A APLICAÇÃO DO VERBETE 473 DA SÚMULA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E AS QUESTÕES CONCERNENTES À RESPONSABILIDADE DO TITULAR DO PODER ECONÔMICO EM SEDE DE DIREITO ECONÔMICO


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Ricardo Antônio Lucas Camargo

A APLICAÇÃO DO VERBETE 473 DA SÚMULA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E AS QUESTÕES CONCERNENTES À RESPONSABILIDADE DO TITULAR DO PODER ECONÔMICO EM SEDE DE DIREITO ECONÔMICO

 

Ricardo Antônio Lucas Camargo

 

Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais

Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico

 

 

Entendemos que o Supremo Tribunal Federal, ao externar seu posicionamento quanto à inaplicabilidade da verbete 473 de sua Súmula no respeitante às decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, rejeitando a inconstitucionalidade do artigo 55 da Lei 8.884, de 1994, adotou doutrina consentânea com a natureza de quase-tribunal reconhecida àquela autarquia, ainda aos tempos em que era órgão, pelo extinto Tribunal Federal de Recursos[1]. Isto não quer dizer que o referido verbete sumular não tenha aplicação no âmbito de outros órgãos e entidades da Administração Pública relacionados à política econômica. O INPI, por exemplo, ao verificar que o contrato de transferência de tecnologia poderia materializar uma hipótese de abuso do poder econômico, não está inibido de lançar mão do aludido verbete sumular para anular o registro. Também assim o Banco Central, no tocante à concessão do registro do capital estrangeiro em desatenção ao contido na Lei 4.131, de 1962. A questão que se nos põe é, trazendo outros subsídios além daqueles que nos ministra o Direito Administrativo, como reconhecer os pressupostos para a anulação do ato administrativo que venha a materializar comando contido em norma de Direito Econômico.

 

No que diz respeito à matéria posta sob exame do CADE, os supostos de fato para sua atuação são de tal complexidade técnica que somente através de procedimento contraditório específico poderão ser contraditados. WERTER FARIA[2] demonstra o porquê desta ritualística especial:

 

“A posição de domínio só pode ser determinada pela análise da relação de forças entre as empresas, real ou potencialmente concorrentes.

“Para isso, é necessário circunscrever o mercado quanto à área geográfica e o produto ou serviço em causa. Na aparição do mercado geográfico, incluem-se todas as empresas em condições operacionais homogêneas, em comparação com as da empresa que alegadamente exerce o poder de controlar o preço ou de restringir a concorrência. Na averiguação do produto ou serviço, consideram-se as suas características, que tornam possível a satisfação de necessidades idênticas e a substituição deles pelos consumidores, bem como a elasticidade cruzada da procura (variação percentual desta e variação percentual do preço).”

 

A absorção do mercado relevante impõe o exame da existência, em determinada área geográfica, de determinados produtos ou serviços que possam ser substituídos por outros, de sorte a que se atenda integralmente às necessidades a que se dirigem[3]. De acordo com NEIDE MALARD[4], tais circunstâncias se comprovam tendo em vista os seguintes elementos fácticos: estrutura e desempenho do mercado.

 

A estrutura diria respeito à existência de barreiras à entrada de novos competidores oriundas de vantagens que permitam à empresa dominante fruir de custos de produção ou distribuição menores que os demais contendores, facilidades de acesso ao capital, vantagens resultantes da diferenciação de produtos, integração vertical da empresa e seu avanço tecnológico.

 

Já o desempenho toca às relações custo/preço, respostas da demanda, introdução de tecnologia, investimentos da indústria.

 

Tais elementos são antecedentes lógicos da verificação da absorção do mercado relevante, justamente para que se não comprometa a capacidade de livre decisão – autonomia da vontade – própria do regime em que assegurada a liberdade de iniciativa, máxime em virtude de não se poder dizer, em linha de princípio, que o mercado se comporta sempre desta ou daquela forma. Assim, a anulação de uma decisão tomada em procedimento contraditório, em que assegurada a ampla defesa, somente poderia ser processada em outro procedimento contraditório, onde fosse assegurada ampla defesa. Por outro lado, não se pode, justamente por se estar diante de ato resultante de procedimento, pretender sua revogabilidade por questões de mera conveniência e oportunidade, porquanto há a definição de determinada atuação do titular do poder econômico como lícita ou ilícita[5].

 

É de se ter em mente que, malgrado decorra a decisão que reconhece ou nega a existência do abuso do poder econômico de um procedimento administrativo, os critérios para a verificação das conseqüências jurídicas do fato não se vinculam ao campo da pura discricionariedade do administrador, porquanto o que se tem, em realidade, é a determinação do sentido da norma geral. A conformidade ou não da política econômica posta em prática tanto pelo agente privado como pelo Poder Público ao que estabelecido pelo ordenamento jurídico não pode ser equacionada apenas pelos princípios desenvolvidos pelo Direito Administrativo, porquanto este apenas verificaria se o ato foi praticado por agente competente, se os elementos constitutivos do ato estariam presentes e se o ato seria qualificado como discricionário ou vinculado. Em que pese a importância de tais considerações, a verificação do desvio de poder em um tal caso demandaria, efetivamente, os subsídios da disciplina que tem por objeto a regulamentação das medidas de política econômica: o Direito Econômico.

 

Mostra-se imprescindível para se perquirir da ocorrência ou não do desvio de poder quando da condenação ou da absolvição o exame do próprio ato submetido ao crivo do CADE, em termos bem diversos dos preconizados pelo Direito Obrigacional, porquanto a este, tanto sob o aspecto civil como sob o aspecto comercial, interessariam mais os termos do ato negocial em si do que os efeitos de sua prática no mercado, perquirição concernente aos efeitos da política econômica empresarial que refoge também ao Direito Administrativo[6]. De outra parte, tendo em vista que o constituinte proscreveu todas as formas de abuso do poder econômico, tendo elencado, de forma exemplificativa, alguns dos fins que o podem caracterizar, segue-se que a repressão a ele não se coloca no campo da oportunidade e conveniência, traduz-se em poder-dever do Poder Público.

 

A necessidade de decisões céleres foi determinante na adoção das chamadas leis-quadros e das diretivas, definindo comandos genéricos a serem detalhados por atos normativos infra-legais, expedidos, via de regra, pelo Estado-administração, bem como no cometimento a este de funções jurisdicionais[7] e legislativas[8]. A razão para isto estaria em que as decisões prontas que se reclamavam, muitas vezes, tinham de se embasar em critérios técnicos, e traduziam, sem sombra de dúvidas, as ações concretas no sentido de se levar adiante o endereço político condicionante da atividade estatal[9].

 

No que toca aos atos sujeitos à aplicação do verbete 473 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, cumpre verificar-lhes a teleologia. Dir-se-á que neste campo a discricionariedade seria total, nada restando ao Judiciário, pena de se desvirtuar a função judicante em função de Governo e que estaríamos diante de típica questão política. JACQUEMIN & SCHRANS[10], a este respeito, observam que a formação do magistrado, normalmente, é insuficiente para avaliar os fatos e circunstâncias econômicas que embasaram a decisão administrativa. FRANCESCO CARNELUTTI[11] observa, por seu turno, que a justiça administrativa busca o controle da legalidade e conveniência do ato, a partir de critérios hierárquicos. FÁBIO NUSDEO[12], embora reconheça a necessidade de se controlar o arbítrio da tecnocracia, baseado em LUHMANN, sobretudo, sustenta que o controle que o Judiciário estaria apto a exercer seria apenas sobre a fase procedimental e não sobre os efeitos materiais das decisões em sede de política econômica[13]. O Supremo Tribunal Federal, ao indeferir medida cautelar em ação direta que investia contra anistia de contratos de mútuo concedida por lei de iniciativa parlamentar, parece ter sinalizado neste sentido[14]. AURÉLIO WANDER BASTOS[15] observa que, historicamente, o Judiciário se formou com o potencial necessário à solução de conflitos interindividuais. Extravasando a situação os conflitos entre particulares e passando ao plano coletivo, vê-se o Judiciário na kafkiana situação de ter de resolver os conflitos sem estar aparelhado para tanto. É de se ter presente que os atos denominados “políticos”, no que atingissem a direitos individuais, repercutindo no conteúdo de relações jurídicas, sempre se consideraram subsumíveis ao crivo jurisdicional[16]. JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO[17], a propósito, salienta que o Governo não se confunde necessariamente com o Poder Executivo, mas diz com a direção dos trabalhos do pessoal da máquina pública na concreção do modelo de bem-estar constitucionalmente definido. Além do mais, sustentar, peremptoriamente e sem qualquer temperamento, que o juízo técnico não pode ser examinado pelo Poder Judiciário implicaria uma verdadeira substituição do juiz pelo perito, cujo pronunciamento ficaria inclusive, por este raciocínio, a salvo de quaisquer impugnações das partes. Esta, aliás, a principal razão para que MAURO CAPPELLETTI[18] sustente que a não vinculação do juiz ao laudo – entre nós também adotada, como se vê no artigo 436 do Código de Processo Civil de 1973 – traduz inequívoca forma de garantir-se a materialização do contraditório. Por isto que se nos entremostra de impossível adesão o ponto de vista de FÁBIO NUSDEO[19] quanto ao controle jurisdicional das medidas de política econômica se cingir apenas ao aspecto procedimental. Tal postura confina a política econômica ao âmbito do Poder Executivo, e não considera que de medidas procedimentalmente adequadas podem advir conseqüências antagônicas ao estabelecido em normas de nível superior. EROS ROBERTO GRAU[20], por seu turno, observa ser inconcebível pretender-se que a última palavra em termos de interpretação da norma jurídica seja dada ao administrador, sem que o juiz a possa corrigir, ao argumento da discricionariedade.

 

Cabe trazer o tema da responsabilidade dos agentes econômicos públicos e privados pelas quebras decorrentes da adoção de uma política econômica ruinosa ao desenvolvimento empresarial, sem qualquer benefício para a população[21]. Como recorda MARIA ALICE COSTA HOFMEISTER[22], “o homem vive em sociedade e exercita sua liberdade. Todavia, há que se coadunar seus atos e seus comportamentos com os praticados por outrem. Esta questão da coexistência humana põe-se desde o início dos séculos ao direito, não só em sua forma atual, como nas expressões jurídicas primitivas que o homem conheceu e vivenciou”. Não se trata, propriamente, de responsabilidade em que considerado o elemento “culpa”, mas sim em que considerado o elemento “risco”, recordando-se aqui o pressuposto estabelecido por RUY CIRNE LIMA[23]:”a culpa supõe que o agente tenha ou deva ter conhecimento pleno de todos os fatores e circunstâncias, capazes de determinar os efeitos e os resultados do ato. [...] O risco, pelo contrário, supõe que o agente não possa ter conhecimento pleno de todos os fatores e circunstâncias, suscetíveis de determinar os efeitos e resultados do ato, criando-se, portanto, com a prática do ato, um risco, quer dizer, a possibilidade de efeitos ou resultados imprevistos”. Mas há de ser considerado, evidentemente, em se tratando de risco, a evitabilidade ou inevitabilidade do efeito, bem como a exigibilidade ou inexigibilidade de outra conduta. E, de outra banda, considerando as próprias razões postas por WILSON MELO DA SILVA[24] para a adoção da responsabilidade objetiva – “seria ela ditada, portanto, por imperativos de alta política social, preservativos da paz pública, indispensáveis ao harmônico e tranqüilo desenvolvimento das atividades humanas e também pelas necessidades mesmas do bem comum em sentido mais lato” -, é evidente que não se há de converter a responsabilização em instrumento de enriquecimentos ou de mera vindita, mas sim de reparação efetiva de sacrifícios que se mostrem desproporcionais.

 

Grandes investimentos mal projetados, alienação de bens públicos, alterações bruscas da política econômica hão que encontrar reparação pronta, uma vez que, mesmo não eliminado o risco ínsito à atividade da iniciativa privada, os efeitos que se possam imputar à ação humana, no contexto do Estado de Direito, ensejam responsabilidade.

 

Corroborando esta tese, abstração feita do caso concreto – pois o recurso foi desprovido tendo em vista que o devedor impetrante não fez o ajuste de contas no prazo estabelecido, apesar de acobertado por liminar concedida pelo relator do mandado de segurança originário -, o voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, ao conduzir a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do recurso em mandado de segurança 6.183[25]:

 

“O compromisso público assumido pelo Governo através de seu Ministro da Fazenda, o condutor da política financeira do país, e com a assistência dos estabelecimentos de crédito diretamente envolvidos, presume-se tenha sido celebrado para ser cumprido. Se ali ficou estipulado que as execuções dos créditos do Banco do Brasil seriam suspensas por noventa dias, desde que o devedor se dispusesse a um acerto de contas, é razoável pensar que este seria o comportamento futuro do credor, pelo simples respeito à palavra empenhada no documento público levado ao conhecimento da Nação”.

 

Em se tratando da Súmula 473/STF, esta preocupação recrudesce. Com efeito, a revogação do ato administrativo através do qual se pretendia levar a cabo determinada medida de política econômica por razões de conveniência e oportunidade muitas vezes pode dizer respeito a um juízo técnico que não se acha infenso à apreciação judicial. Pode-se trazer como exemplo uma portaria do Ministério da Fazenda determinando a realização de empréstimos no exterior por entidades da Administração indireta que vigore durante, digamos, dois anos. A razão de ser da mencionada portaria pode ser a alegada inconveniência de se transferirem recursos do Tesouro para tais entidades – juízo, a princípio, discricionário – e a incapacidade do setor financeiro interno para atender à demanda de recursos – matéria de fato, mas presumível, em virtude da fé pública que beneficia as manifestações oficiais, nos termos do artigo 364 do Código de Processo Civil de 1973 e do inciso II do artigo 19 da Constituição brasileira de 1988, presunção esta que pode ser elidida mediante prova em sentido contrário[26] -. Cessada a vigência da portaria, ou revogada por razões de conveniência e oportunidade, os empréstimos realizados, em princípio, continuam válidos, até por força da garantia constitucional do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, referida expressamente na Súmula sob comentário, em se tratando de revogação[27]. De repente, os débitos decorrentes de tais empréstimos sofrem um considerável aumento: não apenas os juros como a própria política cambiária governamental, desvalorizando a moeda corrente, são determinantes. A quem imputar, assim, a responsabilidade por tais desmandos com os recursos provenientes do contribuinte? Ao Estado, que foi o maior lesado, e que depois se viu na contingência de se desfazer de seu patrimônio? Aos credores, que confiaram na palavra das empresas mutuarias e não podem deixar de receber o que por direito lhes pertence, até por força do princípio da boa fé? Ás empresas estatais, que mais não fizeram que atender a quem deteria a função constitucional de direção superior da Administração Pública? Ou, pelo contrário, ao eventual ocupante da posição de mando, que, demonstrando um total desprezo pela coisa pública, criou esta situação de risco para o Erário e deve, por isto, ressarci-lo? Outro não é o sentido deste alerta estampado por WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA[28]:

 

“Um problema é o das dívidas feitas pela própria incúria de maus administradores pelas quais estes, sim, deveriam ser responsabilizados, e outro é o de alienar-se o patrimônio nacional pela situação reinante”.

 

Outrossim, um ato administrativo aparentemente lícito pode se encontrar viciado em sua finalidade, produzindo efeitos contrários ao projeto constitucionalmente estabelecido. No que diz respeito às medidas de política econômica, todas as vezes em que um ato for apto a produzir efeitos que contradigam os dispositivos e princípios que compõem a Constituição Econômica, deverá ser anulado, assegurado, contudo, a seus beneficiários o direito à ampla defesa, como observado pelo Supremo Tribunal Federal[29]. Mas, de qualquer sorte, é de sempre ser recordado que “quando o ato ofende princípios básicos da ordem jurídica, princípios garantidores dos mais elevados interesses da coletividade, é bem de ver que a reação deve ser mais enérgica, a nulidade deve ser de pleno direito, o ato é nulo”[30], por isto que “não podem ser sanados pela vontade das partes, pois não se permite a estas sobrepor-se à vontade do legislador”[31].

 

O plano, aprovado por lei, seguramente se mostra como um parâmetro hábil para se obviarem litígios a respeito de serem os programas governamentais postos em prática voltados ao bem-estar da população ou à perseguição de objetivos puramente eleitoreiros[32]. JOSÉ AFONSO DA SILVA[33] já fazia notar, na vigência da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, a necessidade do estabelecimento de normas procedimentais para o controle econômico da execução orçamentária, apontando como exemplo o Decreto 68.993/71, que previu o programa de acompanhamento da execução das metas e bases para a ação do Governo, cabendo ao órgão central do sistema de planejamento e orçamento, nos termos do § 1º do artigo 23 do Decreto-lei 200, de 1967, organizar mecanismo de controle que permita coordenar o bom funcionamento do programa, recebendo dos órgãos elencados no Anexo I do referido Decreto – todos eles ligados à consecução da política econômica – relatórios sobre a execução de políticas sob sua responsabilidade. Com base nos relatórios setoriais de acompanhamento financeiro e acompanhamento geral, o órgão central deveria apresentar relatório sintético à Presidência da República sobre os resultados da execução das metas e bases no exercício.

 

Uma questão relevante que surgiria seria a da efetivação de determinada medida de política econômica à míngua de anterior planejamento e suas conseqüências em face dos respectivos destinatários. A regra da irreversibilidade conjugada com a regra da precaução é que serão o norte do intérprete. A despeito do aparente conflito entre a segurança jurídica e a legalidade, hão que ser verificados os dados que conduzam à convicção de que houve a boa fé de quem foi beneficiado com a realização das despesas, o que de modo algum afasta a responsabilidade de quem as ordenou[34]. Para LUÍS HENRIQUE DOS ANJOS & WALTER JONE DOS ANJOS[35], “o enunciado que a boa-fé objetiva traz para nortear as relações jurídicas administrativas é de que tanto a Administração como os administrados estão impedidos de optar por determinada conduta a qual implique um resultado concreto inesperado pelos dados objetivos que o caso ofereça”. É sempre bom recordar, com WILSON MELO DA SILVA[36], neste particular, que “as razões apenas do coração, essas razões que a própria razão desconhece, como no dito de Pascal, evidentemente não se poderiam erigir em razões de decidir hors et au delà du Code”. Os dados devem ser perquiridos de acordo com o critério da persuasão racional, adotado pelo artigo 131 do Código de Processo Civil e pelo artigo 157 do Código de Processo Penal, sem lugar para os suspeitos de costume ou para a tolerância ilimitada para os amigos[37]. Para se chegar à convicção de que a boa fé do beneficiário seria apta a fundamentar a não-cessação do benefício, far-se-ia mister perquirir a conduta do homem médio em relação aos valores que se acham em jogo, bem como a própria consciência da ilicitude potencial dos fins e dos meios empregados – regras da experiência, ministradas pelo que normalmente acontece (Código de Processo Civil de 1973, artigo 335), e que podem, inclusive, influir na distribuição do ônus da prova[38] -. Nem se diga que tal assertiva implica generalizar a presunção de má fé, porquanto, como observou HERMES LIMA[39], “a presunção baseia-se no que pode ter sido provável”. Além do mais, a aparência de direito nascida da boa fé mereceu as seguintes palavras de VICENTE RÁO[40]: “a aparência de direito se caracteriza e produz os efeitos que a lei lhe atribui somente quando realiza determinados requisitos objetivos e subjetivos. São seus requisitos essenciais objetivos: a) uma situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fora uma segura relação de direito; b) situação de fato que assim possa ser considerada segundo a ordem normal e natural das coisas; c) e que, nas mesmas condições acima, apresente o titular aparente como se fora o titular legítimo, ou o direito como se realmente existisse. São seus requisitos subjetivos essenciais: a) a incidência em erro de quem, de boa fé, a mencionada situação de fato como direito considera; b) a escusabilidade desse erro apreciada segundo a situação pessoal de quem nele incorreu”. A invalidação das despesas dependeria, assim, de outro suporte que não o do Direito Financeiro, mas o do Direito Econômico, porquanto os efeitos econômicos da operação realizada podem ser tais que a sua reversão, além de impossível facticamente, gere conseqüências juridicamente indesejáveis.

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[1] Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 1.094. Relator: Min. Carlos Mario Velloso. Diário de Justiça da União. Brasília, 20 abr 2001.

[2] Domínio de mercado, acordos restritivos da concorrência e concentração de empresas. Arquivos do Ministério da Justiça. Brasília, v. 48, n. 185, p. 176, jan/jun 1995.

[3] MALARD, Neide Teresinha. Integração de empresas: concentração, eficiência e controle. Arquivos do Ministério da Justiça. Brasília, v. 48, n. 185, p. 220, jan/jun 1995.

[4] Op. cit. p. 216.

[5] CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Direito Econômico e reforma do Estado – 2 – o “liberalismo” na experiência francesa, alemã, italiana e comunitária. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, Data, 1994, p. 15-16.

[6] SOUZA, Washington Peluso Albino de. Arnoldo Wald e o Direito Econômico. In: PLURES. O Direito na década de 1990: novos aspectos – estudos em homenagem ao Prof. Arnoldo Wald. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 456.

[7] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria do Governo. Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, v. 32, n. 66, p. 129-134, jun 1988.

[8] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do Poder Executivo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 52-54; SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 46.

[9] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Op. cit. p. 79; ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do Direito Administrativo Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 379-380.

[10] O Direito Econômico. Trad. Manoel Campos & Alexandre de Freitas. Lisboa: Vega, 1974, p. 49-50.

[11] Sistema di Diritto Processuale Civile. Padova: CEDAM, 1936, v. 1, p. 222-233.

[12] Fundamentos para uma codificação do Direito Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 150-151.

[13] Id., ibid., p. 165-166.

[14] Medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade 2.072. relator: Min. Octávio Gallotti. Diário da Justiça da União. Brasília, 19 set 2003.

[15] Conflitos sociais e limites do Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Eldorado, 1975, p. 145.

[16] FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 181-182.

[17] Op. cit. p. 67.

[18] Processo e ideologie. Bologna: Il Mulino, 1969, p. 596-597.

[19] Op. cit. p. 165-166.

[20] Crítica da discricionariedade e restauração da legalidade. In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes [org.]. Perspectivas do Direito Público – estudos em homenagem a Miguel Seabra Fagundes. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 328-329.

[21] LIMA, Vinicius Moreira de. O alcance social do Direito Econômico. In: PLURES. Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional – estudos jurídicos em homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995, p. 188-189.

[22] O dano pessoal na sociedade de risco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 115; TEPEDINO, Gustavo..Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 57

[23] Princípios de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 198.

[24] Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 152; ANJOS, Luís Henrique Martins dos & ANJOS, Walter Jone. Manual de Direito Administrativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 356.

[25] Diário de Justiça da União. Brasília, 18 dez 1995.

[26] ANJOS, Luís Henrique Martins dos & ANJOS, Walter Jone. Op. cit. p. 131.

[27] ROSAS, Roberto. Direito sumular. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 206.

[28] Minas, minérios, mineiros...Estado de Minas. Belo Horizonte, 7 dez 1996.

[29] Recurso extraordinário 158.543. relator: Min. Marco Aurélio Mendes de Farias Mello. Diário de Justiça da União. Brasília, 6 out 1995.

[30] BEVILACQUA, Clóvis. Teoria geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, p. 257.

[31] RIZZARDO, Arnaldo. Da ineficácia dos atos jurídicos e da lesão no Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 5; SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, [s/d], v. 3, p. 256. ROSAS, Roberto. Op. cit. p. 207.

[32] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Acórdão 11.523. Recurso especial 11.523. Relator: Min. Jesus Costa Lima. Jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral. Brasília, v. 7, n. 2, p. 106-111, abr/jun 1996; SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 194.969-5/1. relator: Des. Caetano Lagrasta Neto. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. São Paulo, v. , n. 262, p. 12-16, 2003.

[33] Orçamento-programa no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 357-358.

[34] SILVA, Almiro do Couto e. Os princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 18, n. 46, 28, 1988; PINTO, Luiz Vicente de Vargas & CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. O desligamento voluntário apesar da Constituição. Jornal Trabalhista. Brasília, v. 13, n. 639, p. 1.397-1.396, dez 1996.

[35] Op. cit. p. 68.

[36] Op. cit. p. 159. CARL SCHMITT, ideologicamente aparentado com o autor citado nesta nota, corretamente observa que “la protección juridica del Estado legislativo radica esencialmente en la reserva de la ley, cuya fuerza protectora necesita, a su vez, como una base indispensable, la confianza en el legislador y concretamente en la confianza del legislador del Estado legislativo parlamentario, que resuelve por mayoría simple” (Legalidad y legitimidad. Trad. José Diaz García. Madrid: Aguilar, 1971, p. 116)..

[37] MIRANDA, Vicente. Poderes do juiz no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 220; AZEVEDO, Plauto Faraco de. Justiça distributiva e aplicação do Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1983, p. 94; SCHMITT, Carl. Legalidad y legitimidad. Trad. José Díaz García. Madrid: Aguilar, 1971, p. 46; KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p. 203; JHERING, Rudolf von. A finalidade do Direito. Trad. José Antonio Faria Correa. Rio de Janeiro: Rio, 1979, v. 1, p. 190; MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2004, p. 529-530; FARIA, Anacleto de Oliveira. Do princípio da igualdade jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 49; CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Interpretação jurídica e estereótipos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003, p. 14, 73-74 e 83-84. É interessante observar que em plena restauração das forças adversas à Revolução Francesa, a possibilidade jurídica de apor a pecha de infâmia em razão das crenças entre cristãos, nos principados alemães, desapareceu, de acordo com FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY: “el acto de confederación de 1815 cambió el estado del asunto, estabeleciendo en todos los países de la confederación la igualdad civil y política para todos los miembros de las comuniones cristianas” (Sistema del Derecho Romano actual. Trad. Jacinto Mesía & Manoel Poley. Madrid: Centro Editorial de Góngora, [s/d], v. 2, p. 56). Para terminarmos as transcrições desta nota, a advertência posta pelo CONSELHEIRO ANTÔNIO JOAQUIM RIBAS: “a igualdade civil e política são conseqüências necessárias da igualdade religiosa. Pelo crime de havê-las desconhecido, bem como a liberdade e a unidade humana, força foi que perecesse o mundo antigo” [Direito Administrativo brasileiro. Brasília: Ministério da Justiça, 1968, p. 220].

[38] MITIDIERO, Daniel Francisco. Op. cit. p. 556; LIMA, Alcides de Mendonça. O dever de veracidade no Código de Processo Civil brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 54, n. 172, p. 46, jul/ago 1957; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 212; SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, v. 1, p. 283; MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, t. 4, p. 237; SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1976, v. 4, p. 53; AGUIAR, João Carlos Pestana de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, v. 4, p. 78-79; CRESCI SOBRINHO, Elicio de. O juiz e as máximas da experiência. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 82, n. 296, p. 432, out/dez 1986; MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras de experiência e conceitos jurídicos indeterminados. In: PLURES. Estudos jurídicos em homenagem ao Professor Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 606; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. 4, p. 30; ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, v. 2, p. 600; KNIJNIK, Danilo. Os standards do convencimento judicial: paradigmas para o seu possível controle. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 97, n. 353, p. 44, jan/fev 2001; SANTOS, Ernane Fidelis. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 3, t. 1, p. 18; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário 75.675/SP. Relator: Min. Aliomar Baleeiro. Diário de Justiça da União. Brasília, 13 dez 1976; idem. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial 38.678/RS. Relator: Min. Luiz Vicente Cernicchiaro. Diário de Justiça da União. Brasília, 21 fev 1994.

[39] Introdução à ciência do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1970, p. 57; BEVILACQUA, Clóvis. Op. cit. p. 253.

[40] Ato jurídico. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 243.