A concepção de educação na primeira metade do século XIX através do Código Napoleão


PorJefter Gerson- Postado em 24 outubro 2019

Autores: 
Alan Wruck Garcia Rangel

A concepção de educação na primeira metade do século XIX através do Código Napoleão

The conception of education in the first half of the nineteenth century through the Napoleonic Code

Alan Wruck Garcia Rangel1 
http://orcid.org/0000-0001-9587-9895

 

1 Universidade de Estrasburgo, Estrasburgo, França. E-mail: alan.wruck@gmail.com.

 

 

RESUMO

O objetivo do estudo é situar o tema da educação na reflexão sobre as heranças jurídicas do Antigo Regime e da Revolução francesa na primeira metade do século XIX. Antes da educação ser encarada como uma questão social e de interesse principal do Estado, a matéria era tratada como pertencente ao âmbito doméstico e vinculada ao pátrio poder. Pretende-se, portanto, entender como o Código Napoleão regulou a relação entre pais e filhos, distribuindo direitos e deveres entre eles, e também verificar a atitude da doutrina e dos tribunais no tocante à educação dos filhos.

Palavras-chave:  Direito Civil; Pátrio poder; Educação; Liberalismo

ABSTRACT

This study aims to place the education topics in reflection about the legal inheritance of the Ancient Regime and French Revolution in the first half of the nineteenth century. Before the education is seen as a social problem, and therefore the main State’s interest, the subject was treated as an element belonging to the domestic sphere and linked to parental authority. It is intended to understand how the Napoleonic Code regulated the relationship between parents and children, distributing rights and responsibilities between them, and also check the attitude of the courts and doctrine regarding the education of children.

Keywords:  Civil Law; Paternal Power; Education; Liberalism

O artigo analisará a concepção de educação através do Código civil francês de 1804 (rebatizado em 1807 Código Napoleão). 1 Embora o termo “educação” possa, na primeira metade do século XIX, remeter à instrução em estabelecimento educacional, ele deve de preferência ser entendido de maneira ampla como toda ação dirigida ao ser humano desde o seu nascimento, englobando sua alimentação e sustento, bem como sua formação intelectual e moral. Uma leitura rápida nas edições do Dicionário da Academia francesa é suficiente para confirmar essa percepção. No final do século XVIII, o termo “educação” é definido como “o cuidado que se toma na instrução das crianças, seja no que concerne aos exercícios do espírito, seja no que concerne aos exercícios do corpo, e principalmente no que concerne aos costumes” (edições 1762 e 1798). Entretanto, na edição de 1835 a educação é definida como “ação de criar (action d’élever ), de formar a criança, um jovem homem, de desenvolver suas faculdades físicas, intelectuais e morais”. Note-se que a palavra “instrução” desaparece logo na primeira edição publicada no século XIX para ser substituída pelo termo “criar” (élever ) que remete comodamente à educação de aspecto doméstico cujo elemento moral é reforçado 2 .

A noção de educação está, assim, estritamente ligada ao contexto do liberalismo, cujo delineamento ideológico se percebe pela presença discreta do Estado neste setor. O estudo toca a questão sobre a idealização da educação doméstica no contexto do liberalismo, e serve de exemplo para se compreender os elementos incidentes na relação público e privado. Revela, ainda, os aspectos autoritário, patrimonialista e “classista” do projeto liberal, quando a educação na França é imaginada como pertencendo exclusivamente à esfera das famílias. O estudo situa-se, portanto, muito antes das leis Ferry, promulgadas no final do século XIX, e que instauram o ensino gratuito, obrigatório e laico 3 . Hoje, na França, a obrigatoriedade da instrução se estende, conforme a ordenação de 6 de janeiro de 1959 (art. 1), às crianças e jovens entre 6 e 16 anos de idade. Essa mesma ordenação (art. 3) permite, seguindo o princípio da liberdade de ensino, que a instrução da criança seja assegurada pela própria família ; e conforme o decreto de 18 de fevereiro de 1966, a inobservância da instrução obrigatória por parte dos pais constitui contravenção, e punida com multa. No Brasil, o artigo 208 da Constituição Federal de 1988 prevê a obrigatoriedade da instrução sem aventar a hipótese do ensino ser ministrado no seio doméstico pelos próprios pais. O tema da “educação domiciliar” chegou ao STF (RE 888815) que decidiu em não reconhecer essa modalidade de ensino em face da ausência de legislação infraconstitucional específica regulando a matéria.

A adoção do princípio da obrigatoriedade da instrução, que pressupõe consequentemente a sua gratuidade, tem uma longa história na França. No projeto jacobino de educação nacional 4 , ainda que tenha sido bastante criticado por atentar contra o direito natural das famílias sobre a educação dos filhos, a obrigatoriedade do ensino é mantida, e o projeto se transforma em lei pelo decreto do 29 Frimaire an II (19 de dezembro de 1793), conhecido como Lei Bouquier. Essa lei exige a permanência da criança na instituição de ensino durante ao menos três anos consecutivos, sob pena de a família ser denunciada ao tribunal de polícia correcional (art. 9) 5 . Essa lei será mais tarde descartada pelos termidorianos. A Constituição do 5 Fructidor an III (22 de agosto de 1795), que outorga a liberdade para qualquer cidadão criar estabelecimentos privados de educação e instrução (artigo 300 do Título X consagrado à Instrução Pública: “Os cidadãos têm o direito de formar estabelecimentos particulares de educação e de instrução, bem como sociedades livres, para concorrer aos progressos das ciências, das letras e das artes”), vai aniquilar com o ideal de uma educação estritamente pública, e alguns meses mais tarde a Lei Daunou do 3 brumaire an IV (25 de outubro de 1795) romperá completamente com o princípio da obrigatoriedade do ensino 6 . Essa lei será substituída por outra no governo do Consulado. Trata-se da Lei Fourcroy, votada em 10 floréal ano X (1° de maio de 1802), que coloca a instrução pública sob a tutela estatal, mas refuta a obrigatoriedade e gratuidade no ensino. A novidade dessa lei é a criação dos liceus ao lado de duas outras categorias de estabelecimentos, as escolas primárias e as escolas secundárias. Com Bonaparte, o tema da “educação e instrução pública” sai da esfera constitucional, para ser, doravante, regulamentado por leis administrativas. Notável indício de mudança de perspectiva, a educação deixa de ser matéria importante à cidadania, e resta escamoteada no setor público, seguindo, também, o interesse das famílias. Sob a Monarquia de Julho, a Carta de 1830 prevê no parágrafo 8 do artigo 69 a possibilidade de regulação da matéria por lei posterior. O respeito à autoridade paterna é, entretanto, visível no artigo 2 da Lei Guizot de 28 de maio de 1833 que pela primeira vez neste século a regulamenta: “O assentimento dos pais de família será sempre consultado e seguido no que concerne à participação dos seus filhos à instrução religiosa” 7 .

Na primeira metade do século XIX, a instrução pública não é, portanto, obrigatória, e a educação de crianças e jovens pertence ao “mur de la vie privée” 8 , devendo o Estado apenas assegurar a liberdade das famílias para decidir sobre a sua oportunidade. A educação é um sucedâneo do pátrio poder, este último intimamente ligado à ordem pública a qual interessa não somente às famílias, mas também ao Estado 9 . A educação está, portanto, vinculada de forma inelutável à “casa paterna” como o primeiro lugar, e na maioria das vezes o único, de criação, formação e instrução do filho. Para Chardon, jurista francês da primeira metade do século XIX, a casa é o único lugar onde o filho pode escutar “santas doutrinas” e receber “bons exemplos”, e caso seja diferente não haverá outro lugar, e o “mal será sem remédio” 10 . Conserva-se assim o aspecto doméstico da educação, aquele centrado nos serviços de um preceptor, típico da sociedade do Antigo Regime 11 , mas a partir de agora com as nuances e particularidades do liberalismo. No Código Napoleão, a educação recebe essa dupla influência: uma revolucionária - ligada ao fenômeno da individualização das relações privadas -, e outra tributária do Antigo Regime - da casa ou domesticidade como espaço autônomo e, portanto, atrelado ao antigo paradigma da œconomia12 . No Código Napoleão, o domicílio, a casa, o lar, o ménage , está sob o comando do chefe de família: conforme o artigo 214, o marido decide onde residir e a esposa deve segui-lo; e no artigo 374, o filho menor não pode abandonar a casa sem a autorização do pai.

Não pretendo aqui analisar a concepção de educação sob o viés da história do pensamento político, por discursos e debates parlamentares em torno do tema, mas, como descrito no título, através da interpretação e aplicação do Código Napoleão. Ao contrário do Código geral dos estados prussianos de 1794, que regulou a matéria de maneira analítica 13 , não temos no Código Napoleão um conjunto de regras precisas sobre a educação. O seu Título IX, consagrado ao pátrio poder, emprega o termo “educação” uma única vez no artigo 385 que trata do usufruto legal. Essa ausência havia sido alertada por Bonaparte à comissão redatora que segundo ele deixava indecisa muitas questões que importava resolver ; por exemplo, “se um filho, atingindo a idade do discernimento, e que não recebe uma educação conforme a fortuna de seu pai, pode demandar a ser mais bem educado” 14 .

A fim de identificar o conceito civilista de educação, e o modo pelo qual ele se opera nas relações privadas, foi necessário recorrer à doutrina 15 e à prática dos tribunais. As fontes utilizadas neste estudo foram 17 decisões proferidas pelas Cortes de Apelação entre 1808 e 1867, coletadas nos Repertórios de jurisprudência (Recueils de jurisprudence), e também a doutrina jurídica anterior à Terceira República (1870-1940). Ainda que os repertórios de jurisprudência trabalhados sejam extraoficiais 16 , e relatem as decisões de todo o território francês, eles são bem mais ricos em informações – pois, em razão da sua própria heterogeneidade, nos dão conta das particularidades locais - do que os repertórios organizados pela imprensa oficial da Corte de Cassação, nos quais o tema “educação” aparece raramente. Ademais, os repertórios trabalhados, além de ter grande circulação entre os juristas do século XIX, não se limitam à colação de decisões, e trazem no seu bojo referência à doutrina, com comentários de professores, advogados, magistrados e membros do parquet. Essas fontes, produzidas com olho vivo na prática dos tribunais, serviram perfeitamente para cumprir os objetivos da pesquisa: delimitar a concepção de educação através da interpretação e aplicação do Código Napoleão na primeira metade do século XIX, período no qual a França desconhece uma lei geral instituindo o ensino público e obrigatório. Busquei nas fontes, através da palavra-chave “educação”, entender o funcionamento da domesticidade, a distribuição de papéis e funções entre os seus membros, e a pesquisa me revelou três elementos aí implicados: os institutos jurídicos do usufruto, dos alimentos, e a noção de “rang social” que os completa.

Uma vez vinculada ao poder doméstico, a concepção de educação obedece, portanto, aos preceitos do autoritarismo e do liberalismo numa trama legítima entre pátrio poder e patrimônio. A lógica civilistica da educação está assim apoiada na “economia doméstica”, na gestão da casa, que envolve o usufruto (2), mas também os alimentos (3), e nesses institutos jurídicos intervém a ideia de “rang social” (1).

1. Educação e rang social

A expressão rang social aparece nas fontes estudadas, e numa primeira abordagem poderia remeter à ideia de “classe social” 17 . Entretanto, a melhor maneira de ilustrar a conotação de “rang social” é através do termo établissement (estabelecimento). No Dicionário da Academia francesa (edição de 1835), esse termo é definido como “estado, posto vantajoso, condição vantajosa”, ou “ação de procurar um estado, uma condição vantajosa” 18 . Percebe-se que a definição não se resume ao suporte financeiro e moral atribuído por sua família ao menor juridicamente incapaz 19 . Trata-se, verdadeiramente, de uma estratégia familiar para procurar, estabelecer, uma “condição vantajosa” aos filhos por toda a vida. O dicionário dá como exemplo as seguintes frases: “ele deu tudo de si pelo estabelecimento de seus filhos”; “este pai foi feliz no estabelecimento de suas filhas, ele as procurou um bom casamento”. Quando um pai procura um bom casamento à sua filha, ou quando estabelece o filho num ofício, ele busca preservar e proteger o nome, patrimônio e a honra da família. Facilitando os meios, dentre os vários possíveis, para que os filhos sejam “estabelecidos”, a família busca também manter o seu status quo perante os demais membros da sociedade. Como no Antigo Regime, ainda é comum no início do século XIX, se formar “pequenas dinastias” num determinado seguimento da sociedade, dominado e estabelecido por laços de parentesco durante gerações 20 . Neste ponto específico, a sociedade burguesa do século XIX se assemelha em muito à société d’ordres do Antigo Regime cujos elementos burguês e nobre se fundam para formar uma verdadeira aristocracia 21 .

Na ordem jurídica do Oitocentos francês, o estado da filiação (legítima ou ilegítima), bem como a fortuna da família, são elementos determinantes do rang social da criança, e influenciam sobremaneira na sua educação 22 . Neste sentido, é interessante notar o artigo 764 do Código civil que atribui valor social à atividade denominada artes mecânicas ou manuais 23 . Deve-se ressaltar que o aprendizado de determinado ofício constitui elemento educativo, e seguindo a lógica desse dispositivo, o artesanato ou qualquer outro trabalho manual é considerado como uma atividade conveniente e própria aos filhos ilegítimos, que se opõe a outros tipos de formação destinados aos filhos legítimos. Esse artigo deve, assim, ser compreendido com base no regime jurídico da filiação do Código civil que faz a distinção entre filhos ilegítimos (naturais, adulterinos e incestuosos) e filhos legítimos, estes últimos nascidos de uniões formadas através do casamento. Na sociedade burguesa tradicional, o casamento constitui um instrumento sutil de gestão dos bons costumes fundado no discurso de que a ordem pública deve necessariamente passar pela família. A família legítima - formada do casamento - é reputada digna, conforme a moralidade e de aceitação social; em oposição à família ilegítima considerada como inaceitável, vergonhosa, indigna. Os bons costumes e o Estado clamam pela existência de famílias legítimas. Claro que existia genitores fora do casamento e filhos nascidos fora dele – estes qualificados de bastardos – mas o ato e seu efeito eram ilícitos e ilegítimos, a concepção dessas crianças sendo considerada simplesmente como um fato social, e não gerador de efeitos jurídicos 24 . Segundo Portalis, as famílias formadas fora do casamento são “uniões vagas e incertas” de menor ou nenhum valor jurídico 25 . O casamento designa, assim, a qualidade da filiação, e constitui um elemento moralizante que influencia sobremaneira a dinâmica social da educação dos filhos.

Assim, quando os pais ensinam uma “arte mecânica” ao filho adulterino ou incestuoso, este não tem o direito de reivindicar em juízo um lugar na sucessão dos bens. Esse tipo de aprendizado constitui um elemento da educação que visa ao mesmo tempo compensar a exclusão do filho ilegítimo da linha sucessória, e proteger os bens da família legítima. Esse dispositivo ilustra bem a adaptação de elementos vindos do Antigo Regime ao contexto da sociedade burguesa: o trabalho manual é encarado como uma mão-de-obra útil capaz de auferir renda suficiente para que o filho ilegítimo possa viver de forma independente e sem ônus à família legítima. Sobre esse dispositivo do código, é interessante o aresto da Corte de Toulouse de 30 de abril de 1828 ao decidir que a profissão de costureira não é considerada como “arte mecânica”, e a filha adulterina tem o direito a reclamar os alimentos quando os pais não têm nenhum custo com o seu aprendizado, e ela não obtém rendimento suficiente para se sustentar 26 . Notável exemplo de intervenção do judiciário na esfera da família para reconhecer a individualidade de seus membros, e assim socorrer os filhos naturais.

Para decidir o tipo de educação mais conveniente à criança, os juízes se apoiam na noção de “rang social”. Os tribunais se revelam nessa matéria como protetores do “interesse da criança” 27 e, por conseguinte, da posição social que ela ocupa na sociedade. Assim, numa decisão da Corte Superior de Bruxelas 28 de 28 de janeiro de 1824, os juízes argumentam que o padrasto da criança, este qualificado de “cultivador”, e também o seu tio, “que é dono de uma taverna”, não pode dar educação conveniente a uma menor que “se encontra assim confundida nesta classe porque o seu nascimento lhe deu uma classe distinta que ela tem nas duas linhagens” 29 . A Corte ordena àquele que detém a menor em seu poder a imediata convocação do “conselho de família a efeito de indicar o estabelecimento no qual a dita menor será colocada para receber uma educação conveniente ao seu nascimento” 30 . Em outro julgamento, agora na Corte de Bordéus, proferido no dia 6 de julho de 1832, um pai é constrangido a fornecer durante dois anos “fundos proporcionais ao seu estado de fortuna para que seu filho retome os cursos de medicina” 31 . Após o ter aconselhado a seguir nesta carreira, o pai deixou de pagar a universidade de medicina que o filho já havia iniciado, e interrompido por este último ter contraído uma doença. Depois de ter sido curado, o filho desejava prosseguir, e a recusa do pai foi interpretada pelo tribunal como contrária aos “verdadeiros sentimentos”, porque ele já havia pagado “quatorze inscrições, doze à escola secundária de medicina de Bordéus, e duas à faculdade de Paris” 32 . Ademais, o tribunal constata, junto ao depoimento de testemunhas, que o filho escolheu essa formação “após os conselhos de seu pai que se ofereceu a pagar os custos necessários” para concluir os estudos de medicina. Os juízes fizeram uma apreciação social dos fatos para decidir o caso. Se, por um lado, os magistrados bordelenses levaram em conta a vontade do pai em escolher o destino educacional e profissional do filho, por outro, analisaram também o “rang social” da criança e a fortuna da família para exigir uma educação que lhe seja conveniente. Ao colocar na balança esses dois elementos, os juízes entendem que a vontade do pai em interromper o pagamento dos custos com a educação não é uma decisão razoável, e o jurista Vazeille que cita esse julgado explica que a doutrina o aprova. Este autor estima que o pai não é obrigado a “estabelecer” seus filhos (art. 204), mas considera que ele deve empregar meios para que a “criança [torne-se] apta ao exercício de uma profissão ou de um trabalho pela instrução e o aprendizado” 33 . Entretanto, para o advogado Ledru-Rollin, que também comentou esse julgado, a demanda do filho deve ser acolhida com “grande discrição, porque [fere o] princípio do pátrio poder quando o pai é forçado a prestar contas à justiça dos motivos que o levaram à recusa em continuar para o seu filho este ou outro sistema de educação que ele teria seguido até então” 34 .

Com base nesses julgados, a doutrina vai questionar nos anos seguintes se a educação do filho é uma obrigação civil capaz de acarretar aos pais uma sanção no caso de descumprimento. A opinião dos juristas sobre essa questão é bastante dividida 35 . Demolombe, chamado depois da morte de Merlin de “Príncipe da ciência do direito civil”, admite a ação pública somente em circunstâncias muito graves, justificando o seu entendimento com o seguinte exemplo: um homem, possuidor de grande fortuna, “coloca o filho como aprendiz nas mãos do mais humilde dos artesãos”, e este fato constitui caso de abuso capaz de ensejar ação pública 36 . Segundo ele, quando há grande disparidade entre a qualidade da educação procurada ao filho pelos pais e a fortuna destes, a ação em justiça é sempre possível, porque se trata de uma circunstância grave que revoga o princípio segundo o qual o ministério público não tem ação em favor da criança em matéria de educação. Em outras palavras, para Demolombe a ação em justiça contra o pátrio poder é cabível quando o “rang social” da criança não é levado em conta na escolha da sua educação. Se o pai dispõe de grande fortuna, ele estaria obrigado a procurar para seu filho a melhor educação disponível, e o fato de colocá-lo num aprendizado modesto, atentaria contra o interesse da criança, surgindo, assim, para o ministério público, o direito de constrangê-lo por meio de ação judicial. Vê-se, portanto, que no século XIX a posição social da criança é elemento importante que influencia na sua educação.

Outro elemento importante, perceptível através do Código Napoleão, que traça os contornos da concepção de educação no liberalismo burguês, é a sua relação com o instituto do usufruto.

2. Educação e usufruto

O artigo 384 do Código Napoleão prescreve que “o pai durante o casamento, e, após a dissolução do casamento, o sobrevivente do pai e mãe, terão o gozo dos bens de seus filhos até a idade de dezoito anos completos, ou até a emancipação que poderá ter lugar antes da idade de dezoito anos”. E o parágrafo 2° do artigo seguinte (art. 385) prevê: “os encargos desse gozo serão os alimentos, o sustento e a educação dos filhos conforme a fortuna deles”. Esse dispositivo atribui ponto de equilíbrio entre o dever de educar e o direito de gozar dos bens dos filhos 37 . De fato, o menor de 18 anos que ainda está sob o pátrio poder pode adquirir bens provenientes, por exemplo, da sucessão de um ascendente ou de um irmão falecido, ou até mesmo por meio de certa liberalidade que tenha sido feita a ele por parentes ou terceiros. Entretanto, e por consequência de sua incapacidade jurídica, a lei civil outorga o uso e o gozo desses bens unicamente aos pais legítimos.

Seguindo a lógica do Código civil, parte-se do princípio de que as famílias legítimas são mais confiáveis do que as famílias naturais. O “bom pai de família” só tem lugar na família legítima, e somente ele tem idoneidade para administrar os bens dos filhos, porque se pressupõe que ele os destinará à sua educação. Não se presume o mesmo ao pai natural, uma vez que este não é depositário de confiança por parte do Estado, e a lei não lhe outorga o usufruto. Entretanto, a doutrina e os tribunais tendem a reconhecer o usufruto aos pais naturais em circunstâncias bem específicas, ficando a aquisição desse direito condicionada à obtenção da tutela. O Código Napoleão é silente sobre o modo de constituição dessa tutela para administrar os bens do filho natural. A doutrina se divide: para uns, invocando por analogia o artigo 405, a tutela é legal (art. 405. “No momento em que o filho menor e não emancipado restará sem pai nem mãe, nem tutor eleito pelo pai ou mãe, nem ascendente masculino, como também quando o tutor de uma das qualidades acima mencionadas se encontrará, ou no caso de exclusões cujas serão faladas mais adiante, ou validamente escusado, ele será provido, por um conselho de família, à nomeação de um tutor”). Para outros juristas, entretanto, a tutela é dativa, pois não existe analogia e o referido artigo 405 fala somente da família legítima, devendo o tutor ser nomeado por um conselho de amigos (porque não existem parentes ao filho natural!). Os tribunais entendem que se os pais naturais não têm direito ao usufruto legal, eles teriam ao menos direito à indenização pelos cuidados com a educação nos primeiros anos da vida do filho, porque eles não estariam obrigados a retirar de seus próprios bens o rendimento necessário para cobrir essa despesa e essa regra também se aplicaria para o caso de gastos com alimentos. Para as famílias legítimas, seguindo mesma lógica, a educação deve em primeiro lugar ser financiada com os rendimentos advindos dos bens do filho, se este os possui e são suficientes para cobrir suas despesas, e somente num segundo momento se verificaria a capacidade financeira dos pais. Há, portanto, no usufruto uma relação de compensação entre patrimônio dos pais e educação dos filhos, de modo similar à relação entre tutor e pupilo.

Com efeito, a doutrina trata o usufruto como um tipo de indenização ou recompensa ofertada aos pais em razão dos cuidados prestados aos filhos até completarem 18 anos de idade. Conforme a opinião de Oudot, professor da Faculdade de Paris, o usufruto é “um tipo de recompensa” 38 ; e mesma opinião se encontra em Duranton para quem a lei concede o gozo dos bens da criança aos pais “como uma indenização pelos cuidados prestados aos filhos, e pela despesa que acarreta a sua educação” 39 . Entretanto, para Vazeille o “usufruto existe para ajudar os pais no dever de alimentar, sustentar e cuidar das crianças”. A obrigação dos pais não se extrairia da existência de uma dívida positiva que deveria ser saldada pelo usufruto, e por isto ela seria tanto em favor dos filhos legítimos como dos naturais ; ela “existe, segundo ele, em favor da criança que não tem bens adquiridos, como para aquela em que as riquezas já vieram procurar” 40 . Com exceção de Vazeille, que tenta explicar o dever de educação dos pais legítimos e naturais como um “favor para a criança”, a doutrina e os tribunais encaram a matéria do ponto de vista da relação entre usufruto e educação, seguindo um princípio de indenização, isto é, a compensação de uma obrigação que é supostamente devida pelos filhos aos pais.

Se por algum motivo o direito ao usufruto legal cessa, e o pai destina seus bens pessoais à educação do filho, ele fica autorizado a requerer futuramente o reembolso dos gastos dispensados. A Corte de Bordéus entende num julgado de 21 de maio de 1835 que há equidade quando um pai é “autorizado a levar em conta” os custos com a educação fixados “por uma justa taxa, e que eles sejam pagos não somente sobre os rendimentos dos bens que pertenceram ao menor..., mas [também] caso necessário, sobre o capital de sua fortuna” 41 . Os juízes afirmam ainda que durante certo período pai e filho “se encontravam em posições respectivas”, tal como determina o artigo 209 do Código civil 42 , e que a criança estava, por consequência, “num tal estado em que as despesas feitas em seu interesse podiam ser satisfeitas com seu patrimônio” 43 . Note-se que o artigo mencionado não trata do usufruto, mas regula matéria de alimentos, especificamente o caso de compensação entre alimentado e alimentando. O tribunal faz aqui uso da analogia, e interpreta a regra de compensação dos alimentos para decidir a questão sobre custos da educação. O usufruto é tratado sob uma perspectiva compensatória, levando em conta, por um lado, o dever do pai em investir na educação, e por outro o direito dele reter do patrimônio da criança a quantia exata que saiu do seu. O tribunal admite, assim, o reembolso dos custos de educação que serão tomados sobre os bens do filho.

Entretanto, no final da primeira metade do século XIX, há uma tendência em dispensar o sistema de compensação do usufruto e obrigar o pai a empregar seus próprios bens na educação do filho legítimo. Nove anos após o precitado julgado de 1835, numa decisão em sentido contrário, a Corte de Caen entende que “se o pai e a mãe têm o direito de empregar nos alimentos, na educação e para o sustento de seus filhos, os rendimentos dos bens pessoais destes, eles não podem, quando seus próprios rendimentos são suficientes ao sustento de sua família, tomá-los sobre os capitais de seus filhos” 44 .

A partir de 1860, os tribunais parecem ainda empregar o mesmo sistema de compensação, mas agora para proteger o direito do filho natural. Sobre essa questão, é interessante analisar o julgamento de um processo movido por uma filha natural contra a própria mãe 45 . A mãe administrava os bens deixados à filha pelo pai sem destiná-los à sua educação. A filha reclama em justiça a “repetição dos seus rendimentos” os quais a mãe, conjuntamente com seu marido, desfrutou durante o tempo em que ela morou na casa deles. A filha sustenta ainda que a partir de 11 anos de idade “ela teria preenchido o ofício de servente na casa”, e que a partir de 16 anos até à sua maioridade aos 21, ela acumulou o trabalho de servente com a atividade de costureira para se sustentar. Os rendimentos advindos dos bens da filha serviram à mãe como compensação pelos cuidados prestados durante os primeiros anos de vida da menor, mas esse direito de retenção já havia se esgotado. A “dívida” da filha com a sua mãe não havia mais razão de existir após ela ter completado 16 anos porque o período da educação doméstica já havia se esgotado e a filha podia se sustentar sozinha. Somente o rendimento percebido no período anterior a essa idade poderia ser retido a título de usufruto pelo fato da educação. É, neste sentido, o aresto de 22 de março de 1860 da Corte de Caen no qual a mãe e seu marido são contáveis em seis anos de rendimentos, correspondendo à idade de 16 a 21 anos da menor, porque, segundo a decisão, eles empregaram juntos a soma acumulada durante este período “para as suas necessidades pessoais, eles devem ser condenados solidariamente a fazer a devida restituição” 46 . Infere-se desse julgamento que o período no qual a menor ocupou função de servente doméstica fora considerado pelo tribunal como atividade educativa. Curioso notar que na mentalidade da época, a locação de serviços fazia parte da educação, sendo um forte elemento para disciplinar as crianças até elas completarem 16 anos, idade do discernimento e da responsabilidade penal 47 .

Ao lado dessa função indenizatória e compensatória, o usufruto funciona também como um elemento lucrativo para os pais. Juristas e magistrados veem no pátrio poder o fundamento para legitimar a utilização do usufruto legal para pagar dívida pessoal do pai. Aqui a função educativa do usufruto é desviada, e os bens do filho figuram como um investimento econômico. Essa visão lucrativa do usufruto é constante na prática dos tribunais, que pensam como o tribunal civil d’Alençon numa decisão de 23 de fevereiro de 1807: a “lei fala somente do pai, como sendo a pessoa que ela considera principalmente, e do nome do qual o poder é chamado paternal. Esse poder não consiste somente em autoridade sobre a pessoa da criança, ele é também a título lucrativo (art. 384). [A lei] concede ao pai somente o gozo durante o casamento dos bens dos seus filhos até a idade de dezoito anos ou até a emancipação” 48 . Um mesmo raciocínio é empregado pela Corte de Lyon em 8 de março de 1859 para recusar o usufruto aos pais naturais: se “o pai e a mãe do filho natural têm todos os deveres do pátrio poder, eles são privados da parte lucrativa” 49 . Entretanto, para Favard de Langlade, no seu Répertoire de la législation du notariat, a função lucrativa do usufruto deve ser entendida conforme o espírito do artigo 385 que obriga sua destinação à educação da criança de modo que ele somente pode ser utilizado para cobrir os credores do pai “quando os lucros ou rendimentos não ultrapassam sensivelmente os custos presumidos de educação e sustento” 50 . Para este autor, os rendimentos advindos do usufruto são “insaisissables como estando naturalmente afetados a este destino..., mas quando os rendimentos são consideráveis e bem superiores à despesa que pode exigir a educação do menor, nos parece que eles podem ser saisis, ao menos em parte, pelos credores do pai que têm somente direito ao excedente, e que os aproveitam” 51 . Mas essa visão já havia sido combatida pela Corte de Paris no aresto de 19 de março de 1823: “os juros dos capitais ou os frutos dos bens pertencentes ao menor são insaisissables pelos credores do pai que possui o gozo, porque eles são destinados ao sustento e à educação da criança” 52 . Os credores haviam alegado, conforme a doutrina de Favard de Langlade exporia mais tarde, que as necessidades do menor e a soma destinada à sua educação deveriam ser comprovadas e reconhecidas, e que a parte excedente “não poderia sem injustiça ser subtraída à ação dos credores” 53 . Note-se, em última análise, que a necessidade de intervenção da Corte para regular a matéria indica que na prática não era raro o usufruto ter sido usado com frequência para pagar dívidas dos pais.

Outro instituto do Código Napoleão indicador da concepção de educação são os alimentos.

3. Educação e alimentos

Não é raro encontrar os termos “custos de educação” e “alimentos” lado a lado nos repertórios de jurisprudência; os alimentos são comumente confundidos com o dever dos pais em educar e sustentar os filhos 54 . Os alimentos são regulamentados no Título V do Código civil consagrado ao casamento, e não no Título IX referente ao pátrio poder. O artigo 203 prevê que “os cônjuges contraem juntos, somente pelo fato do casamento, a obrigação de alimentar, sustentar e criar (élever ) seus filhos”. Os alimentos são, assim, uma obrigação contraída pelo casamento, o que significa dizer que eles resultam menos da qualidade de “pais” do que de “cônjuges”. O vínculo entre alimentos e educação se dá, portanto, através do dever geral de cuidado com o filho durante o período da vida em que ele não pode se valer da própria força. A noção de educação se aproxima aqui das ideias de sustento e criação dos filhos.

Mas os alimentos não foram organizados no Código Napoleão para socorrer todos os consanguíneos. Para os redatores de 1804, os alimentos são devidos unicamente entre os membros da família legítima, o que exclui os filhos ilegítimos. A obrigação em alimentar os filhos não recai sobre os pais naturais, para as uniões formadas fora do casamento os alimentos não são cogitados na lei civil. Entretanto, a doutrina e a jurisprudência são atentas à realidade social, e durante o século XIX os alimentos serão reconhecidos como devidos também aos filhos naturais que não dispõem de recursos financeiros próprios 55 . É, neste sentido, o argumento de Chardon: “todos os jurisconsultos reconhecem que o silêncio do código não é suficiente nem para privar os pais e mães naturais dessas crianças dos direitos que a natureza lhes deu sobre eles, nem para dispensá-los dos deveres os quais ela os encarregou perante eles [filhos naturais]” 56 .

Como já dito, em face da ausência de uma lei geral instituindo educação pública e obrigatória, a educação dos filhos é uma prática prioritariamente doméstica que é regulamentada no Code de 1804 por um princípio de compensação. Entretanto, os alimentos parecem, à primeira vista, fugir dessa relação de compensação porque eles são interpretados como uma dívida natural, um direito geral e universal devido a todos em tempo de necessidade 57 . Essa visão jusnaturalista dos alimentos é racionalizada no Código Napoleão para encontrar abrigo ao lado de outra concepção, esta aqui doravante entendida como obrigação civil equivalente àquela proveniente do contrato cujos princípios se encontram na lei. Esta última concepção inscreve os alimentos no princípio de compensação - pelos cuidados prestados nos primeiros anos da vida do filho -, e ela é recorrente nos tribunais quando se questiona se os alimentos são devidos ou não aos filhos pelos pais; enquanto que a concepção de dívida natural fica restrita aos casos em que os filhos têm o dever de fornecer alimentos aos pais. Essas duas concepções dos alimentos – dívida natural e obrigação civil – irão pautar a dinâmica da relação entre pais e filhos no século XIX no tocante à educação. Por outras palavras, uma vez confundidos aos custos de educação, os alimentos são para os pais menos uma dívida natural do que um encargo, uma obrigação civil 58 .

Se analisarmos os dispositivos do Código de 1804 que tratam da matéria sob o ponto de vista das pessoas que recebem e fornecem os alimentos, essa diferenciação entre pais e filhos fica bastante saliente. O artigo 205 prescreve que “as crianças devem alimentos a seus pais e mães, e aos ascendentes que os necessitam” 59 ; enquanto que o artigo 207 apenas evoca que essa obrigação é recíproca entre os membros da família 60 . É notável a terminologia empregada pelo legislador, as crianças têm o “dever” de alimentos, enquanto que os ascendentes têm simples “obrigação” – o código não menciona de maneira explícita o pai e a mãe. O encargo alimentar imposto aos ascendentes se assemelha a uma obrigação stricto sensu (e não a um direito natural das crianças), o que coloca os alimentos no quadro jurídico dos contratos. É neste sentido que os artigos seguintes estabelecem uma regra de proporcionalidade: os alimentos são devidos na proporção da fortuna daquele que está obrigado a fornecer e na proporção da necessidade daquele que tem o direito a receber, ao mesmo tempo em que desincumbe da obrigação ou autoriza a sua redução quando aquele que recebe “é recolocado num tal estado que um não possa mais dar ou que o outro não tenha mais necessidade em todo ou em parte” 61 . Essa regra de proporcionalidade leva em conta o fato de que os alimentos são devidos aos filhos unicamente na fase da vida em que eles são incapazes de se sustentar sozinhos; mas os alimentos são devidos aos pais a qualquer tempo pelos filhos, bastando provar a sua necessidade. É neste sentido o entendimento da Corte de Nîmes no aresto de 1 de maio de 1826, decisão frequentemente citada na doutrina: se o artigo 203 “impõe ao pai e a mãe a obrigação de fornecer gratuitamente o alimento e manutenção dos seus filhos, o artigo 209 traz a essa regra esta restrição razoável que é somente quando os filhos não têm rendimentos próprios suficientes para fornecer” 62 . Esse raciocínio é próprio ao século XIX que vê o filho de preferência como repositório de deveres com relação aos pais, e menos como sujeito de direitos 63 .

Assim, o tribunal de Colmar em 5 de janeiro de 1810 decide manter o direito da mãe viúva a receber os alimentos fornecidos por seu filho mesmo após ela contrair novo matrimônio 64 . O filho alegava o artigo 206 que prescreve a interrupção dos alimentos fornecidos pelos genros e noras aos sogros e sogras quando estes últimos contraem um segundo casamento 65 . Ao contrário do que é alegado pelo filho, o tribunal entende que os artigos 209 e 214 devem ser observados para regulamentar o caso concreto, e que nesse último artigo está previsto que cabe ao marido em razão do matrimônio fornecer à esposa “tudo o que for necessário para as necessidades da vida”. Conforme a decisão, o filho não foi capaz de justificar que sua mãe, contraindo um segundo casamento, “se encontre na posição de não precisar mais da pensão a ela adjudicada; ele tampouco justifica que o segundo marido de sua mãe tenha bastante recursos para sustentar ele próprio e a sua mulher; ele até confessa implicitamente que sua mãe é sem meios...” 66 .

Tem também direito aos alimentos, segundo um julgamento de 12 de abril de 1867, prolatado no tribunal de Bordéus, que faz aplicação do artigo 205 e seguintes do Código civil, o pai contumaz condenado à morte civil 67 . Os juízes bordelenses explicam que os alimentos “tomam sua raiz e sua razão de ser no direito natural, e que se o pai cessa de existir diante da lei, essa ficção jurídica somente produz efeitos relativamente ao exercício dos direitos civis, sem atentar aos direitos naturais que estão ligados à sua vida material” 68 . Aqui os bens do filho funcionam como um apoio financeiro aos pais. Na realidade, o sistema jurídico da época favorecia esse raciocínio, porque quem estava civicamente morto ficava com dificuldade para obter meios de subsistência através do trabalho.

Uma ação judicial muito comum movida nos tribunais consiste no pedido de acolhimento dos pais na casa dos filhos a efeito de alimentos, e em substituição ao fornecimento de uma pensão. Em respeito ao pátrio poder, o tribunal de Besançon, em decisão de 14 de janeiro de 1808, entende que os filhos “não podem forçar o pai e a mãe a vir receber os alimentos na sua casa” 69 . Uma decisão semelhante no tribunal de Poitiers em 25 de novembro de 1824, na qual o filho pretendia cessar o fornecimento dos alimentos sob alegação de que o pai deveria morar com ele 70 . O tribunal lembra que “a lei civil e a lei natural impõem aos filhos a obrigação de fornecer alimentos ao pai e mãe quando eles necessitam”, sobretudo quando o pai se encontra num “estado de cegueira completa, de idade bem avançada, e não tem nenhum meio de subsistência” 71 . Diz ainda a decisão do tribunal que “os filhos não podem se dispensar de pagar ao pai e à mãe uma pensão alimentar, oferecendo de recebê-los na casa deles para lhes fornecer os alimentos”, e que além do mais, devido à posição atual do pai de casado pela segunda vez, lhe constranger a morar com os filhos seria reduzi-lo “a dura necessidade de abandonar sua mulher, de violar os deveres impostos ao marido pelo artigo 214 do Código Napoleão, e de sucumbir ao peso da mais horrível miséria” 72 . Ao que parece, esse entendimento dos tribunais em refutar o acolhimento dos pais na casa dos filhos, sob o argumento de afronta aos princípios do pátrio poder, é unânime na jurisprudência da primeira metade do século.

Com relação aos filhos, a família pode também recorrer a outros modos de compensação. O filho pode, como já dito anteriormente, prestar serviços domésticos ou exercer atividade remunerada em benefício dos seus pais. No caso do menor exercer atividade que lhe forneça renda suficiente para o seu sustento, essa renda pode ser considerada como alimentos, e independente da fortuna dos pais. Até a lei de 22 de março de 1841, que regulamenta pela primeira vez o trabalho infantil, crianças em tenra idade podiam trabalhar nas oficinas mediante simples autorização dos pais 73 . Se a criança que trabalha obtém renda, essa atividade é considerada como educativa, e o fornecimento dos alimentos não é exigido dos pais. Ademais, os pais usam e desfrutam da renda do filho menor como se deles fossem, como um meio de compensar o fato da educação. Segundo Magnin, no seu Traité des minorités: “...tudo o que o filho de família adquire na casa paterna com o bem ou o dinheiro do pai, mesmo com uma parte da sua indústria ou de seu trabalho, pertence inteiramente ao pai em proprietário e em usufruto” 74 . Por outro lado, se a criança presta algum serviço doméstico para seus próprios pais, essa atividade é entendida como parte de sua educação, sem que a criança receba qualquer renda em seu proveito. Fora das fábricas e dos ateliers, não era raro encontrar crianças trabalhando como serviçais na casa de seus pais 75 . Isto se explica por um espírito comunitário, existente principalmente em família extensas, com mais de três gerações, ou em famílias recompostas em que os filhos de um primeiro casamento juntam-se a outros do segundo. Isto também se explica por um tipo de domesticidade baseada na divisão e repartição de tarefas em que o afeto entre os membros é norteado por um princípio de compensação entre gerações. É neste sentido que os juízes da Corte de Caen afirmam numa decisão de 29 de março de 1844 que o filho nascido do primeiro casamento “deve render os serviços domésticos aos cônjuges”, e que este fato constitui uma circunstância que demonstra o cumprimento de “deveres e às inspirações da ternura maternal” 76 .

No caso do filho maior, para ele obter os alimentos, deve-se provar a necessidade em juízo, porque ele já é civilmente capaz. Isto é resultado de um raciocínio feito a partir da teoria dos contratos, segundo o qual o credor deve provar a existência da dívida nos tribunais. Aqui, mais uma vez os alimentos não são encarados como uma dívida natural, mas como uma obrigação civil. Conforme a decisão da Corte de Paris: a obrigação do pai e da mãe em alimentar o filho é reduzida ao caso único de impossibilidade do filho em “prover pessoalmente a sua subsistência” 77 . O filho maior que recebe educação e “ensino necessário para o exercício de uma profissão útil..., não é fundado exigir do pai e mãe uma pensão alimentar… qualquer que seja a posição de fortuna dos seus ascendentes”. No caso em espécie, o filho com idade de 30 anos, e pertencendo a uma família rica, havia deixado a casa paterna para viver em Bruxelas, onde fez formação em literatura. Na decisão, o tribunal sustenta que “o estado de penúria no qual ele pretende se encontrar tem por causas principais sua instabilidade, seus hábitos para a desordem e o ócio, e sua repugnância a empregar-se utilmente por ele mesmo; que, alhures, assim como reconheceram os primeiros juízes, ele está na idade e no estado para ser autossuficiente” 78 . O jurista que cita essa decisão afirma que este julgamento é um ponto constante na doutrina, e que as dificuldades para resolver a questão da obrigação dos pais em fornecer alimentos para seus filhos maiores se trata de uma apreciação das circunstâncias particulares de cada caso 79 .

CONCLUSÃO

Com o fito de assegurar o mínimo de neutralidade axiológica - para usar uma expressão weberiana – priorizou-se ao longo do estudo a análise descritiva aliada com ferramentas metodológicas que são próprias à história do direito. Entretanto, à guisa de conclusão, convém fazer uma rápida análise crítica do tema e indicar algumas chaves de reflexão.

Face à ausência de uma política de educação pública e nacional, uma vez que o tema está mergulhado no contexto da primeira metade do século XIX, a educação foi pensada como parte integrante do pátrio poder sem ter sido, entretanto, regulamentada de maneira explícita no Código civil de 1804. A família aparece como uma instância virtuosa, um grupo “natural” de indivíduos, encarregada de inúmeras funções, dentre as quais a de educar e administrar o patrimônio dos seus membros. A função de educar está, assim, intimamente ligada aos valores e mentalidades do liberalismo cuja dinâmica “econômica” inscrita no Código Napoleão é perceptível através dos institutos do usufruto e dos alimentos. Nesse contexto de educação privada, o patrimônio e a “classe social” da criança são elementos que influenciam sobremaneira na função de educar, tanto é verdade que os tribunais se fundam no princípio de compensação e também na noção de rang social para solucionar os litígios. Os institutos do usufruto e dos alimentos são racionalizados e interpretados no sentido de compensar economicamente os pais do dever de educação, o qual pressupõe uma indenização pelos cuidados prestados durante os primeiros anos de vida dos filhos.

Restou demonstrado que o artigo 4 da precitada lei de 1882 conservou um resquício da educação doméstica, ao vinculá-la ao pátrio poder, mas a concepção de educação deixou a esfera exclusiva da família para ganhar a esfera pública através da noção de instrução. Ademais, a implementação da instrução pública, obrigatória e gratuita durante a Terceira República anuncia a consolidação do Estado-providência e o reconhecimento do princípio da igualdade na educação, interferindo na relação até então existente entre patrimônio e educação, para provocar verdadeiro aumento da alfabetização de crianças. Este processo histórico de desconstituição do Estado-gendarme, que se verifica no final do século XIX, está atrelado à depreciação do autoritarismo na família – que culminará com a lei de 24 de julho de 1889 80 -, em paralelo ao advento de políticas sociais, mormente quanto à questão da criança moral e materialmente abandonada.

Percebe-se, enfim, que a promoção da educação pública não significou o aniquilamento da educação doméstica, esta última se mantém até hoje justificada pelo princípio da liberdade no ensino. Liberdade para educar de um lado, igualdade na educação de outro, o ajustamento desses dois princípios na legislação francesa redirecionou o debate sobre a “educação domiciliar” para a questão do cumprimento pelas famílias da função de instruir e do seu efetivo controle por parte do Estado.

1 As ideias aqui desenvolvidas surgiram durante minha pesquisa de doutorado e serviram de suporte teórico à tese defendida, cf. Le droit de correction de l’enfant (1804-1935). Tese – doutorado em História do Direito. Universidade de Estrasburgo, França, 2016. Todas as traduções aqui realizadas foram feitas pelo próprio autor e são de sua responsabilidade.

2Dictionnaire de l'Académie française. Paris: 5a ed., t. 1, J. J. Smits, 1798, p. 465, V° Éducation; Paris: 6a ed., t. 1, Firmin-Didot frères, 1835, p. 609, V° Éducation.

3Lei de 16 de junho de 1881 estabelecendo a gratuidade absoluta do ensino primário nas escolas públicas, art. 1. “Não será percebida alguma retribuição escolar nas escolas primárias públicas, nem nas salas de asilo público. O preço da pensão nas escolas normais é suprimido”. Lei de 28 de março de 1882, art. 4. “A instrução primária é obrigatória para as crianças dos dois sexos com idade de seis anos revoltos ; ela pode ser dada seja nas escolas públicas ou livres, seja nas famílias, pelo pai de família ou pela pessoa que ele tenha escolhido”.

4O Plano de Educação Nacional de Le Peletier, sustentado e defendido por Robespierre, está calcado no modelo de educação espartana que prioriza a formação moral dos cidadãos cujo caráter estatal e nacional fica acentuado com a obrigatoriedade do ensino, cf. ROSSO, Maxime. Les réminiscences spartiates dans les discours et la politique de Robespierre de 1789 à Thermidor. Annales historiques de la Révolution française. Paris : juillet-septembre 2007, p. 69. ( ROSSO, 2007 )

5Décret relatif à l'organisation générale de l'instruction primaire (GREARD, O. La législation de l'instruction primaire en France depuis 1789 jusqu'à nos jours. Paris: Typographie Delalain frères, t. 1, 1874, p. 26-30).

6 Um resumo rápido sobre os projetos em MASSON, Émille. La puissance paternelle et la famille sous la Révolution. Tese-doutorado em Direito. Université de Paris, 1911, notadamente o Capítulo 2, p. 118 e s. Ver também SICARD, Germain. La Révolution française et l’éducation. Recueils de la société Jean Bodin pour l'histoire comparative des institutions. Bruxelles: t. XXXIX, L'enfant, 5ème partie (Le droit à l'éducation), 1975, pp. 265-295.

7 CHEVALLIER, Pierre. Le droit de l'enfant à l'éducation en france aux XIXe et XXe siècles. Recueils de la société Jean Bodin pour l'histoire comparative des institutions. Bruxelles: t. XXXIX, L'enfant, 5ème partie (Le droit à l'éducation), 1975, p. 301

8 PERROT, Michelle. L'enfance révolutionnée par la Révolution? Parents et enfants au XIXe siècle. LÉVY, Marie-Françoise (org.). L'enfant, la famille et la Révolution française. Paris: Olivier Orban, 1990, p. 402. ( PERROT, 1990 )

9 Sobre a relação entre pátrio poder e ordem pública: na França, cf. MARTIN, Xavier. À tout l’âge ? sur la durée du pouvoir des pères dans le Code Napoléon. Revue d’histoire des facultés de droit et de la science juridique. Paris: nº 13, 1992, pp. 228-301; do mesmo autor, Fonction paternelle et Code Napoléon. Annales historiques de la Révolution française. Paris: vol. 305, n° 305, 1996, p. 465-475; para Itália, CAVINA, Marco. Il padre spodestato. L'autorità paterna dall'antichità a oggi. Roma-Bari: Editori Laterza, 2007. No espaço luso-brasileiro, o fortalecimento da autoridade paterna é um dos traços marcantes da legislação pombalina, cf. WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. O direito de família no mundo luso-brasileiro (períodos pombalino e pós pombalino). Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: 160 (404), jul.-set. 1999, pp. 537-546. (MARTIN, 1996 ) ( CAVINA, 2007 ) ( WEHLING; WEHLING, 1999 )

10 CHARDON, Olivier Jacques. Traité des trois puissances, maritale, paternelle et tutélaire. Bruxelles: t. 2, Société Typographique Belge, 1843, p. 1.

11 RANGEL, Alan Wruck Garcia. Tous sont égaux sous le fouet. Étude de quelques aspects du droit de correction paternel à la fin de l’Ancien Régime (XVIe-XVIIIe siècles). Saarbrücken : éditions universitaires européennes, 2014, p. 103 e s.; para o Brasil, cf. VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A educação doméstica no Brasil de oitocentos. Revista de Educação em Questão. Natal: v. 28, n. 14, jan./jun. 2007, p. 27. ( RANGEL, 2014 ) ( VASCONCELOS, 2007 )

12 SEELAENDER, Airton Cerqueira-Leite. A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário jurídico na transição brasileira do antigo regime à modernidade. Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: 178 (473), jan./mar. 2017, p. 330. ( SEELAENDER, 2017 )

13 No Título II do Código prussiano (Dos direitos e deveres recíprocos dos pais e dos filhos), o termo educação aparece 45 vezes, cf. Code général pour les états prussiensTraduit par les membres du bureau de législation étrangère, et publié par ordre du Ministre de la justice . Paris: t. 2, Imprimerie de la République, an IX, p. 225 e s.

14 FENET, Pierre Antoine. Recueil complet des travaux préparatoires du Code civil. Paris: t. 10, Videcoq, 1827, p. 484-485. ( FENET, 1827 )

15 A ausência no Code de 1804 de dispositivos claros para regular a educação inquietava os jurisconsultos, e a longa dissertação redigida por Sirey em 1830 no tema é uma tentativa de trazer soluções em face da lacuna deixada na legislação, cf.SIREY, Jean-Baptiste aimé AugusteRecueil général des lois et des arrêts : en matière civile, criminelle, commerciale et de droit public. Paris: Sirey , vol. 9, 2a parte, pp. 337-343. Doravante: Sirey .

16Ver bibliografia das fontes ao final do texto.

17 Reservo-me aqui de qualquer crítica quanto ao anacronismo da expressão “classe social”. Não é inútil dizer que durante a primeira metade do século XIX tal ideia está totalmente desvinculada de qualquer valoração pejorativa, atribuída, sobretudo, após os estudos de Marx, ao paradigma da “luta de classes”. A conotação “classista” absorvida na locução “rang social” tem suas especificidades que abordarei neste tópico.

18Dictionnaire de l'Académie françaiseop. cit ., 1835, p. 684, V° Établissement.

19 A menoridade civil se termina aos 21 anos (art. 388), mas o código prevê outros tipos de menoridade, como aquela para contrair casamento que é fixada aos 25 anos para os homens (art. 148).

20 Isto se deve à baixa mobilidade intergeracional da sociedade francesa no século XIX, quer dizer a transição do indivíduo de uma posição social a outra para se diferenciar daquela de seus pais. Sobre a questão, cf. BOURDIE, Jérôme et alii. Mobilité intergénérationnelle du patrimoine en France aux XIXe et XXe siècles. Économie et statistique . Paris : n° 417-418, 2008, pp. 173-189.

21 DAUMARD, Adeline. Noblesse et aristocratie en France au XIXe siècle. Les noblesses européennes au XIXe siècle. Rome: Actes du colloque de Rome, 21-23 novembre 1985, École Française de Rome, 1988, pp. 81-104.

22 ARNAUD, André-Jean. Essai d'analyse structurale du Code civil français. La règle du jeu dans la paix bourgeoise. Paris : LGDJ, 1973, p. 66.

23Código Napoleão, art. 764. “Quando o pai ou a mãe da criança adulterina ou incestuosa lhe terão ensinado uma arte mecânica, ou quando um deles terá assegurado os alimentos em vida, a criança não poderá levantar alguma reclamação contra a sua sucessão”.

24 MULLIEZ, Jacques. Droit et morale conjugale: essai sur l'histoire des relations personnelles entre époux. Revue historique. Paris : n° 563, juill.-sept. 1987, pp. 35-106.

25 PORTALIS, Jean-Étienne. Discours et rapports sur le code civil, Paris: Presses universitaires de Caen, 2010, p. 104.

26 Corte régia de Toulouse, 30 de abril de 1828 (Sirey , vol. 9, p. 73).

27 PERROT, Michelle. Sur la notion d'intérêt de l'enfant et son émergence au XIXe siècle. Actes. Paris: n° 37, 1982, pp. 40-43. Sobre as metamorfoses desse conceito elástico, cf. CHAUVIERE (M.). L'introuvable intérêt de l'enfance... . Le droit face aux politiques familiales. Évaluation et contrôle de l'intérêt de l'enfant dans et hors de sa famille. Colloque du 30 janvier 1982. Paris: Laboratoire d'analyse critique des pratiques juridiques, Université Paris 7, 1982, p. 53-64.

28 O Código civil francês esteve em vigor nos territórios conquistados por Napoleão Bonaparte, como é o caso da Bélgica.

29 Corte superior de Bruxelas, 28 de janeiro de 1824 (DALLOZ, Victor Alexis Désiré. Jurisprudence du XIXe siècle ou recueil alphabétique des arrêts et décisions des cours de France et des Pays-Bas, en matière civile, criminelle, commerciale et administrative. Bruxelas: t. 27, Chez R. Tablier, 1832, pp. 339-340).

30Ibid., p. 340. Seguindo a tradição jurídica francesa, a tutela das crianças órfãs de pai, quando a mãe se casa pela segunda vez, é decidida pelos parentes próximos reunidos em conselho (art. 395).

31 Corte de Bordéus, 6 de julho de 1832 (LEDRU-ROLLIN, Alexandre-Auguste. Journal du palais. Recueil le plus ancien et le plus complet de la jurisprudence française . Paris: t. 24, F. F. Patris, 1841, p. 1251). Doravante: Journal du palais .

32Ibid., p. 1251.

33 VAZEILLE (F. A.). Traité du mariage, de la puissance maritale et de la puissance paternelle. Paris: t. 2, Nève, Librairie de la Cour de cassation, 1825, p. 282.

34Journal du palais, t. 24, 1841, p. 1251.

35 Uns se pronunciam pela negativa, supondo que uma ação pública é inadmissível em matéria de educação (MARCADÉ, Victor-NapoléonÉlements du droit civil. Paris: t. 2, Librairie de jurisprudence de Cotillon, 1847, Tit. IX, p. 181), outros entendem que ela é sempre admissível na situação específica dos artigos 384 e 385 do Código civil, quando o pai detém o usufruto legal dos bens do filho, porque neste caso ele deve sempre destiná-los a sua educação (DALLOZ, Victor Alexis Désiré. Jurisprudence générale du royaume ou recueil périodique et critique de jurisprudence, de législation et de doctrine en matière civile, commerciale, criminelle, administrative et de droit public. Paris: t. 31, au bureau de la Jurisprudence générale, nouvelle édition, 1854, p. 327).

36 DEMOLOMBE, Jean-Charles. Cours de Code Napoléon, 4. Du mariage et de la séparation de corps. Paris: t. 2, A. Durand et L. Hachette, 1854, Chap. 6, n° 9, p. 219.

37 O usufruto pressupõe uma separação entre o direito de propriedade e o usos e frutos dela, ou seja, o direito de usar e desfrutar (art. 578). cf. PROUDHON, Jean Baptiste Victor. Traité des droits d'usufruit, d'usage, d'habitation et de superficie. Bruxelles: t. 1, Librairie de jusrisprudence de H. Tarlier, 1833, prefácio.

38 OUDOT, Julien. Du droit de famille, ouvrage publié après la mort de l’auteur et conformément a ses intentions par Ch. Demangeat. Paris: A. Marescq ainé, libraire-éditeur, 1867, p. 336.

39 DURANTON, Alexandre. Cour de droit français suivant le Code civil . Bruxelles: t. 2, Société typographique belge, 1841.

40 VAZEILLE, op. cit., p. 166.

41 Corte de Bordéus, 21 de maio de 1835 (Sirey, 1836, 2a parte, p. 19).

42Código Napoleão, art. 209. “Quando aquele que fornece ou aquele que recebe alimentos é recolocado num tal estado que um não possa mais dar, ou que o outro não tenha mais necessidade em todo ou em parte, o desencargo ou a redução pode ser demandado”.

43Sirey, 1836, 2a parte, p. 19.

44 Corte de Caen, 29 de março de 1844 (Sirey, 1844, 2a parte, p. 348).

45 Corte de Caen, 22 de março de 1860 (Sirey, 1860, 2a parte, pp. 408-409).

46Ibid., p. 409.

47Conforme o art. 66 do Código penal francês de 1810.

48 Tribunal civil d'Alençon, 23 de fevereiro de 1807 (MERLIN, Philippe-Antoine. Répertoire universel et raisonné de jurisprudence. Paris: t. 9, Garnery, 1826, p. 432, V° Éducation).

49 Corte de Lyon, 8 de março de 1859 (Journal du palais , t. 71, 1860, p. 335, nota).

50 FAVARD DE LANGLADE, Guillaume J. Répertoire de la législation du notariat . Paris: t. 2, Librairie Firmin Didot, 1830, p. 155.

51Ibid., p. 155.

52 Corte régia de Paris, 19 de março de 1823 (Journal du palais, t. 17, p. 977).

53Ibid., p. 977.

54 Para uma visão de conjunto sobre o direito aos alimentos e de sua construção doutrinal, cf. MEYER, Christophe. Le système doctrinal des aliments. Contribution à la théorie générale de l'obligation alimentaire légale . Tese- doutorado em História do Direito. Universidade de Paris X. Paris, 2003.

55 BIGOT, Grégoire. La jurisprudence au secours de l'alimentation des enfants illégitimes au XIXe siècle. In: PLESSIX-BUISSET, Christiane (org.) Ordre et désordres dans les familles. Études d'histoire du Droit. Rennes : PUR, 2002, pp. 125-147.

56 CHARDON, op. cit. Paris: t. 2, Chez Cotillon libraire, 1842, p. 68.

57 MEYER, op. cit., p. 23.

58 ARNAUD, op. cit., p. 66.

59Código Napoleão, art. 205. “Os filhos devem alimentos a seus pais, e outros ascendentes que estão necessitados”.

60Código Napoleão, art. 207. “As obrigações resultantes desses dispositivos são recíprocas”.

61Código Napoleão, art. 208. “Os alimentos são somente fornecidos na proporção da necessidade daquele que os reclama, e da fortuna daquele que os deve”.

62 Corte de Nïmes, 1° de maio de 1826 (DALLOZ, Victor Alexis Désiré. Jurisprudence générale ou répertoire méthodique et alphabétique de législation, de doctrine et de jurisprudence en matière de droit civil, commercial, criminel, administratif, du droit des gens et de droit public. Paris: au Bureau de la Jurisprudence générale, 1854, V° Mariage, p. 328).

63 Veja, por exemplo, o artigo 371 do Código civil que fixa o dever natural de respeito e honra aos pais como uma petição de princípio aos filhos: L'enfant à tout âge doit honneur et respect à ses père et mère (“A criança, de qualquer idade, deve honra e respeito ao teu pai e a tua mãe”).

64 Corte de Colmar, 5 de janeiro de 1810 (Journal du palais , t. 18 (1810), 1857, p. 13-14).

65Código Napoleão, art. 206. “Os genros e noras devem igualmente, e nas mesmas circunstâncias, alimentos aos seus sogros e sogras; mas essa obrigação cessa, 1° quando a sogra contraiu segundas núpcias, 2° quando o cônjuge que produziu a afinidade, e os filhos provenientes de sua união com o outro cônjuge, são falecidos”.

66Journal du palais, op. cit., p. 14.

67 Tribunal de Bordéus, 12 de abril de 1867 (Sirey, 1868, 2a parte, p. 14). É preciso observar que na época a morte civil já tinha sido abolida pela lei do 31 de maio de 1854, e que o pai foi declarado civicamente morto pelo fato da contumácia.

68Ibid., p. 14.

69 Tribunal de Besançon, 14 de janeiro de 1808 (Journal du palais, t. 6 (avril 1807-juin 1808), 1857, p. 442).

70 Tribunal de Poitiers, 25 de novembro de 1824 (Sirey, vol. 7 (1822-1824), 2a parte, pp. 447-448).

71Ibid., p. 448.

72Idem.

73 Essa lei impõe pela primeira vez uma série de condições ao trabalho infantil, e dentre as mais significativas estão: a fixação da idade mínima de 8 anos para contratação de crianças; a regulamentação do trabalho noturno; a proibição do trabalho aos domingos aos menores de 16 anos; a limitação da contratação dos menores de 12 anos com a condição dos pais comprovarem que seus filhos frequentam a escola.

74 MAGNIN, Antoine. Traité des minorités, tutelle et curatelle, de la puissance paternelle, des émancipations, conseils de famille, interdictions, et généralement des capacités et incapacités. Paris: t. 1, Tarlier, 1842, n° 294, p. 246.

75 Isto era tão comum na sociedade do século XIX que os tribunais tiveram que se pronunciar algumas vezes sobre a responsabilidade civil dos pais com relação aos danos causados pelos filhos durante o serviço doméstico. Após algumas decisões, a jurisprudência consolidou o entendimento de que o pai não é responsável se o dano causado “est étranger au service du fils” (estranho ao serviço prestado pelo filho). Aresto da Corte de Angers, 25 de abril de 1818 (Sirey, vol. 5, 2a parte, p. 377, que remete a outras decisões).

76 Corte de Caen, 29 de março de 1844 (Sirey, 1844, 2a parte, p. 348).

77 Corte de Paris, 6 de fevereiro de 1862 (Sirey, 1862, p. 227).

78Ibid., p. 227.

79Ibid.

80 Essa lei estabelece, pela primeira vez na França, a possibilidade da perda do pátrio poder nos casos em que ela determina.

 

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Sobre o autor

Alan Wruck Garcia Rangel Doutor em História do Direito pela Universidade de Estrasburgo, França. Mestre em História do Direito pela Universidade de Montpellier I, França. Pós-doutorando no Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Laboratório Interdisciplinar de História do Direito. E-mail: alan.wruck@gmail.com

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

 

A concepção de educação na primeira metade do século XIX através do Código Napoleão. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662019000100012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 24 out. 2019.