BUEN VIVIR: UMA ALTERNATIVA LATINO-AMERICANA


Porjuliawildner- Postado em 26 março 2015

Autores: 
Luciana Costa Poli
Bruno Ferraz Hazan
BUEN VIVIR: UMA ALTERNATIVA LATINO-AMERICANA
BUEN VIVIR: A LATIN AMERICAN ALTERNATIVE
Luciana Costa Poli
UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” São Paulo – São Paulo- Brasil
Bruno Ferraz Hazan
Escola Superior Dom Helder Câmara - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
 
RESUMO:
O trabalho apresenta de forma sucinta algumas características do
denominado constitucionalismo latino-americano, que se destaca pela tentativa
de privilegiar a riqueza cultural e as tradições comunitárias e históricas na busca
de uma refundação das instituições políticas e jurídicas. Esse movimento
constitucionalista, como se pretende mostrar, ao incluir em sua agenda questões
de cunho ambiental, social, econômico e jurídico tem acendido esperanças de
que o desenvolvimento sustentável, fulcrado em uma nova visão do mundo, seria
possível. A partir dessa visão, o artigo apresenta a noção do  Sumak Kawsay
(expressão de uma forma ancestral de ser e de estar no mundo) adotado pelo
Plan Nacional para el Buen Vivirdo Equador e por outros países como Bolívia e
Venezuela, que propõe uma ruptura dos conceitos ortodoxos do desenvolvimento
de hoje (crescimento, rapidez, exportação, dentre outros).  O trabalho destaca a
visão da natureza e do mundo expostas pelo Sumak Kawsay,como uma possível
alternativa ao desenvolvimento sustentável. Aborda, ainda que de forma breve,
algumas ideias do ecossocialismo e sua possível correlação com o  Sumak
Kawsay.
 
PALAVRAS-CHAVE:Sumak Kawsay; Buen Vivir; Constitucionalismo Latino-Americano; Neoconstitucionalismo; Ecossocialismo.
 
ABSTRACT: The paper briefly presents some characteristics of the called Latin
American constitutionalism, which stands out for trying to privilege the cultural
richness and community and historical traditions in search of a refounding the
political and legal institutions. This constitutionalist movement, as it is intended to
show, when includes on its agenda issues of environmental, social, economic and
legal nature has sparked hopes that the sustainable development, based in a new
world view, would be possible. From this vision, the paper presents the notion of
Sumak Kawsay(expression of an ancestral way of being and living in the world)
adopted by the Plan Nacional para el Buen Vivir of Ecuador and other countries
such as Bolivia and Venezuela, which proposes a rupture of the orthodox
concepts of today´s development (growth, speed, export, among others). The
work highlights the view of nature and the world exposed by Sumak Kawsay, as a
possible alternative to sustainable development. Discusses, even if briefly, some
ideas of ecosocialism and its possible correlation with  Sumak Kawsay.
 
KEYWORDS: Sumak Kawsay; Buen Vivir; Latin American Constitutionalism;
Neoconstitutionalism; Ecosocialism.
 
1 Considerações iniciais
A realidade latino-americana reclama uma premente quebra ou ruptura
com a antiga matriz eurocêntrica de pensar o Direito e o Estado para o
continente. Faz-se imperioso repensar e refundar as instituições políticas
tradicionais, remodelando também os mecanismos jurídicos hábeis à satisfação
dos interesses de parte da população que, tradicionalmente, sempre esteve
alijada da vida política.
Alguns países da América Latina, tardiamente, parecem viver um
fenômeno que desnuda as culturas nativas encobertadas e violentamente
extirpadas da própria construção de sua história. Desenha-se assim um
panorama de pretenso constitucionalismo emancipatório, preocupado também na
concretização de políticas ambientais eficazes e consideradas necessárias ao
desenvolvimento sustentável.
Esse constitucionalismo ecocêntrico latino-americano, de modo particular
nos Andes, eleva os direitos da natureza ( Pachamama) e da cultura do Bem
Viver a statusconstitucional, positivando, a partir das reformas da Constituição do
Equador em 2008 e da Bolívia em 2009, a prevalência da cultura da vida e a
relação de interdependência entre os seres vivos, pautada no valor da harmonia
e desdobrável em princípios como reciprocidade e complementaridade.
A partir deste novo paradigma, apresenta-se a proposta do Sumak
Kawsay(Bem Viver) e sua cosmovisão, a enfrentar o atual desafio de articular e
compatibilizar   as   macropoliticas   ambientais,   exigências   do   mandato   ecológico,
com as macropoliticas sociais, a minimizar as desigualdades sociais e regionais.
O modelo do Bem Viver, ainda em construção, configura-se como uma
tentativa (ou crença) de que seria possível equacionar essas questões pela
revisão da relação do ser humano com a natureza, pautando-se
fundamentalmente no valor da harmonia, desdobrável em variáveis como, por
exemplo, unidade, inclusão, solidariedade, reciprocidade, respeito,
complementaridade e equilíbrio.
 
2 Breves considerações sobre o constitucionalismo latino-americano
A sociedade contemporânea mostra-se dinâmica, multifacetária, apresenta
demandas diversas, não é uniforme. Nessa perspectiva, o Direito e,
especialmente, o Direito Constitucional apresenta novas perspectivas
hermenêuticas na busca de projetos constitucionais mais progressivos,
inclusivos, plurais. Fala-se, assim, em neoconstitucionalismo e até em
neoconstitucionalismos (CUNHA, 2010, p. 247).
Sarmento (2010, p. 235) explica que é tarefa árdua definir o que seria o
neoconstitucionalismo, mas segundo sua visão esse movimento trouxe
mudanças de paradigma que implicaram no:
a) reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e
valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito; b)
rejeição ao formalismo e recurso mais frequente a métodos ou “estilos”
mais abertos de raciocínio jurídico: ponderação tópica, teorias da
argumentação etc.; c) constitucionalização do Direito, com a irradiação
das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos
direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; d)
reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez
maior da Filosofia nos debates juridicos; e) judicializaçao da politica e
das relações sociais, com significado de poder da esfera do Legislativo
e do Executivo para o poder Judiciário.
Certo é que a alguns países sul-americanos (em especial, Equador
1
,
Bolívia e Venezuela), por meio de um novo movimento constitucionalista, tentam
romper com a lógica liberal-individualista das constituições políticas herdadas da
colonização europeia que, segundo Chivi Vargas (2009, p. 58), “tem sido
historicamente insuficiente para explicar sociedades colonizadas; não teve
clareza suficiente para explicar a ruptura com as metrópoles europeias e a
continuidade de relações tipicamente coloniais em suas respectivas sociedades
ao longo dos séculos XIX, XX e parte do XXI”.
Trata-se de um processo de reinvenção do espaço público a ser
construído tendo em vista os interesses e necessidades das maiorias até então
1
A Constituição do Equador de 2008, além de ampliar e fortalecer os direitos coletivos (artigos 56
a 60: povos indígenas, afrodescendentes, comunais e costeiros), estabelece um inovador capítulo
VII, que prescreve dispositivos (artigos 340 a 415) sobre o “regime de bem viver” e a
“biodiversidade e recursos naturais”, ou seja, sobre o que vem a ser denominado “direitos da
natureza”.
 
6
excluídas dos processos decisórios. Adverte Dalmau (2008a, p. 22, tradução
nossa)
2
que:
O desenvolvimento constitucional responde ao problema da
necessidade. As principais mudanças constitucionais estão diretamente
relacionadas com as necessidades da sociedade, as circunstâncias
culturais, assim como o grau de percepção que essas sociedades
possuem sobre as possibilidades de mudar suas condições de vida que,
em geral, na América Latina não atendem expectativas esperadas com
o transcorrer do tempo.
As constituições assim promulgadas constituem uma quebra ou ruptura
com a antiga matriz eurocêntrica de pensar o Direito e o Estado para o
continente. Procuram esses instrumentos repensar e refundar as próprias
instituições políticas, remoldando os mecanismos jurídicos à satisfação dos
interesses de parte da população que tradicionalmente não participava
ativamente da vida política. É um fenômeno que desnuda as culturas nativas
encobertadas e violentamente extirpadas da própria construção da história sul
americana, em um movimento que tende a “descolonizar o poder e a justiça”
(WOLKMER; FAGUNDES, 2011, p. 378).
Deve-se examinar o panorama desenhado por esse que vem a ser um
constitucionalismo “novo”, “emancipatório” ou “transformador” ( DALMAU, 2008b,
p. 69), no que se refere às inovações concernentes aos aspectos
socioambientais, já que há, nesses instrumentos, uma preocupação de
concretização de políticas ambientais eficazes consideradas necessárias ao
desenvolvimento.
O novo constitucionalismo latino-americano é percebido, sobretudo, como
um processo revelador do amadurecimento dos movimentos sociais e da
conscientização da situação peculiar das comunidades. Não se caracteriza por
formulações teóricas prévias e conformadas. Por isso, não constitui um sistema
fechado, hermético, isolado ou de implementação de um determinado modelo
constitucional rígido.
2
La evolución constitucional responde al problema de la necesidad. Los grandes cambios
constitucionales se relacionan directamente con las necesidades de la sociedad, con sus
circunstancias culturales, y con el grado de percepción que estas sociedades posean sobre las
posibilidades del cambio de sus condiciones de vida que, en general, en América Latina no
cumplen con las expectativas esperadas en los tiempos que transcurren.
A ausência de precisão teórica, outrossim, não inibe a identificação de
traços comuns aptos a identificar o movimento. Sua orientação central refere-se à
preocupação de trazer a lume a reflexão sobre a desigualdade social, seus
impactos diretos e indiretos. Persegue-se a busca do bem viver e a proteção da
dignidade humana. Em linhas gerais, propõe o rompimento da lógica liberal-individualista e eurocêntrica que orientou, de forma geral, as constituições latino-americanas. Trata-se de uma possível reinvenção do espaço público, das
políticas públicas e da participação popular.
Wolkmer e Fagundes (2011, p. 387) propõem três ciclos socais para
compreender esse novo constitucionalismo emergente. São eles: (i) Um primeiro
ciclo social de caráter descentralizador, previsto nas Constituições do Brasil de
1988 e Colômbia de 1991, ao qual talvez pudesse ser acrescentada a do
Paraguai de 1992; (ii) Um segundo ciclo social orienta-se para um
constitucionalismo participativo e pluralista do qual a Constituição da Venezuela
de   1999   é   o   exemplo   mais   emblemático;   (iii)   O   terceiro   ciclo   pode   ser
representado pela Constituição do Equador de 1998 e 2008 e da Bolívia de 2009,
que expressam um constitucionalismo plurinacional comunitário no qual
coexistem diversas sociedades interculturais, como a indígena, comunais,
urbanas e camponesas.
Esse constitucionalismo latino-americano prioriza a riqueza cultural e as
tradições comunitárias e históricas, busca a refundação das instituições políticas
e jurídicas e pretende superar o modelo de política elitista. Para a concretização
dessa meta de reinterpretação pluricultural, destaca a possibilidade de se
acender o diálogo e a interculturalidade. Procura evitar, sobretudo, a
sobreposição de culturas, para que não se repita a história, rica de episódios de
predomínio selvagem da cultura europeia. É o que Santos (2010, p. 46)
denomina “hermenêutica diatópica”, com a qual operacionaliza as ideias centrais
para esse novo movimento constitucionalista. Segundo o autor, a hermenêutica
diatópica é um trabalho de interpretação entre duas ou mais culturas, com o
objetivo de identificar preocupações isomórficas incluindo as diferentes respostas
e fornecer um amplo campo de debates sobre os temas gerais do universalismo
de renovação cultural (SANTOS, 2010, p. 46, tradução nossa)
Outra característica é a defesa pedagógica em favor ética da alteridade
que, segundo Wolkmer e Fagundes (2011, p. 381), configura-se como a ética
antropológica da solidariedade comprometida com a dignidade do outro.
Persegue-se ainda a consolidação de processos conducentes à racionalidade
emancipatória voltada à perseguição de interesses históricos, da expressão de
uma identidade cultural própria a esses povos.
Nesse diapasão, as constituições da Colômbia, Bolívia e Equador já
incorporaram o pluralismo jurídico e o direito de aplicação da justiça indígena
como paralela à juridicidade estatal, reconhecendo a legitimidade da
manifestação periférica de outro modelo de justiça e de legalidade, diferente
daquele implantado e propalado como universal pelo Estado moderno. Relata
Santos (2010, p. 91, tradução nossa) que no artigo 30, a Constituição da Bolívia
estabeleceu vasta gama de direitos das nações e dos camponeses indígenas. É
a expressão constitucional de correspondência pela primeira vez na história do
país, entre a forte presença da população e da proeminência política dos povos
indígenas. Dentre esses direitos está o direito à própria jurisdição, cujo escopo é
definido nos artigos 190, 191 e 192. Na Constituição do Equador também são
reconhecidos os direitos dos povos e nacionalidades indígenas (art. 57) e a
jurisdição indígena (art. 171).
3
La hermenéutica diatópica consiste en un trabajo de interpretación entre dos o másculturas con
el objetivo de identificar preocupaciones isomórficas entre ellas y las diferentes respuestas que
proporcionan.
4
Apesar de a racionalidade ser uma característica essencial da natureza humana, que impulsiona
ações individuais e sociais, compõe-se de significados diversos, sutis e implícitos, que influenciam
e direcionam a visão de mundo da sociedade. A racionalidade emancipatória (direciona-se pela
capacidade de homens e mulheres deliberarem sobre as condições da sua própria existência
opõe-se à racionalidade instrumental ou funcional, chamada por Santos (2000, p. 123) de
indolente (leva em consideração o cálculo utilitário de consequências como única referência a
guiar à ações dos indivíduos que adquirem um sentido de comportamento racional limitado).
5
En su artículo 30, la Constitución de Bolivia establecen vasto conjunto de derechos de las
naciones y pueblos indígena originario campesinos. Es la expresión constitucional de la
correspondencia, por primera vez en la historia del país, entre la fuerte presencia poblacional y el
protagonismo político de los pueblos indígenas. Entre los derechos está el derecho a la
jurisdicción propia cuyo ámbito queda definido en los artículos 190, 191 y 192. En la Constitución
de Ecuador están igualmente reconocidos los derechos de los pueblos y nacionalidades
indígenas (art. 57) y la jurisdicción indígena (art. 171) .
Esse movimento constitucionalista, ao incluir em sua agenda questões de
cunho ambiental, social, econômico e jurídico tem acendido esperanças de que o
desenvolvimento sustentável, fulcrado em uma nova visão do mundo, é possível.
Lançando novos olhares, a partir da compreensão da diversidade, esse
movimento jurídico-político traz à lume novos sujeitos e institucionalidades. No
reconhecimento de novos sujeitos, observa-se não apenas o reconhecimento das
coletividades étnicas, mas o da natureza como titular de direitos. Isto porque, na
perspectiva não dissociada entre ser humano e natureza, influenciados pelos
valores indígenas, a Pachamama  ganha titularidade juridica. Acosta e Martinez
(2009) informam que na Constituição do Equador (2008) a natureza ou
Pachamamaé reconhecida como um sujeito de direitos. Assim, a natureza teria o
direito fundamental à vida, para manter seus ciclos evolutivos.
3 Sumak Kawsay: uma forma alternativa de mobilização ou mais uma utopia
política?
Durante séculos, a América Latina parece ter adormecido, seguindo o
ritmo imposto pelos resquícios de um colonialismo forte e sempre presente,
embora muitas vezes, não aparente. Apesar decircunstâncias políticas, sociais e
econômica adversas, qualquer movimento operário, estudantil ou de qualquer
outra classe mostrou-se insuficiente para implementar uma radical mudança no
panorama. Um círculo de rendição permanecia, enquanto a resignação parecia
ter se instalado permanentemente.
Nesse cenário, surpreendentemente, discussões começaram a emergir
dando azo a uma drástica ruptura. Debates constitucionais ocorridos na Bolívia e
no Equador culminaram com uma proposta que repousa raízes na cultura de
origem inca (kechwa)
6
, buscando articular-se a partir da concepção do paradigma
do “viver bem” – em kechwa, sumak kawsay(BELLO, 2004).
Sumak kawsayé a expressão de uma forma ancestral de ser e de estar no
mundo. Expressa, de certa maneira, as proposições teóricas de décroissancede
6
É um idioma falado em alguns países andinos (particularmente no Peru, Equador e Bolívia), mas
também no norte da Argentina e em outros países por um pequeno número de falantes
(BENNETT, 1963).
Latouche
7
, de convívio de Ivan Illich
8
e de ecologia profunda de Arnold Naess
9
. O
buen vivirrelaciona-se às propostas de descolonização desenvolvidas por
Quijano (1992), Santos (2004) e Lander (2005).
Sumaksignifica a plenitude, o sublime, excelente, magnífico. Kawsay
refere-se à vida, em uma concepção dinâmica. Portanto  sumak kawsaypode ser
compreendido como a vida em plenitude. É a vida em excelência material e
espiritual. O sublime expressa a harmonia, o equilíbrio interno e externo de uma
comunidade (ACOSTA; MARTINEZ, 2009).
O conceito do sumak kawsaypropõe uma oposição à lógica do capitalismo
neoliberal que imprime uma concepção de vida boa atrelada à necessidade de
consumir sempre mais e mais bens. Exaltar a convivência harmônica do homem
e da natureza é um dos eixos centrais dessa proposta. O  Plan Nacional para el
Buen Vivirde 2009-2013 do Equador (EQUADOR, 2009)
10
, por exemplo, resume
a adoção desse paradigma, ao propor uma ruptura conceitual dos conceitos
ortodoxos do desenvolvimento de hoje (crescimento, rapidez, exportação, dentre
outros). Propõe:
 Construir uma sociedade que reconheça a unidade na
diversidade, admitindo a natureza gregária do homem.
 Promover igualdade, a integração social e a coesão como um
guia para a vida. 
 Garantir os direitos universais de forma progressiva e o
fortalecimento das capacidades humanas.
 Construir relações sociais e econômicas em harmonia com a
natureza.
 Saída à crise ideológica do capitalismo que surge a partir de uma
conferência realizada pelo Institute for International Economics , em
Washington, no ano de 1989.
 Fortalecer as relações de trabalho e de lazer libertadora.
 Reconstruir o público.
7
Segundo Latouche (2004, p. 109), é preciso descolonizar nosso imaginário. Em especial, desistir
do imaginário econômico [...] Redescobrir que a verdadeira riqueza consiste no pleno
desenvolvimento das relações sociais de convívio em um mundo são, e que esse objetivo pode
ser alcançado com serenidade, na frugalidade, na sobriedade, até mesmo em certa austeridade
no consumo material. Sustenta que para salvar o planeta e assegurar um futuro aceitável para os
nossos filhos, não basta moderar as tendências atuais. É preciso sair completamente do
desenvolvimento e do economicismo.
8
Com toques de radicalismo, afirma que a sociedade industrial promoveu uma nova elite de
profissionais, cujo trabalho era convencer-nos de tudo o que “precisamos, não precisamos”
(ILLICH, 1974. p. 22).
9
Defende o valor intrínseco dos seres vivos, independentemente de sua utilidade instrumental às
necessidades humanas. A ecologia profunda propõe que o mundo natural é um equilíbrio sutil de
complexas inter-relações em que a existência de organismos é dependente da existência de
outros dentro dos ecossistemas (NAESS, 1994, p. 120-124).
10
Saliente-se que já há o Plan Nacional para el Buen Vivirde 2013-2017 (EQUADOR, 2013).
 Aprofundar a construção de uma democracia representativa,
participativa e deliberativa.
 Consolidar uma sociedade democrática, pluralista e secular.
Embora a noção do bem viver possa parecer apenas uma forma ingênua,
embora harmônica, de convivência entre o ser humano e natureza, para Davalos
(2005) é uma alternativa de combate ao modo capitalista de produção,
distribuição e consumo, ao refletir uma postura de mobilização e resistência.
Pode ser compreendida como uma relação peculiar entre a sociedade e a
natureza, considerando as diversidades individuais, ao pregar o abandono da
individualidade egoísta para a busca de uma consciência de responsabilidade
social e comprometimento com o entorno natural.
O Sumak Kawsaycompõe o discurso político dos movimentos indígenas
da América equatoriana, a partir da recriação histórica de vivências ancestrais
dos povos indígenas, principalmente no que se refere à construção de uma ética
de socialidade e sua relação com a natureza. Pretende inaugurar uma nova
pauta nos movimentos sociais de forma a fomentar a participação política das
demandas indígenas em respeito ao multiculturalismo característico das
Américas. Com propostas bastante particulares, propõe uma abertura para
inserção dos diferentes modos de vida, o que se expressa, de certa forma, pelo
seu projeto de Estado Plurinacional.
Procura-se consagrar as demandas dos direitos coletivos a partir de um
giro de perspectiva, de forma a reconstruir um modelo de Estado capaz de
incorporar as diferenças radicais que o constituem, abrindo caminhos para a
aceitação de propostas de interculturalidade, promovendo o discurso
efetivamente dialético entre toda a sociedade (ACOSTA, 2008).
A noção de Sumak Kawsay objetiva tornar a própria sociedade
responsável e consciente pela maneira que cria e recria suas condições de
existência. Busca a implementação de uma lógica pautada pela ética da
alteridade, na qual as situações particulares não podem ser consideradas
isoladas e dissociadas, pretendendo imiscuir a ideia de que constituem o
interesse geral. O bem-estar de uma pessoa não se constrói sobrepondo-se ao
dos demais, mas, sim, pelo respeito aos outros.
Essa lógica parte para a constatação de que é necessária uma
desconstrução das ideias dominantes sobre a economia, o crescimento
econômico, a pobreza, dentre outras (EQUADOR, 2010). Pretende abandonar a
própria percepção dominante de desenvolvimento, porque implica em violência,
imposição, subordinação. Defende que não se pode “desenvolver” ninguém, se
observados valores universais e não locais ou particulares, porque cada
sociedade teria sua própria cosmovisão a ser respeitada. Propalar o
desenvolvimento, se não observadas as particularidades, nuances, cultura e
história de uma sociedade, implicaria em violência, uma interferência não
promocional, e, portanto, que deveria ser repudiada.
A sociedade mercantil, segundo o movimento Sumak Kawsay, sempre
atribuirá um valor à natureza e a converterá em parte de suas rendas, como se
dela pudesse se apropriar. Ao mesmo tempo a natureza, tratada como objeto,
torna-se o depósito de todos os seus desperdícios, sucatas, descartes e lixo
porque não existe uma relação de respeito e consideração.
Na sociedade que se propõe essa noção de valor da natureza não existe,
já que a natureza é parte da própria teia da vida que a compõe. O conceito
de Sumak Kawsay permite exatamente isto: uma nova visão da natureza, sem
ignorar os avanços tecnológicos nem os avanços em produtividade, mas
projetando-os ao interior de um novo contrato com a natureza, em que a
sociedade não se separa desta, nem a considera como algo externo ou como
uma ameaça ou como o outro radical, senão como parte de sua própria dinâmica,
como fundamento e condição de possibilidade de sua existência no futuro
(ACOSTA; MARTINEZ, 2009).
O Sumak Kawsay pretende devolver à sociedade a forma pela qual se
possa construir um tempo social fora da lógica da acumulação do capital, isto é,
devolver aos seres humanos seu tempo pessoal e histórico, para que consigam
viver plenamente suas vidas. Na lógica do capitalismo e da modernidade isso
seria impossível. O tempo não pertence aos seres humanos. O tempo faz parte
da acumulação do capital. Os seres humanos se resignam ao tempo do capital e
sacrificam suas opções pessoais e seu tempo, porque este não lhes pertence
(LEÓN, 2009).
A partir do Sumak Kawsay  seria possível problematizar o capitalismo e
propor uma alternativa plausível e possível, inclusive de utilização do tempo. Um
tempo que pertenceria à sociedade, permitindo que se construísse sem
necessariamente hipotecar seu futuro na lógica da acumulação capitalista
(EQUADOR, 2009).
Sem dúvidas, resgatar a historicidade dos povos latino-americanos,
procurar equacionar as demandas e peculiaridades regionais, compatibilizando-as com um modelo de Estado inclusivo, participativo, que se preocupa com a
inserção social da comunidade, é louvável. Incluir nessa pauta de discussão um
modo de repensar a relação do homem com seu semelhante e, ainda, resgatar
uma forma menos agressiva de convivência, proporcionando um ambiente mais
saudável, é enobrecedor.
Não há como se negar que o homem contemporâneo iniciou uma jornada
de reflexões e questionamentos em sua relação com a natureza, de forma a
reconquistar uma estrutura de vida e ocupação dos espaços menos violenta.
Certo é que os países da América Latina necessitam implementar políticas
próprias de desenvolvimento que lhes permitam desvencilhar de séculos de
opressão e tentativas de uniformização.
4 Desafios ideológicos para o desenvolvimento sustentável:
ecossocialismo ou ecocapitalismo?
Aceitando-se ou não as alternativas propostas pelo Sumak Kawsay,
constatada a crise do sistema capitalista e suplantado o modelo de socialismo
real, procuram-se novas soluções para o desenvolvimento, que perpassam por
ajustes no modo de produção capitalista ou na busca de modelos alternativos.
Certamente, as questões ambientais e o desenvolvimento sustentável reacendem
de alguma forma os ideais socialistas, que vem sobre a denominação de
ecossocialismo. Por outro lado, em percurso inicialmente antagônico, insurge um
movimento ecocapitalista.
Não obstante os percursos distintos e a forma de realização de seus
ideais, essas duas tendências não conseguem escapar a um objetivo comum:
traçar metas para o desenvolvimento sustentável e fomentar ações  proambiente:
O discurso do Desenvolvimento Sustentável ora serve para resgatar a
funcionalidade do sistema capitalista, ratificando-o (eco-capitalista); ora
para questionar sua estrutura propondo sua substituição (eco-socialista).
Aos eco-capitalistas a expansão econômica é necessária, e pode estar
em harmonia com a proteção ambiental. As soluções perpassariam três
esferas: aprimoramento tecnológico, controle populacional e ajuda
financeira aos países pobres (RIBEIRO e outros, 1993, p. 97).
Certo é que as possibilidades de desenvolvimento são particulares a cada
região, a cada cidade, dificultando um discurso global e único. Um discurso
hegemônico, por si só, é excludente e merece ser refutado. Nesse sentido,
tentativas de uniformização e padronização de estruturas globais de
desenvolvimento mostram-se ineficazes. Reflexões e debates enriquecem e
possibilitam a construção de processos dialéticos de esclarecimento. Afinal, no
mundo atual, reclamar para si a autenticidade de um discurso ecológico parece
revelar um status(HERCULANO, 1992).
O capitalismo ecológico procura manter a essência dos ideais capitalistas
que giram em torno da supervalorização do indivíduo e dos meios de aquisição
de bens. O motor do processo produtivo e do próprio desenvolvimento
sustentável, nessa concepção, permanece focado nas formas de acumulação de
lucro, garantido mediante a produtividade e a concorrência (BOFF, 1999, p. 108).
Os ecocapitalistas coordenam suas ações para diminuir ou remediar os
efeitos da crise ambiental, social, política e econômica, sem desenvolver
questionamentos sobre as possíveis causas desse processo. Propõem
procedimentos profiláticos e preocupam-se com os aspectos patológicos.
Layragues (1997, p. 10) defende a concepção de que o capitalismo
ecológico funciona como um disfarce de determinadas correntes econômicas que
pretendem propor um novo ajuste do sistema capital. No seu entender, essas
correntes se propalam difundindo a ilusão de que se vive em tempos de
mudanças, mas o desenvolvimento sustentável para esse movimento assume
claramente a postura do projeto ecológico neoliberal, ainda que sob o signo de
reformista:
Certo é que os critérios de eficiência econômica, orientados apenas
pelas forças de mercado, não levam à redução de desigualdades sociais
e regionais e ao uso racional dos recursos naturais. A referência à
moldura ecológica da sustentabilidade tem sido até hoje mais retórica
que efetiva; o governo é ainda dominado em seu núcleo central por uma
visão clássica de desenvolvimento, a qual confere suprema importância,
por exemplo, aos ministérios da fazenda, planejamento, transportes e
energia, seguindo recomendações tradicionais dos conselheiros
econômicos (CAVALCANTI, 1997, p. 33).
Diante da dificuldade de se resgatar o primado dos interesses sociais
coletivos frente à perversidade da globalização econômica, deve-se questionar: o
desenvolvimento sustentável e a preservação do meio ambiente são mitos
insustentáveis?
Também, a par da angústia e do desafio do desenvolvimento sustentável,
em sentido diametralmente oposto, com a queda do regime socialista e o
aparente declínio da ideologia que lhe sustenta, agarram-se alguns simpatizantes
desse ideário a uma nova bandeira – a ecológica –, a qual se denominou de
ecossocialismo. Inserem-se nesta corrente os marxistas ecológicos, os
ecologistas sociais – verdes –, dentre outros (HERCULANO, 1992, p.15).
Economicamente, sua característica mais marcante refere-se à produção
voltada para as necessidades e não para o lucro, sem agressão ao meio
ambiente, privilegiando o bem comum em detrimento do enriquecimento
individual.
Com o ruir do sonho socialista, seria a onda verde um novo contraponto ao
sistema capitalista, ao buscar uma nova alternativa de sociedade e visão de
mundo?
Inicialmente, a proposta parece interessante, mas não se pode olvidar que
o Estado socialista não foi beneficente com o meio ambiente. Tanto o modelo de
sociedade capitalista como o socialista romperam com a Terra e pretenderam
sustentar um desenvolvimento calcado na massificação, autoritarismo, falta de
participação e criatividade dos cidadãos. Ambos os sistemas privilegiaram o
avanço técnico-científico, propalaram a uniformização, enquanto relegaram ao
esquecimento a razão ética, refletiram o programa da modernidade, abafaram a
diversidade e o multiculturalismo e promoveram a visão antropocêntrica.
Dentro dessa dualidade, o Sumak Kawsayse aproxima mais ao ideário
ecossocialista,ao situar a pobreza, as condições de vida e a exclusão em um
contexto político que não pode ser resolvido a partir da lógica do  homo economicus. Isso porque, à medida que se incrementa a renda econômica,
incrementa-se seu desejo de consumir sem levar em consideração a natureza, a
ética e a sociedade. Propõe uma alternativa ao desenvolvimento, que seria
dotado não dos mesmos instrumentos do capitalismo, mas sim com propostas
diversas, uma lógica e uma sistemática diferentes, mas que, sobretudo, pretende
redirecionar as relações sociais e as relações do homem com a natureza,
almejando a construção de um ambiente mais saudável.
5 Utopia ou não: em busca de uma caminho
Utopia ou não, parcela considerável da humanidade anseia por um modelo
de desenvolvimento diferente daquele que está posto. Conforme afirma o poema
de Galeano (1994, p. 310, tradução nossa), a utopia faz avançar:
A utopia [...] está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se
afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez
passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a
utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
A narrativa do escritor uruguaio exprime com perspicácia, ironia e rara
lucidez episódios da história latino-americana. Sua literatura visceral descreve a
graça e a desgraça da riqueza das Américas, a fúria imperialista, a prosperidade
do colonizador arrancada dessas terras e a benevolência dos nativos, de certa
forma perpetuada até hoje pela avassaladora opressão cultural impingida pela
força do ideário europeu.
O historiador Hobsbawm (1980, p. 65) assinala que o século XX marcou o
fim de sete mil anos de vida humana centrada na agricultura, desde que
apareceram os primeiros cultivos, no final do paleolítico. A população mundial
tornou-se urbana e os camponeses tornaram-se cidadãos. Na América Latina, o
O homo economicus, ou homem econômico, é o conceito segundo o qual o homem é um ser
racional, perfeitamente informado e centrado em si próprio, um ser que deseja riqueza, evita
trabalho desnecessário e tem a capacidade de decidir de forma a atingir esses objetivos. O
homem econômico é, portanto, um ser idealizado, utilizado em muitas teorias económicas
(BARRACHO, 2001, p. 34).
12
Utopia [...] ella está en el horizonte. Me acerco dos pasos, ella se aleja dos pasos. Camino diez
pasos y el horizonte se corre diez pasos más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré.
Para que sirve la utopia? Para eso sirve: para caminar.
13
Sobre o assunto, Galeano (2001).
processo acompanha essa tendência: crescimento descontrolado das cidades e
usurpação desmedida dos recursos naturais.
Para Thielen (1998), a crise atual está enraizada nos princípios da
modernidade. A atual fase do capitalismo apresenta-se totalitarista,
concentradora de riquezas e promotora da exclusão humana, já que o socialismo,
como não foi inclusivo, nunca foi real. Na sua visão, os dois sistemas são
perversos porque estabelecem como figura central o Estado e não o indivíduo.
Nesse raciocínio, a própria perversidade do capitalismo causará a sua própria
ruína. Afirma Vizentini (1998, p. 214) que o capitalismo revela-se incapaz de
estabelecer uma resposta globalmente integradora e estável, e o neoliberalismo
agrava ainda mais esse quadro burlesco tornando-se uma espécie de suicídio
para o próprio sistema.
Não obstante, o Sumak Kawsaypode ser identificado como um movimento
ecossocialista ao refletir importância em recuperar os interesses sociais e
coletivos, agregando-os aos interesses do destino comum da humanidade e do
planeta. Para tanto, conclama-se o resgate de princípios, como da solidariedade
(com os pobres, com os povos e com as gerações futuras); da diversidade
(cultural e biológica); da igualdade (de condições); da liberdade (para expressar
as virtudes); da participação (nas decisões políticas); e, ainda, a religação do ser
humano com o sentimento profundo da criação.
A proposição do novo ainda não realizado remete a princípios, sonhos,
concepções e ao resgate dos utopistas. Há a busca por um interesse comum,
pelo mesmo sonho, por um lugar ideal ou um espaço ideal, uma nova sociedade.
Uma sociedade que passa a repudiar a visão da natureza como um reservatório
de   matérias  primas   à   disposiçao   dos  homens.  A  busca  da   alteridade,   de   uma
relação harmônica com as demais criaturas e com a natureza
14
parece
descortinar novos horizontes.
Requer-se uma mudança de estado, já que os pilares da sociedade
contemporânea ainda repousam na uniformização (WALLERSTEIN, 2006, p.
146), característica fundamental do estado moderno, que nega sistematicamente
14
O ser humano colocou-se numa posição central diante da natureza. “Tudo culmina nele. Nada
tem valor intrínseco, nada possui alteridade e sentido sem ele. Todos os seres estão a seu dispor
para realizar seus desejos e projetos. São sua propriedade e domínio. Obcecado pelos lucros
imediatos, o homem já nao vive mais com as criaturas, mas atua sobre elas e contra elas” (BOFF,
1999, p. 112)a diversidade e outras formas de enxergar o mundo. Vive-se um momento de
mudança de época e de crise das instituições modernas, por isso a luta pelo
reconhecimento da modernidade é ainda difícil. A diversidade é ocultada para
estabelecer-se um padrão, que se opera por um encobrimento de outras formas
de pensar e compreender o mundo, fixando-se numa hegemonia filosófica e
cultural europeia.
A imposição da hegemonia abafa os costumes locais e encobre as
diversidades sob um falso manto de proteção (museificação). A justificativa de
intervenção em nome da evangelização e civilização dos direitos humanos acaba
por destruir e moldar o pensamento a um só standart.
A ideia do Sumak Kawsaypode significar a aproximação de uma nova era,
na medida em que evidencia o reconhecimento de um direito à diversidade, sem
padrão normalizador, de forma não hierarquizada, na qual os diversos grupos
passam a compartilhar o mesmo espaço, um espaço dialógico de inclusão.
Fomenta o culturalismo em oposição à universalização.
O constitucionalismo latino-americano, em especial da Bolívia, Equador e
Venezuela cria um espaço comum de construção de direitos fundamentais de
forma dialógica. Rompendo com a lógica do sistema moderno, pretende
implementar uma nova ordem comunitária na América. Mas a formação de
identidade nacional não será sempre uma invenção? ( HOBSBAWM, 1983). Não
obstante, o movimento neoconstitucionalista latino-americano, ao discutir os
mitos da modernidade, pode estar a demonstrar que se começa a romper, lenta e
pontualmente, na contemporaneidade, o universalismo europeu.
Santos (2004, p. 78) salienta que o enfrentamento dos mitos modernos
ajuda a compreender as bases das sociedades de exploração de recursos e
pessoas. Segundo o autor, esses mitos sustentam a exploração da riqueza das
Américas pelos invasores europeus que não consideram os selvagens (os povos
originários)   como   pessoas.   A   separaçao   do   homem   da   natureza   é   um   dos
fundamentos ideológicos do sistema que perdura até hoje: a natureza, vista como
algo separado dos seres racionais, serve para ser explorada pelos homens,
abastecendo a sociedade e sua indústria de todos os recursos que necessitarem.
Revisitar o Sumak Kawsayé buscar compreender a natureza sob uma
ótica sistêmica, estabelecendo um horizonte ainda de difícil compreensão, na
medida em que se acostumou a ver e a entender as relações entre humanos e
natureza sob um enfoque monocular, no qual o homem dela se distingue agindo
sobre ou através dela, modificando-a.
O Sumak Kawsaymostra que nem sempre o homem enxergou a natureza
com o mesmo significado. Para os povos nativos da América, a natureza era vista
e entendida como um processo sistêmico e dinâmico, no qual cada mineral,
rocha, ar, ser vivo e o sobrenatural eram considerados fundamentais para a
constituição e preservação do todo existente.
Percebe-se que é o contexto histórico e espacial de cada época que
determina o tipo de visão que se estabelece da natureza. Para se atingir um
espectro mais amplo, faz-se necessário perceber a natureza na sua dinâmica
integradora. Por outro lado, também se deve ter o cuidado de não rechaçar as
mais diversas contribuições possíveis para não se estabelecer apenas uma visão
holística.
Uma compreensão meramente holística, segundo Guattari (1989, p. 23),
seria totalizante e excludente. Por isso, deve-se visar a articulação entre três
registros ecológicos: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da
subjetividade humana, buscando-se, assim, uma visão “ético-política”. Dessa
maneira, o todo poderá ser visto como o conjunto das partes interconectadas,
resgatando a visão da diferença. O todo que une sem tornar idêntico o
dessemelhante (SANTOS, 2004, p. 89).
Certo é que todo esforço criativo de pensamento é salutar para dar conta
da complexidade das sociedades contemporâneas, de forma a conciliar a
confluência de toda a diversidade. Um dos maiores males da atualidade é a
escassez de pensamento. A crise atual é profunda e coloca em cheque a
legitimidade das instituições, não apenas do exercício do poder, mas dos
princípios que o sustentam.
Espera-se que o resgate e a inserção de novos ou abafados pensamentos,
como o Sumak Kawsay, sejam capazes de oxigenar as bases sócio-filosóficas da
América Latina. Isso poderia significar o abandono dos pilares de racionalidade
instrumental da modernidade, cominando uma verdadeira transação civilizacional
a configurar a autonomia construída a partir da historicidade. A incerteza faz
parte do processo, já que crises e flutuações costumam entoar uma virada
epistemológica:
A lição para a epistemologia é esta: não trabalhar com conceitos
estáveis. Não eliminar a contra-indução. Não se deixar seduzir
pensando que finalmente encontramos a descrição correta “dos fatos”,
quando tudo o que tem acontecido é que algumas novas categorias
foram adaptadas a algumas velhas formas de pensamento, as quais são
tão familiares que tomamos seus contornos pelos contornos do próprio
mundo (FEYERABEND, 1981, p. 40, tradução nossa)
15
.
6 Considerações finais
A relaçao homem-natureza é um dos pontos centrais do problema ético
enfrentado na atualidade. O surgimento de pensamentos, teorias e modelos que
buscam revisitar e compreender os pilares da civilização e sua relação com o
entorno confluem em diversos caminhos. Uma vez mais a humanidade assusta-se na encruzilhada recorrente entre Eros e Tanatos. São várias interseções
possíveis, mas a eclosão de movimentos ecocêntricos, ainda que em processo
gestacional de teorização e fundamentação, parecem indicar que não há como
assegurar a vida e o futuro para todos os seres vivos, sem que se implemente, de
modo contundente, uma reversão na forma de enxergar o planeta.
Na América Latina, ainda sufocada por valores universais eurocêntricos,
sob a ameaça de um colapso social e ambiental, começa a se delinear uma nova
visão de mundo, orientada pelo Bem Viver.
Com essa nova perspectiva, a partir da compreensao de que a natureza é
um todo orgânico e inter-relacionado na qual gira a humanidade, ressurge a
esperança ou a tentativa de ressignificar-se a relação da humanidade com o
planeta terra e de implementar-se um modelo socioambiental comunitário e
solidário.
Nesse sentido, os ideais do Sumak Kawsaysão emblemáticos, a apontar
uma nova possibilidade de convívio, a partir de crenças, de cosmovisões e de
modelos mais próximos à raiz cultural de cada sociedade.
15
  La lección para la epistemologia es ésta: no trabajar con conceptos estables. No eliminar la
contrainducción.   No   dejarse   seducir   pensando   que   por   fin   hemos   encontrado   la   descripción
correcta de ‘los hechos’, cuando todo lo que ha ocurrido es que algunas categorias nuevas han
sido adaptadas a algunas formas viejas de pensamiento, las cuales son tan familiares que
tomamos sus contornos por los contornos del mundo mismo.
Revisitar o Sumak Kawsayé buscar compreender a natureza sob uma
ótica sistêmica, restabelecendo parâmetros outrora esquecidos. A
constitucionalização de seus ideais indica que o sussurrar das vozes abafadas a
sangue e suor enfim ganharam repercussão e ecoam inquietações e
conclamações. Traz, sem duvida, possibilidades de entrever outros caminhos,
encontrar outras respostas e compreender as comunidades em sua singularidade
e particularidade.
 
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Texto retirado de: https://online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/4479/3951
Autores: Luciana Costa Poli e Bruno Ferraz Hazan