CONCEITO JURÍDICO DE MORTE - MORTE ENCEFÁLICA


PorEulampio- Postado em 08 fevereiro 2017

Autores: 
EULÂMPIO RODRIGUES FILHO

conceito jurídico de morte

MORTE ENCEFÁLICA

 

 

                Eulâmpio Rodrigues Filho

Graduado pela Universidade Federal de Uberlândia

Doutor em Direito pela UMSA de Buenos Aires

Pós-Doutor na Universidade de Messina, Itália

Advogado

 

 

«A integridade pessoal.Como acontece com a vida, o homem tem o direito de defender a integridade do seu corpo, de todos os seus órgãos, de todas as suas funções e faculdades.» (Vicenzo Lamedica, O Direito de Defesa, trad. por Paolo Capitanio, Campinas, Bookseller Editora, 1996, pág. 64).

 

 

Morte e interesse

 

Só existe um móvel capaz de sugerir a busca da intervenção legislativa na produção da morte: ointeresse.

 

Consabido que o sol, as nuvens, o centro da terra, face a insuscetibilidade de apropriação exclusiva por alguém, não despertam qualquerinteresse. Por isto não se sujeitam juridicamente.

 

Em razão do progresso científico, tais coisas – no sentido físico –, pela apropriação poderão, no futuro, ser objeto de direito.

 

Ensina Manuel A. Domingues de Andrade, «in» Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra, Almedina, 1974, vol I, pág. 201, que

 

«A sujeição já não consiste numa apropriação física, mas na possibilidade de exclusivo desfrutamento e disposição dum bem.»

 

Mas, parece que com relação ao homem o progresso veio na vanguarda, pois, sua vida e seu corpo passaram a suscitar grande interesse, de modo tal, que sua defunção chegou ao extremo de ser admitida como passível decriação pela inteligência humana, com os efeitos daí decorrentes.

 

Referindo-se a Carlos Binding, o Pontifex Jiménez de Asúa, «in» Libertad de Amar y Derecho a Morir, Buenos Aires, Depalma, 1984, 7ª ed., pág. 410, lembra, com referência à eutanásia, que aqui pode ser evocada sem receio de incidir em incoerência:

 

«La posibilidad de aniquilar a estos infelices seres se presenta igual para los que han nacido así como para los que han llegado a esa situación en el trascurso de su vida; por ejemplo: el enfermo de parálisis general progresiva en el último estadio de su mal. Les falta – escribe Binding – la voluntad de vivir tanto como la de morir. La orden de matarlos no tropieza aquí con resistencia alguna, con una voluntad de vivir que deba ser truncada: su existencia carece de todo valor; sin embargo, no se les presenta a ellos como insoportable. Son una carga pesada para sus familias’y para la sociedad. Su muerte, por otra parte, no provoca ningún pesar, a no ser, tal vez, en los sentimientos de la madre o de la enfermera fiel. El estado de estos dementes e imbéciles exige cuidados considerables y la formación de profesionales que pierden su existencia prolongando la de estos no-valores humanos absolutos durante años y docenas de años.» (Gr.).

 

O grandeAsúa conclui, interpretando o enunciado, que trata-se, sob esse ponto de vista, da morte eliminadora e econômica, que se cimenta nos critérios de inutilidade e economia (cit., pág. 417).

 

Até então examinou-se ointeresse econômico com relação à família do paciente, e à sociedade.

 

No que toca aointeresse particular, sobretudo de «grupos», aí compreendido o interesse «público oficial», vale-se de página expedida pelo Departamento de Neurologia e Neurocirurgia, da UNESP (Apnéia na Morte Encefálica), «ut» se vê daInternet: unesp.br/deneuro/apnea/5.htm, pág. 2:

 

«Por que aponta-se a extensão da ‘fila’ dos pacientes à espera do transplante para justificar a implantação de leis espúrias, que legalizam, generalizam e perpetuam erros médicos que colocam em risco a vida de indefesos pacientes em coma sem lhes trazer quaisquer benefícios, mas não se procura impedir que o número de desesperados continue a aumentar, consumindo-se na ‘captação’ de órgãos verbas públicas que deveriam ser principalmente gastas em prevenção? Por que fazer propaganda da morte (‘encefálica’), tentando falsamente convencer o público da sua infalibilidade e da sua ‘comprovação científica’ (quando os procedimentos diagnósticos referentes a ela foram estabelecidos apenas normativamente), em detrimento da utilização das mesmas verbas e meios de comunicação para orientação de hipertensos e diabéticos quanto às necessárias medidas preventivas? Como ignorar que os pacientes falsamente diagnosticados como portadores de lesão encefálica irreversível, ... venham a ocupar os já exíguos leitos de tratamento intensivoapenas para preservação dos seus órgãos transplantáveis, enquanto outros pacientes, na falta daqueles leitos para receberem mesmo o tratamento convencional, desenvolvem lesão encefálica realmente irreversível, por serem mantidos precariamente, em macas nos corredores da emergência dos hospitais públicos?

«A mobilização de tantos profissionais e recursos públicos para a efetivação do sistema nacional de captação de órgãos, demonstra quais interesses encontram-se sendo subvencionados pelo poder público, que, assim, assume responsabilidades inegáveis. A implantação de tal sistema, que deverá consumir grande parte do já deficitário número de leitos disponíveis para tratamento intensivo dos pacientes com lesões cerebrais graves (mesmo para tratamento convencional), sem que sequer uma fração moralmente significativa desses recursos seja mobilizada para deter o processo de sucateamento dos hospitais públicos, configura uma situação imoral e contrária aos princípios mais elementares da ética médica.»

 

De fato, uma análise fria da situação aí desenhada, conduz ao entendimento de que a precipitação da morte pode ser economicamente proveitosa à família, que deixa de ter a incumbência de zelar do parente enfermo e vê reduzidas as suas despesas, vindo o dinheiro que viesse a gastar, a integrar o espólio, para uma partilha mais opulenta.

 

Seria visivelmente útil à sociedade, como disseBinding, porque, com a defunção surge vaga para novo internamento, e o poder «público» deixa de gastar duplamente.

 

Inescondível que, mesmo não assegurando a Lei, em tese, interesse «financeiro» direto no caso dos transplantes, juridicamente haveria um interesse, pois, conforme ensinaManuel A. Domingues de Andrade, cit., pág. 206,

 

«... ainda se o ‘direito, sem atribuir uma vantagem patrimonial ao sujeito, é tal, porém, que o titular, para adquiri-lo, faz um sacrifício econômico, uma despesa, e portanto o direito, se bem que satisfaça um interesseideal do sujeito, é todavia susceptível de avaliação pecuniária...»

 

E, em gerandointeresse econômico, o corpo da pessoa humana transforma-se em «coisa», antes que ela se torne cadáver, que no Direito romano já era «coisa fora do comércio».

 

Mas isto contrapõe-se à ordem racional das coisas, pois, não há recurso retórico capaz de fazer convencer de que a vida, ou a morte possa ser objeto de alguma relação jurídica. Isto, desde o advento da Lex Poetelia Papiria, de 400 anos antes de Cristo.

 

Voltando ao estudo elaborado pelo gênio luminar de Manuel Domingues de Andrade, cit., pág. 202, temos:

 

«A noção jurídica de coisa pode portanto exprimir-se neste enunciado geral:é tudo aquilo que, não sendo pessoa em sentido jurídico, pode constituir objeto de relações jurídicas (direitos subjetivos). Mas, explicitando esta definição em harmonia com as considerações anteriores, temos que o conceito jurídico de coisa se integra dos seguintes elementos:

«1) Objeto impessoal (carecido de personalidade jurídica);

«2) Objeto com existência autônoma;

«3) Objeto idôneo para satisfazer necessidades ou interesses humanos;

«4) Objeto apropriável, isto é, capaz da subordinação jurídica ao poder, ação ou disponibilidade exclusiva de um ou alguns homens.» (Gr.).

 

Em tais circunstâncias, a idéia da produção da morte por intervenção legislativa encontra óbice intransponível dentro do Direito.

 

 

Pretenso conceito de morte

 

Lembra a Professora Daisy Gogliano, «in» Pacientes Terminais – Morte Encefálica, publicado pela Internet, que

 

«O diploma civil, portanto, se ocupa do momento da morte, jamais de sua conceituação e dos critérios médico-legais de sua constatação.»

 

Continua dizendo:

 

«E não poderia fazê-lo, pois cabe à Medicina, notadamente à Medicina Legal, estabelecer a sua constatação»

 

Em acolhendo a sugestão, buscamos na literatura médica, especialmente na página estampada na Internet, pela HEALTH LATIN AMERICA, «in»Uol, o conceito de morte, e encontramos:

 

«A conceituação da morte é um dos temas mais aguçados da bioética. A definição em vigência da morte cerebral traça dilemas ainda sem soluções. Ao contrário do que supõe o senso comum, muitas vezes a fronteira que separa a vida da morte é uma linha difusa e difícil de estabelecer.

 

«A busca de critérios teóricos que definam o que entende-se por morte, critérios que possam se deslocar sem maiores dificuldades à prática médica cotidiana, é um dos temas mais complexos e discutidos que aborda a disciplina científica denominada bioética, que estuda os aspectos éticos da medicina e da biologia.

 

«Nas últimas décadas do século XX, os avanços que tem experimentado a medicina e o conhecimento biológico, tem estabelecido complexos questionamentos em torno da conceituação da morte.

 

«Se bem que são muitos os fatos pontuais que têm feito estes problemas ainda mais complexos, são principalmente dois os que têm funcionado como gatilho do conceito que atualmente utiliza-se para determinar quando uma pessoa não está viva. Por um lado, a invenção do respirador artificial motivado pela epidemia de pólio nos anos 50, permitiu que muitas pessoas pemanecessem vivas em situações em que antes algo assim seria impossível; por outro lado, o primeiro transplante de coração, realizado em 1967 pelo Dr. Christian Barnard e a necessidade de contar com estes órgãos para transplantes estabeleceu a pergunta: quando é razoável deixar de tratar uma pessoa conectada a um respirador?»

 

O desconcerto a exsurgir dessas afirmações, que consideramos dotadas de elevada solvência e honestidade científica, tem sua razão de ser.

 

«Prima facie», seria de se compreender que em verdade nem o Direito, nem a Medicina, como se viu, ousam conceituar a morte, talvez pela inexistência dehiato entre ela e a vida.

 

Realmente, parece que ohiato a consignar é a morte mesma, estanciado  – o hiato – entre a pessoa jurídica e o «de cujus»

 

Como já lembrado, a Lei não conceitua e nem define morte, como não o faz com relação a ruído, luz, água, por serem atributos da natureza, que existem por si, independentemente da maneira como são concebidos pelas ciências respectivas.

 

Quanto aos aparelhos, a que se reporta o texto subseqüentemente transcrito, se ligados e mantêm vivo o ser humano, ainda que deficientemente, por força de relação obrigacional e para não se incorrer no crime de omissão de socorro, hão de permanecer conectados até que haja cura, ou até que outros recursos apareçam para melhoria do serviço.

 

Se se alimenta um aparelho com determinada fonte de energia, e ela se mostra insuficiente, não se vai quebrar o aparelho por causa disso, mas, lidar para melhorar o seu desempenho.

 

A morte não deve decorrer – ser provocada – da insuficiência do tratamento, da inépcia do médico, pois essas causas não levam necessariamente à morte, pois indicam tratamento ineficaz. Este pode conduzir à morte, mas não a representa.

 

Pela precariedade não responde o paciente, mas quem se propõe a aplicar os engenhos destinados a manter a vida.

 

A morte é um fato natural extremo, isto é, não passível de criação pela inteligência do homem, amiúde falível, pois, como já disse Ávio Brasil, o erro é um dos característicos da humanidade. A jurisprudência está repleta de casos a envolver erros.

 

Sem dúvida, a morte é, cientificamente, um fato jurídico ordinário, «stricto sensu», por ser natural.

 

Eventual inserção do evento morte no sistema jurídico visando a regulamentá-la, implicaria umaatecnia conducente ao desmantelamento da idéia universal relativa ao fato jurídico.

 

E, a vida em si, bem inviolável e indisponível até que desapareçam todos os seus sinais, sujeita-se ao Direito Natural, isto é, não concedido pelo Estado, que nela não tem legitimidade para intervir, a não ser para tutelá-la. Isto, pelo menos num Estado democrático de Direito.

 

Lei positiva não pode proibir a vida tal como naturalmente se apresenta, e nem dosá-la.

 

Existe, em verdade, algo que se sobrepõe a todo o sistema jurídico, que é a conservação da vida, seja pelo indivíduo, seja pela sociedade e pelo Estado quando aquele não pode lutar por ela.

 

Tem-se confundido morte, comprova da morte.

 

A morte sujeita-se ao registro, que a representa, e este depende de uma declaração corroborada por certificação médica, que traduz-se na prova da sua ocorrência.

 

Opiniões médicas têm vindo no sentido de revelar ao jurista, que se pretende convolar a «atestação» da ocorrência da morte, como simples prova, na sua realização – da morte – segundo «prognóstico» ao alvedrio do profissional.

 

Neste caso, a prova, de documental, converter-se-ia em prova técnica da morte!

 

A morte, para efeito de registro, não se investiga através de perícia, pois é ela verificada e atestada. Trata-se de um fato natural que acontece primeiro, para depois ser constatado.

 

Para o registro do óbito dispensa-se mesmo a intervenção do médico em alguns casos, pois, se já sepultado ou desaparecido o corpo, a sua prova se faz pela via da justificação, mediante oitiva de testemunhas, mesmo leigas.

 

Os fatos naturais são vistos como ocorrem normalmente, e não de forma «excepcional», i.e., de forma diversa da como naturalmente se apresentam. Não admitem tergiversações no ato de considerá-los. A morte surde do desaparecimento total dos sinais vitais.

 

A morte, contudo, interessa sobremodo ao Direito, porque é a Lei que outorga a capacidade jurídica, que é inerente à existência do homem.

 

Ensina Calixto Valverde Y Valverde, que a capacidade não se extingue, a não ser pela morte, vez que por outras causas poderá modificar-se ou suspender-se, mas não extinguir-se por qualquer causa diferente.

 

O Direito não faz conceituação de morte, e nem de vida, porque ele não regula tais fenômenos, mas a personalidade jurídica do ser.

 

A «contemplação» do fenômeno morte, pelo Direito, com esteio num fato natural, não decorre de uma concepção técnica; vindo daí, talvez, a estupefação dos leigos, que sugerem o seu reconhecimento mediante avaliação por profissionais da medicina, que amiúde acham correto definir algo que só a natureza tem como revelar, e o que é mais importante, esquecendo-se de que no meio jurídico, e em meio a toda a humanidade impera um princípio que muitas vezes, por ser um freio a temeridades, induz desconcerto: o sagrado princípio de Justiça, que é o fim supremo do Direito.

 

Daí a conclusão, nas palavras do ProfessorPietro Perlingieri, «in»Perfis do Direito Civil, Rio, Renovar, 1997, pág. 23:

 

«É necessário que, com força, a questão moral, entendida como efetivo respeito à dignidade da vida de cada homem e, portanto, como superioridade deste valor em relação a qualquer razão política da organização da vida em comum, seja reposta ao centro do debate na doutrina e no Foro, como única indicação idônea a impedir a vitória de um direito sem justiça.»

 

(Eulâmpio Rodrigues Filho, em Capítulo publicado no Manual de Medicina Legal – Tanatologia – Obra coletiva presidida pelo Prof. Dr. Jorge Paulete Vanrell, Leme (SP), J. H. Mizuno, 2011, pág. 59).

 

«O direito é uma ciência humana, e como tal, não contempla morte onde ela não exista. Morte é fim. Não é morto, na acepção jurídica, quem tenha em funcionamento, ainda que forçado, atividades circulatória e respiratória, a despeito de falência da atividade cerebral. Juridicamente, a perda da atividade cerebral conduz à incapacidade, não à morte.»

 

(Trabalho publicado «in» Código Civil Anotado,Eulâmpio Rodrigues Filho, Porto Alegre, Síntese, 2001, 3ª ed., pág.50).