó las primeras herramientas para la comprensión de los cambios en la interpretación y la prática del derecho y continúa alimentando las creaciones de la teoría jurídica y el derecho constitucional. Frente a essa atualidade do debate, cabe explorar os pontos de divergência entre esses dois autores, tendo como destaque especial suas respectivas concepções a respeito da relação do direito com a moral, principalmente no que concerne a autonomia do discurso jurídico e sua justificação. A Financiamento de campanha e jurisdição constitucional na ótica do STF: para uma análise crítica da relação direito e moral à luz do debate Hart-Dworkin 72 Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index proposta de Hart, elucidada já nas primeiras passagens da obra “O conceito de direito” publicada em 1961, é justamente tratar da indagação: “o que é direito?” (HART, 2009, p.1). Entretanto, não se trata apenas de uma questão de definição, mas sim de descrição de todo sistema jurídico e sua respectiva disposição. A partir dessa perspectiva, Hart elabora uma crítica a teoria positivista predominante na Inglaterra, cujo principal representante era John Austin, embasado pelos trabalhos de Jeremy Bentham do fim do século XVIII (RODRÍGUEZ, 1997, p.22). A grande oposição promovida por Hart diz respeito ao conceito de direito empregado por Austin, qual seja “el derecho, em esta perpectiva, es el conjunto de órdenes respaldadas por amenazas dictadas por el soberano e ejercicio de su poder legislativo ilimitado” (RODRÍGUEZ, 1997, p.23). Mesmo compartilhando de algumas premissas medulares do positivismo de Bentham e Austin, a discordância de Hart diz respeito essencialmente a este conceito de direito. Isso porque, o critério de identificação das regras jurídicas é “o hábito dos cidadãos em obedecer a um soberano” (RODRÍGUEZ, 1997, p.23), o que não encontra esteio na teoria de Hart, em virtude de uma série de problemas. Dentre estes, cabe mencionar: a dificuldade de se identificar quem seria esse soberano e quais as suas ordens, por ser um critério muito amplo, também pode servir para identificar outras normas além das jurídicas, o que não traz qualquer progresso para uma teoria do direito que se propõe a limitar o conceito do que é jurídico. Nesse sentido, para Hart “las normas jurídicas no son ordenes ocasionales que recibimos de parte de um legislador claramente identificado que nos conmina a cumplirlas bajo la ame-naza de um castigo” (RODRÍGUEZ, 1997, p.24). O modelo austiniano, portanto, repercute em diversas perguntas que não podem ser respondidas, e é a partir das insuficiências da teoria positivista vigente que Hart elabora sua teoria para a reconstrução do positivismo. Enquanto representando do positivismo jurídico, Hart se propõe a analisar o ordenamento de forma estrutural, a fim de descrever como se dá seu funcionamento, tanto por isso afirma: “minha exposição é descritiva no sentido de que é moralmente neutra e não tem fins de justificativa” (HART, 2009, p.309). Identificar, neste cenário, implica estabelecer distinções para que o direito não seja confundido com outros âmbitos, razão pela qual Hart sublinha que seu intuito é propiciar “uma melhor compreensão das semelhanças e diferenças entre o direito, a coerção e a moral como tipos de fenômenos sociais” (HART, 2009, p.22), o que se justifica frente a proposta positivista de afastar o reconhecimento da repercussão da moral para a formulação do direito. A discordância de Ronald Dworkin (1997, p.34) em relação a compreensão de direito para Hart, e também no que diz respeito a como o direito deve ser identificado, promove o início do diálogo, materializado pelo ensaio intitulado “Pós-escrito de Hart e a questão da filosofia política” (DWORKIN, 1997). Para Dworkin, a identificação do direito deve pautar-se na interpretação da prática jurídica, não podendo constituir apenas uma descrição neutra, sendo que a implicação disso é justamente a necessidade não só de uma descrição da prática jurídica, mas também de uma justificação moral dessa prática (DWORKIN, 2007a, p.34). 73 Coura, A. de C.; Taroco, L. S. Z.; Destefani, B. P. Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index Cumpre salientar que o projeto teórico-filosófico de Dworkin é crítico ao positivismo jurídico, sendo que de maneira expressa o autor lança o debate com Hart, quando em 1977, ao destacar as insuficiências das respostas desse modelo para o casos difíceis, afirma: “quero lançar um ataque geral contra o positivismo jurídico e usarei a versão de H. L. A. Hart como alvo, quando um alvo específico se fizer necessário” (DWORKIN, 2007a, p,35). Em oposição a abordagem adotada por Hart, a teoria de Dworkin não se pretende descritiva e neutra, do contrário. A intenção não é apenas descrever, mas também justificar a prática judiciária, que deve ser conduzida levando em conta um conteúdo moral, este que “se insere no direito por meio do uso e argumentação dos princípios jurídicos, notadamente no momento da aplicação normativa” (COURA; AZEVEDO, 2014, p. 117). Nesse sentido, Dworkin quer deixar claro é que a tese das fontes, elaborada por Hart, não é neutra na argumentação, pois ela toma posição em casos complexos. Cabe destacar que Hart anui com a seguinte assertiva: “os direitos de ambas as partes devem ser identificados por meio da consulta às fontes tradicionais do direito, isto é, o juiz deve apenas aplicar a lei ao caso, sem nenhuma preocupação de justificação moral” (HART, 1997, p.130). A razão pela qual Hart descarta a possibilidade de uma justificação moral do direito, diz respeito a necessidade de diferenciação entre esses dois campos, sendo que o autor reconhece a existência de conexões, mas assevera que não existem conexões necessárias entre o conteúdo do direito e a moral (HART, 1997, p.130). Por isso, não há que se falar em relação de justificação, do contrário, o que se tem é a independência e total dissociação desses campos. Assim, em clara divergência com Dworkin, Hart frisa que esses campos não são interdependentes, tanto que pode haver direitos e deveres jurídicos que não carecem de nenhuma justificação ou força moral (HART, 1997, p.131). Segundo Dworkin, fazer tal afirmação significa colocar sob a sombra da contradição a argumentação tecida pelo positivismo. Para Dworkin, como elucida Hart ao promover sua crítica, “deve haver ao menos fundamentos morais prima facie para as afirmações acerca da existência dos direitos e dos deveres jurídicos” (HART, 1997, p.130). O positivismo jurídico, em especial o de Hart, ao negar este fundamento e ao pretender ser neutro ao tratar da justificação, adota uma compreensão de mundo “peculiar do essencialismo jurídico” (HART, 1997, p.130), ao passo que de maneira prévia reconhece que podem existir direitos e deveres sem nenhuma justificação moral. Na concepção de Hart, a teoria jurídica deveria “evitar comprometer-se com teorias filosóficas controvertidas acerca da natureza geral dos juízos morais” (HART, 1997, p.111), sendo que deve deixar tal questão em aberto. Isso porque, deve ficar a cargo do juiz, quando da aplicação do direito, “formular o melhor juízo moral possível, sobre qualquer assunto relacionado com a moral que venha a decidir (HART, 1997, p.111). Assim, em termos práticos não haveria nenhuma importância se ao decidir dado caso o “juiz está criando direito de acordo com a moral ou si, pelo contrário, é guiado por um juízo moral seu. Com efeito cabe destacar o desprendimento de Hart no que diz respeito a formulação de um “estatuto objetivo” (HART, 1997, p.111), composto por princípios. Na medida em que sempre que for incitado a decidir e a manejar estas questões, em razão da discrionariedade, o que é resta é exigir Financiamento de campanha e jurisdição constitucional na ótica do STF: para uma análise crítica da relação direito e moral à luz do debate Hart-Dworkin 74 Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index que o juiz faça uso do “melhor critério moral ao criar uma nova lei” (HART, 1997, p.112), o que não converte a moral em um lei pré-existente. As oposições de Dworkin a respeito dessa compreensão combate não somente a questão da relação do direito com a moral, mas, sobretudo, a própria aceitação da discrionariedade, feita de forma expressa por Hart. Deixar a cargo do critério moral do juiz a decisão, contraria a proposta de Dworkin. Se em Hart a solução dos casos problemáticos são resolvidos pela afirmação de que “os juízes exercitam seu poder discricionário para decidir esses casos por meio de uma nova legislação” (DWORKIN, 2007ª, p.35). Para Dworkin esse é justamente o “calcanhar de Aquiles do positivismo jurídico, incapaz de oferecer uma resposta adequada à legitima atividade jurisdicional” (COURA; AZEVEDO, 2014, p. 120), sendo que “os princípios desempenham um papel fundamental nos argumentos que sustentam as decisões a respeito de direitos e obrigações jurídicos particulares” (DWORKIN, 2007ª, p.46). Feitas tais considerações, cumpre tratar como essas duas percepções a respeito da relação do direito e moral, bem como quais as consequências decorrentes de cada modelo, e como estas podem ser compreendidas a partir discussão do financiamento de campanhas eleitorais, cujus argumentos são materializado pelo teor da ADI 4650/DF.

4. O FINANCIAMENTO DE CAMPANHA NA ÓTICA DO STF: PARA UMA ANÁLISE CRÍTICA DA RELAÇÃO DIREITO E MORAL À LUZ DO DEBATE HART-DWORKIN

Ao expor suas razões favoráveis a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos que versam a respeito do financiamento de campanhas por pessoas jurídicas, o Ministro Luís Roberto Barroso destacou dentre seus fundamentos “um componente de imoralidade” (BRASIL, 2015, p.127) presente no modelo vigente, que é responsável por subverter os recursos e fazer com que “as empresas se sintam coagidas a colaborar” (BRASIL, 2015, p. 127). Nesse cenário, para o Ministro a questão que se coloca “não é de liberdade de expressão das empresas, nem de liberdade econômica; é uma questão de moralidade pública, é uma questão de não estar sujeito a nenhum tipo de achaque” (BRASIL, 2015, p.127). Ao arrematar seu raciocínio, ainda destaca que o modelo brasileiro de financiamento de campanha não é só antidemocrático, mas também “antirrepublicano e, em certos casos, contrário à moralidade pública” (BRASIL, 2015, p.133), tendo em vista que privilegia os interesses do capital privado em detrimento dos interesses públicos. Por tais motivos, o Ministro destaca a necessidade de compreender a inconstitucionalidade dos dispositivos relacionados as doações de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais e para partidos políticos, porque afrontam o princípio republicano, democrático, bem como a moralidade pública. Essa mesma lógica argumentativa também se faz presente em outros votos, inaugurado pelo relator e também seguido pelas Ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber e pelos Ministros Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Dias Toffoli, que igualmente encontram esteio no princípio da isonomia, no princípio republicano, no princípio democrático e da moralidade para justificarem a 75 Coura, A. de C.; Taroco, L. S. Z.; Destefani, B. P. Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos que autorizam o financiamento por pessoas jurídicas de campanhas eleitorais. De modo diverso, os Ministros Teori Zavascki e Celso de Mello seguem em dissenso, pois entendem que o reconhecimento legal da possibilidade de pessoas jurídicas de direito privado contribuírem, por intermédio de doações, para partidos políticos e candidatos, no curso de campanhas eleitorais, não viola a Constituição. Isso porque, ambos asseveram que o que prejudica a observância do texto constitucional é o abuso de poder econômico, não a mera doação para partido político ou campanha. Nesta mesma linha discordante também segue o voto do Ministro Gilmar Mendes, que ressalta ainda mais a divergência, por asseverar que a “virada moralizadora”, utilizada como fundamento favorável para a declaração de inconstitucionalidade, constitui um embuste, ao passo que em sua percepção “é ingênuo crer que a corrupção cessaria pela proibição do financiamento privado” (BRASIL, 2015, p.248). Em que pese tais dissensos, cabe destacar que o que se desenha mediante a propositura da ação direita de inconstitucionalidade nº 4650 é a contestação propriamente dita de todo arcabouço normativo vigente, que disciplina o financiamento de campanhas eleitorais por pessoas jurídicas. Por intermédio desta iniciativa é discutida a validade jurídico-constitucional dos dispositivos que disciplinam as questões relativas a esta temática, contestação que ocorre com base nos princípios da isonomia, princípio democrático, princípio republicano e princípio da moralidade administrativa. Neste aspecto cabe destacar que a aproximação do direito com a moral materializa-se pela evocação dos princípios, utilizados para questionar o arcabouço jurídico vigente, que conforme entendimento preceituado pela maioria dos votos em plenário, em grande medida vulnera a isonomia e o equilíbrio do pleito eleitoral, ao passo que permite a influência desmedida do poder econômico. Assim sendo, as regras vigentes no modelo de sistema eleitoral vão de encontro aos princípios destacados pelos ministros supramencionados, razão pela qual faz-se necessário promover um repensar do modelo vigente. Quanto a este aspecto, cabe retomar o debate Hart-Dworkin, na medida em que a proposta de positivismo jurídico elucidado por Hart colocou “à disposição da comunidade jurídica o direito como um sistema de regras” (STRECK, 2012, p.225), sendo que frente a pluralidade de regras, o positivismo permite que o juiz faça a melhor escolha, o que abre margem para a discricionariedade. Então, nos casos problemáticos, “os juízes tem e exercitam seu poder discricionário para decidir esses casos por meio de nova legislação” (DWORKIN, 2007, p.35). A compreensão de Hart é receptiva a discricionariedade, e deposita nesta escolha a ser feita pelo magistrado, a solução para tratar das circuntancias em que o ordenamento não prevê, por meio de regras, ditames para solucionar o caso concreto posto. Ademais, “sob a lógica positivista, um princípio não é norma porque ele trata de uma espécie de adereço do direito” (STRECK, 2012, p.57), razão pela qual o próprio Hart reconhece no Postscriptum, que sua teoria carece de um tratamento detalhado dos princípios (RODRÍGUEZ, 1997, p.53), ponto essencial que ao fim conduz ao problema da relação ou do vínculo entre direito e moral. Financiamento de campanha e jurisdição constitucional na ótica do STF: para uma análise crítica da relação direito e moral à luz do debate Hart-Dworkin 76 Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index De todo modo, seguindo a concepção positivista, Hart justifica a ausência de apego a esta distinção dado que “as regras e princípios guardam diferenças importantes, mas entre eles não existe uma separação tangente” (RODRÍGUEZ, 1997, p.53). A proposta de Dworkin é diametralmente oposta, tendo em vista o destaque dado aos princípios, os quais “representam um papel fundamental nos argumentos que sustentam as decisões a respeito de direitos e obrigações jurídicos particulares” (2007, p.46). A sustentação propiciada pelos princípios é relevante justamente porque o “juiz não é livre para adotar o padrão que lhe convier, mas tem o dever de chegar a um compreensão” (DWORKIN, 2007, p.430), justificada por princípios. Para sua abordagem faz-se essencial, portanto, a compreensão acerca do que são princípios, bem como a diferenciação destes frente as regras. Em linhas gerais, as regras seguem uma lógica de aplicação distinta dos princípios, qual seja, a do “tudo ou nada”, pois “dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e nesse caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão” (DWORKIN, 2007, p.39). Em razão dessa necessidade de adequação, o enunciado da regra deve destrinchar de forma pormenorizada as possibilidades de aplicação, podendo ter exceções, desde que estas sejam enumeradas, listadas (DWORKIN, 2007, p.39). Já no que concerne aos princípios, os enunciados descritivos responsáveis por delimitar as hipóteses de aplicação não existem, posto que os princípios “não apresentam consequências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas” (DWORKIN, 2007, p.40). Estes, diferentemente das regras, dependem de uma decisão particular, guiada pela razão enunciada pelo princípio, o qual conduz o argumento em certa direção (DWORKIN, 2007, p.41), sendo que quando tais princípios se entrecruzam, diferentemente do que ocorre com as regras, estes não são expurgados do ordenamento jurídico. Por possuírem “a dimensão de peso ou importância” (DWORKIN, 2007, p.42), não seguem a lógica do “tudo ou nada” das regras, nos casos de conflito de dois princípio, e eventual aplicação de um deles, o outro permanece no ordenamento, tendo em vista que é necessário levar em conta a “força relativa de cada um” (DWORKIN, 2007, p.42). É por intermédio dos princípios que o tratamento da questão do direito e moral se altera em relação a teoria de Hart e Dworkin. Isso porque, para a concepção positivista de Hart, os princípios são opacos, não adquirindo papel relevante para a formulação de sua proposta teórica, sendo que o mesmo se aplica a questão da moral, igualmente relegada pelo positivismo jurídico, que a compreende como campo diverso do direito, regido por uma lógica distinta. Nesse sentido, a moral, antes “expulsa pelo positivismo, retorna – agora como uma necessidade -, não mais como corretiva/autônoma, e, sim, traduzindo as insuficiências do direito que o positivismo pretendia que fossem dar conta do mundo, a partir do mundo das regras”. (STRECK, 2012, p.229). Essa reaproximação pauta-se pela superação da moral como uma instância corretiva (STRECK, 2012, p.229), em razão de contingências históricas, dando lugar a institucionalização da moral no direito, “a partir do direito gerado democraticamente”, sendo que “essa transição da moral 77 Coura, A. de C.; Taroco, L. S. Z.; Destefani, B. P. Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index para o direito somente poderia se dar a partir de uma intersubjetividade reconhecedora de direitos recíprocos na sociedade” (STRECK, 2012, p.228). Em razão de tais conclusões é que a compreensão resultante da deliberação majoritária dos ministros do Supremo Tribunal Federal a respeito do financiamento de campanha eleitoral por pessoas jurídicas passa a ser possível. Isto porque, trata-se de uma construção pautada na contestação de um sistema de regras vigentes, que o faz por meio de um conjunto de princípios, dentre eles o princípio da isonomia, do republicano, democrático e da moralidade administrativa. O sentido de moralidade política aí empregado, não deve ser identificado, portanto, com a compreensão de moral enquanto instância corretiva do direito, ao revés, é exatamente a construção em sociedade do conteúdo mínimo dos princípios supramencionados, de modo que exista um acordo semântico no que diz respeito ao sentido destes. Cumpre destacar que as divergências entre os ministros se operam não no que diz respeito ao conteúdo dos princípios constitucionais aludidos, mas sim em sua eventual inobservância frente a uma situação fática. Dito de outro modo, existe um consenso entre os Ministros Luiz Fux e Teori Zavascki a respeito do que seja o princípio da isonomia, o ponto de divergência instaura-se na medida em que o primeiro ministro compreende que o financiamento de campanha proveniente de pessoas jurídicas prejudica por si só o pleito e consiste em abuso de poder econômico, enquanto o segundo compreende que não. Não restam dúvidas, porém, que ambos reconhecem a importância deste preceito para a ordem constitucional brasileira, sendo que a construção de seu conteúdo provem de um acordo semântico construído intersubjetivamente, e levando em conta os ditames constitucionais. É justamente essa virada, que consiste ponto crucial de distinção entre a compreensão de Hart e Dworkin em relação a moral, posto que ocorreu uma “superação das concepções positivistas a partir da reinserção da moral no direito” (STRECK, 2012, p.230), o que se operacionaliza principalmente por intermédio dos princípios, igualmente desqualificados para a concepção positivista. Cabe ressalvar que apesar dos princípios constituírem uma espécie de porta de entrada para esta reaproximação, isso também se estende as regras, tendo em vista que as regras não “subsistem autonomamente, como se fosse possível isolar o direito no interior da regra (purificada da moral)” (STRECK, 2012, p. 230). Por tais razões, a relação que Dworkin estabelece é de “justificação moral”, na medida em que inevitavelmente, seguindo a lógica do Estado Democrático de Direito, a identificação do direito não pode constituir um descrição neutra, como propõe Hart, na medida em que a implicação disso é justamente a necessidade não só de uma descrição da prática jurídica, mas também de uma justificação moral dessa prática (DWORKIN, 2007, p.34), com vistas a afastar a discricionariedade. Desta feita, para enfrentamento dessas situações, que podem ser classificadas de forma provisória como “casos difíceis”, compreender a questão dos princípios é temática de primeira ordem, cuja argumentação vincula-se a uma “amálgama de práticas, nos quais as implicações da história legislativa e judiciária aparecem juntamente com apelos às práticas e formas de compreensão partilhadas pela comunidade” (DWORKIN, 2007, p.58). Financiamento de campanha e jurisdição constitucional na ótica do STF: para uma análise crítica da relação direito e moral à luz do debate Hart-Dworkin 78 Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index O conteúdo normativo dos princípios é formulado, portanto, mediante “uma convivência intersubjetiva que emana dos vínculos existentes na moralidade política da comunidade” (STRECK, 2012, p.57). Não se tratam de conceitos puramente abstratos oriundos de uma “operação semântica ficcional” (STRECK, 2012, p.57), muito menos dos valores do julgador em questão, a serem manifestados quando do exercício do seu “melhor juízo moral” (HART, 1997, p.111). Dessa forma, os princípios são, antes de tudo, compartilhados por dada comunidade, “são vivenciados por aqueles que participam da comunidade política e que determinam a formação comum da sociedade” (STRECK, 2012, p.57), o que constitui o principal motivo pelo qual tais princípios são elevados ao status constitucional, porque são, sobretudo, deontológicos (STRECK, 2012, p.57), e seguem uma lógica binária de aplicação. Assim, são também uma forma de contestar a discricionariedade, e não naturalizá-la como consequência inevitável para resolver os casos difíceis, se é que estes podem ser assim classificados, em face da particularidade e complexidade característica de qualquer caso concreto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A edição mais famosa do poema “The Grave”, de Robert Blair (2010, p.2), foi publicada em 1808 e contou com as ilustrações de William Blake. “The Skeleton Reanimated” – O esqueleto reanimado -, uma das ilustrações de Blake, obteve especial destaque por ocupar a capa desta edição (GILCHRIST,2010, p.10). Nesta gravura, um esqueleto, que aparenta ter sido um corpo que um dia fora velado, aparece deitado, coberto por um pano, mas apesar da posição horizontal, o esqueleto projeta seu corpo para cima, como quem pretende levantar-se. A razão desse despertar é ilustrada pela representação similar a um anjo, que com uma trombeta reanima os ossos que pertenceram a um corpo vivo. A proposta de Blake ilustra o poema de Robert Blair, que em versos narra os “horrores do túmulo”. O eu lírico de Blair pleiteia levantar-se, é o esqueleto que precipita-se e deseja mover-se, sair da situação de conformação em que se encontra. Tanto a ilustração de Blake, quanto o poema de Blair, permitem, por meio da metáfora, compreender as relações que podem ser estabelecidas entre o direito e moral, principalmente no que diz respeito a proposta de moralidade pública aludida por Dworkin (DWORKIN, 2007, p.58). Isso porque, esta relação é marcada por um constate atar e desatar, no qual o direito “vê-se abalado em suas certezas dogmáticas e é reconduzido às interrogações essenciais” (OST, 2004, p.9), o que se opera pelas investidas dessa elaboração constante proveniente das relações intersubjetivas, e que constitui formas de compreensão compartilhadas pela comunidade, as quais retiram o direito da zona de conformação. É precisamente esse reconduzir, aqui identificado com a reanimação do esqueleto, que ilustra a aproximação desta concepção de moralidade proposta por Dworkin com o direito, que por meio de sua postura contestadora cuida de despertar o esqueleto dogmático do direito, tal qual a trombeta do anjo na gravura de Blake. É aturdindo as estruturas tradicionais do direito que a moral elucidada por Dworkin opera, atarantando os pilares de atuação convencional e trazendo à baila questionamentos 79 Coura, A. de C.; Taroco, L. S. Z.; Destefani, B. P. Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index que contestam, muitas vezes, o próprio arcabouço normativo estabelecido, tal qual ocorreu no caso do financiamento de campanha por pessoas jurídicas. A ADI 4650/DF é locus privilegiado para compreensão da proposta do presente estudo, qual seja a de revisitar o debate Hart-Dworkin a fim de extrair deste possíveis contribuições para a compreensão da relação direito e moral, na medida em que evidencia hipótese de contestação de todo um arcabouço normativo aplicado, até então, para dar validade ao financiamento de campanhas eleitorais e partidos políticos por meio de doações advindas de pessoas jurídicas, em face da incidência de princípios jurídicos, então fundamentados no que Dworkin define como uma moralidade pública. Esta, por sua vez, não se vincula ao conceito de moral até então elaborados por Hart, que trabalha com essa percepção como válvula de escape para o casos difíceis, sendo praticamente o exercício discricionário do melhor juízo moral do julgador em questão. Trata-se aqui de um conteúdo normativo formulado a partir da moralidade política, pautada por uma convivência intersubjetiva, sendo que tais princípios são, antes de tudo, compartilhados por dada comunidade. Nesta medida, são vivenciados por aqueles que participam da comunidade política e que determinam a formação comum da sociedade, o que constitui o principal motivo pelo qual tais princípios são elevados ao status constitucional. Por assim ser, a formulação de um modelo constitucionalmente adequado de financiamento de campanhas não resta pronto e acabado, e igualmente não depende somente do disposto no arcabouço normativo que orienta a legislação eleitoral. A constituição de um modelo de financiamento de campanha eleitoral compatível com os preceitos constitucionais deve igualmente atender os princípios que norteiam esta comunidade política, e que encontram resguardo constitucional, e tem sua moralidade vertida por intermédio de princípios constituídos intersubjetivamente. Dentre os princípios que merecem destaque quando da reformulação deste modelo encontram-se o princípio da isonomia, o princípio democrático, o princípio republicano, o princípio da moralidade administrativa, estes então mencionados quando do enfrentamento desta questão pelo Supremo Tribunal Federal, quando da apreciação da ADI 4650/DF. Tudo isso com vistas a propiciar o constante reanimar – repensar - do esqueleto dogmático do direito, que constantemente precisa ser aturdido por uma renovação interpretativa, no caso do financiamento de campanha oportunizada pelos princípios, a fim de que possa criar mecanismos capazes de coibir, ou, ao menos, amainar, a captura do político pelo poder econômico.

REFERÊNCIAS

BLAIR, Robert. The grave. New Heaven: Gale Ecco, 2010. COURA, Alexandre de Castro; AZEVEDO, Silvagner. Indeterminação do direito e discricionariedade judicial: pensando a crise do positivismo jurídico a partir de Kelsen, Hart e Dworkin. COURA, Alexandre de Castro; BUSSINGUER, Elda Coelho de Azevedo (orgs). Direito, política e constituição: reflexões acerca da tensão entre constitucionalismo e democracia à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito. Curitiba: CRV, 2014. DWORKIN, Ronald. The philosofy of law. Oxfort: University Press, 1997. ______. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007a. Financiamento de campanha e jurisdição constitucional na ótica do STF: para uma análise crítica da relação direito e moral à luz do debate Hart-Dworkin 80 Revista do Direito [ISSN 1982-9957]. Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, p. 66-80, set/dez. 2018. https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/index ______. O império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007b. GILCHRIST, Alexandre. Life of William Blake. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. HART, Hebert L. A. Visita a Kelsen. Lua Nova: Revista de Cultura e Política. São Paulo, 2005. ______. O conceito de direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. ______. Postscriptum. RODRÍGUEZ, César (org.). La decisión judicial: el debate Hart-Dworkin. Bogotá: Siglo del Hombre, 1997. OST. François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: UNISINOS, 2004. PÊPE, Albano Marcos Bastos. O que significa julgar. TRINDADE, André Karam; STRECK, Lenio Luiz (orgs). Os modelos de juiz: ensaios de direito e literatura. São Paulo: Atlas, 2015. RODRÍGUEZ, César. La decisión judicial: el debate Hart-Dworkin. Bogotá: Siglo del Hombre, 1997. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. A secura, a ira e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o estado, a economia e a autonomia do direito em tempos de crise. TRINDADE, André Karam; STRECK, Lenio Luiz (orgs). Direito e literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013. COMO CITAR ESSE DOCUMENTO: TAROCO, Lara Santos Zangerolame; COURA, Alexandre de Castro; DESTEFANI, Bruna Pinheiro. Financiamento de campanha e jurisdição constitucional na ótica do STF: para uma análise crítica da relação direito e moral à luz do debate Hart-Dworkin. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, v. 3, n. 56, jan. 2019. ISSN 1982-9957. Disponível em: . Acesso em: ______. doi:https://doi.org/10.17058/rdunisc.v3i56.11774.

 

Retirado de: https://online.unisc.br/seer/index.php/direito