As ações afirmativas como efetivação do princípio da igualdade


Pormarina.cordeiro- Postado em 20 junho 2012

Autores: 
OLIVEIRA, Giovanni Campanha de

A situação de marginalização em que se encontram os negros, mulheres, deficientes e homoafetivos não se baseia em retórica, mas em dados alarmantes. Um país que tem como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária não pode se esquivar de intervir diretamente nesses problemas sociais.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição brasileira de 1988, assim como outras Constituições de democracias consolidadas pelo mundo, tem como princípio a igualdade. Esta é alicerce para todos os direitos humanos. Não há que se falar em democracia sem se ter como fundamento o princípio da igualdade. Em nosso ordenamento jurídico, o princípio supracitado está inserto no art. 5º, caput, que prescreve: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)”, além de estar previsto no art. 3°, inciso IV, que coloca como fundamento da República a promoção do “bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O conceito de igualdade, assim como os outros conceitos científicos, evolui com o tempo. A igualdade defendida pelo liberalismo era a igualdade formal, que tinha como fim abolir os privilégios existentes na própria lei. Os liberais defendiam que todos deveriam ser iguais perante a lei, possuindo os mesmos direitos garantidos no ordenamento jurídico. Com o passar dos anos, com a evolução da sociedade e dos seus anseios, a igualdade meramente formal passou a ser insuficiente. O princípio da igualdade passou a conter a previsão de ações que o afirmasse, que o tornasse efetivo não apenas na letra da lei, mas também na realidade fática. Nesse contexto, surgiu a igualdade material, que visa garantir a justiça social, proporcionando a igualdade de oportunidades, bem como condições reais de vida. Ademais, passou-se a não mais reconhecer apenas uma igualdade estática, negativa, mas uma igualdade dinâmica, positiva, que possui a intrínseca missão de promover uma igualação jurídica. Assim, começou-se a exigir não apenas o tratamento igual ao igual, mas o desigual aos desiguais na medida de sua desigualdade.

 

A própria existência de um princípio constitucional que garante a igualdade em nosso ordenamento jurídico já nos leva a concluir que existem desigualdades. Por isso, cabe ao poder público criar mecanismos que façam com que essas desigualdades sejam atenuadas. Dentre esses mecanismos, estão as ações afirmativas. Tais ações são, grosso modo, instrumentos criados pelo poder público que, de forma transitória, visam corrigir deformações sociais, tentando incluir socialmente os grupos taxados como minorias, tais como negros, mulheres, homoafetivos, portadores de deficiência física.

O objetivo principal do presente trabalho é fazer uma análise da legitimidade das ações afirmativas por meio do princípio da igualdade. Para tanto, será feito um estudosobre a constitucionalidade do instituto no ordenamento jurídico brasileiro e sobre a legitimidade do mesmo em relação aos principais tratados e convenções internacionais acerca do tema. Ao final, apresentaremos um breve panorama sobre a situação dos negros, homoafetivos, mulheres, portadores de deficiência no país, bem como os desafios e as perspectivas da aplicação das ações afirmativas no Brasil.


2. PRINCÍPIO DA IGUALDADE

2. 1. CONCEITO DE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL

A expressão princípio possui múltiplos sentidos,além de ser um tema bastante controverso no Direito. Apesar disso, iremos apresentar um conceito que irá nos ajudar na compreensão do princípio da igualdade, em seu sentido formal e material, e na sua aplicação ao caso concreto, sem ter o intuito, porém, de problematizar ou aprofundar na questão.

Os princípios são

ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são [como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira] “‘núcleos de compensação’ nos quais confluem valores e bens constitucionais”. Mas, como disseram os mesmo autores, “os princípios que começam por ser a base de normas jurídicas, podem estar positivadamente incorporados, transformando-se em normas-princípios e constituindo preceitos básicos da organização constitucional. (CANOTILHO E MOREIRA, 1984 apud AFONSO DA SILVA, 2006)

Canotilho divide os princípios constitucionais em político-constitucionais e jurídico-constitucionais. Os princípios político-constitucionais “traduzem as opções políticas fundamentais conformadoras da Constituição”. Na CF/88, esses princípios estão contidos nos artigos 1° ao 4°. Já os jurídico-constitucionais “são princípios constitucionais gerais informadores da ordem nacional. Decorrem de certas normas constitucionais e, não raro, constituem desdobramentos (ou princípios derivados) dos fundamentais (...)”. De acordo com o constitucionalista português, os direitos fundamentais, assim como o princípio da igualdade, fazem parte dos político-constitucionais (CANOTILHO E MOREIRA, 1984 apud AFONSO DA SILVA, 2006).

2. 2. CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A efetivação do princípio da igualdade é de fundamental importância para a garantia da existência do Estado Democrático de Direito. Não se concebe uma sociedade democrática sem a aplicação desse princípio, que é um dos seus fundamentos. José Luiz Quadros de Magalhães defende ser a igualdade jurídica o alicerce dos direitos individuais, tendo como função a transformação dos direitos dos privilegiados em direitos de todos os seres humanos. O constitucionalista acredita que esse princípio não se restringe aos direitos individuais, fundamentando também todos os direitos humanos (MAGALHÃES, 2004). Nessa mesma linha está José Joaquim Gomes Canotilho, que coloca o princípio da igualdade como “um dos princípios estruturantes do regime geral dos direitos fundamentais (...)” (1993).

Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que a Lei não pode assegurar privilégios ou perseguições, deve, porém, ser instrumento que regula a vida social tratando de forma equitativa todos os cidadãos. O autor afirma que esse deve ser o conteúdo “político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes” (MELLO, 1999).

O princípio em tela tem como fundamento na Constituição da República Federativa do Brasil o art. 5º, caput, qual seja: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, a segurança e a propriedade, (...)" e, além disso, tem como referência o art. 3°, inciso IV, para o qual “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” é um fundamento da República.Assim, percebe-se a importância dada pelos constituintes brasileiros ao princípio da igualdade, colocando-o como base, estrutura para a formação da república (MAGALHÃES, 2004).

ManoelGonçalves Ferreira Filho, dando a sua interpretação sobre o princípio da igualdade, defende que o tratamento dos iguais deve ser diferente em relação aos que se encontra em estado de desigualdade:

O princípio da isonomia oferece na sua aplicação à vida inúmeras e sérias dificuldades. De fato, conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual ao que se acham em desigualdade de situações. A justiça que proclama tratamento igual aos para os iguais pressupõe tratamento desigual dos desiguais. Ora, a necessidade de se desigualar os homens em certos momentos para estabelecer no plano do fundamental a sua igualdade cria problemas delicados que nem sempre a razão humana resolve adequadamente“(FERREIRA FILHO, 1986 apud MAGALHÃES, 2004, p.91).

Com efeito, percebe-se a importância do postulado aristotélico que conceitua a igualdade como tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Canotilhotambém defende a importância de se tratar de forma igual os indivíduos de mesmas característicasno que tange à aplicação e previsão da lei. Apesar disso, o autor português afirma que

o princípio da igualdade, reduzido a um postulado de universalização, pouco adiantaria, já que ele permite discriminação quanto ao conteúdo (exemplo: todos os indivíduos de raça judaica devem ter sinalização na testa; todos os indivíduos de raça negra devem ser tratados igualmente em escolas separadas dos brancos) (1993, p.563).

Assim, a igualdade reduzida ao seu sentido formal, pode implicarno “simples princípio da prevalência da lei em face da jurisdição e da administração”. A fim de resolver o problema acima mencionado, Canotilho afirma ser importante delimitar os contornos do princípio da igualdade em seu sentido material, não ignorando, claro, a importância do seu sentido formal (1993, p.564).

A justiça formal, que se relaciona com a igualdade formal, consiste em “um princípio de ação, segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma” (PERELMAN, 1963 apud SILVA, P.213), já a justiça material, intrinsecamente ligada à igualdade material, é “a especificação da justiça formal, indicando a característica constitutiva da categoria essencial, chegando-se às formas: a cada um segundo a sua necessidade; a cada um segundo os seus méritos; a cada um a mesma coisa”. Assim, por existir desigualdades, é que se busca a igualdade material, tendo como objetivo “realizar a igualização das condições desiguais” (SILVA, 2006, p.214)

O art. 1° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão prescreve que os homens nascem e crescem iguais em direito. Tal declaração consagra a igualdade formal no campo político, de caráter negativo, com o intuito de simplesmente abolir os privilégios de classe. Tal norma implicou sérias desigualdades econômicas, haja vista que se pautava numa visão individualista, vinda de uma sociedade liberal. Desde o império, nossas constituições também se baseavam na igualdade perante a lei, tratando todos igualmente sem levar em consideração a distinção entre os diferentes grupos (SILVA, 2006).

A atual Constituição da República Federativa do Brasil garante reais promessas de igualdade material. Isso se dá no art. 5°, I, quando tenta igualar em direitos e obrigações os homens e as mulheres; no art. 7°, XXX e XXXI, que veda distinções fundadas em certos valores tais como “diferenças de salários, de exercícios de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”.Prevê ainda, de forma programática, a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3°, III), repulsa à discriminação (art. 3°, IV), dentre outros (SILVA, 2006, p.211/212).

Kildare Gonçalves Carvalho acredita que a igualdade formal, vista como igualdade de oportunidades e igualdade perante a lei, é insuficiente para que se efetive a igualdade material, definida pelo autor como “igualdade de todos os homens perante os bens da vida (...)”. O constitucionalista, por acreditar que os homens são desiguais em capacidade, ao lado de fatores como compleição física e estrutura psicológica, acredita ser difícil a efetivação da igualdade formal (CARVALHO, 2004, p.402). Assim, ele crê ser incorreto o enunciado do art. 5° da CF/88, quando diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”, haja vista que “prever simetria onde há desproporção visível não é garantir igualdade real, mas consagrar desigualdade palpitante e condenável”(MARINHO, 1992 apud CARVALHO, 2004, p.402).

Canotilho defende que o sentido material deve se aliar à ideia de igualdade relacional,

pois ela pressupõe uma relação tripolar (PODLECH):  o indivíduo a é igual ao indivíduo b, tendo em conta certas características. Um exemplo extraído da jurisprudência portuguesa: o indivíduo a(casado) é igual ao indivíduo b(solteiro) quanto ao acesso ao serviço militar na Marinha, desde que reúna as condições de admissão legal e regularmente exigidas (características C1, C2 E C3). (CfrAc TC 336/86 e, mais recentemente, Acs. TC 186/91 e 400/91) (CANOTILHO, 1993, p.564).

A fórmula “o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente” não contém critério material para que se realize um juízo de valor em relação à igualdade ou desigualdade. Uma das maneiras de se valorar a relação de igualdade é por meio da proibição geral do arbítrio, que é a violação arbitrária da igualdade, ou melhor, quando a diferenciação entre indivíduos ou a desigualdade de tratamento tem origem na arbitrariedade. Apesar disso, a proibição geral do arbítrio é insuficiente caso não seja fundada em critérios que possibilitem a valoração das relações de igualdade. Assim, deve-se existir um critério material objetivo para se analisar o tratamento igual ou desigual. A proibição geral do arbítrio não deve ser a única forma de se interpretar a igualdade, deve ser apenas uma autolimitação da atuação do juiz, não impossibilitando, pois, a busca por formas mais adequadas ao caso concreto. Para se buscar uma análise mais adequada, deve-se aliar a necessidade de valoração ou de critérios de qualificação com a necessidade de encontrar elementos de comparação subjacentes ao caráter relacional do princípio da igualdade.  (CANOTILHO, 1993).

Celso Antônio Bandeira de Mello acredita que para que ocorra uma discriminação legal, respeitando o princípio da isonomia, deve se aliar quatro elementos, que são: a) que a diferenciação não atinja apenas a um indivíduo; b) que as situações ou pessoas afetadas pela diferenciação sejam realmente distintas entre si; c) “que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecidas pela norma jurídica”; d)

“que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulta em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público” (MELLO, 1990 apudCARVALHO, 2004, p. 403).

Manoel Gonçalves Ferreira Filho também defende que o princípio da igualdade proporciona uma limitação ao legislador e uma regra de interpretação:

Como limitação ao legislador, proíbe-o de editar regras que estabeleçam privilégios, especialmente em razão da classe ou posição social, da raça, da religião, da fortuna ou do sexo do indivíduo. É também um princípio de interpretação. O juiz deverá dar sempre à lei o entendimento que não crie privilégios de espécie alguma. E, como juiz, assim deverá proceder todo aquele que tiver de praticar uma lei. (FERREIRA FILHO, 1990 apud CARVALHO, 2004, P.403)

O princípio da igualdade, sob o ponto de vista jurídico constitucional, “assume relevo enquanto princípio de igualdade de oportunidades (Equalityofopportunity) e de condições reais de vida”. Essa igualdade está comprometida com uma política de justiça social e com a garantia de normas constitucionais tendentes à efetivação de direitos econômicos, sociais e culturais, bem como com o princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, deve ser visto não apenas como fundamento antropológico-axiológico contra discriminações, mas também como princípio “impositivo de compensação de desigualdade oportunidades e como princípio sancionador da violação da igualdade por comportamentos omissivos (inconstitucionalidade por omissão)” (CANOTILHO,1993, P.568).

Nas palavras da ministra Cármem Lúcia Antunes Rocha, o que se busca não é uma igualdade que

frustre e desbaste as desigualdades que semeiam a riqueza humana da sociedade plural, nem se deseja uma desigualdade tão grande e injusta que impeça  o homem de ser digno em sua existência e feliz em seu destino. O que se quer é a igualdade jurídica que embase a realização de todas as desigualdadeshumanas e as faça suprimento ético de valores poéticos que o homem possa se desenvolver. As desigualdades naturais são saudáveis, como são doentes aquelas sociais e econômicas, que não deixam alternativas de caminhos singulares a cada ser humano único. (ROCHA, 1990 apud SILVA, 2006, p.213)

Marciano Seabra de Godoi esclarece que é melhor conceituar a igualdade como “tratar os indivíduos como iguais” do que tratar os indivíduos igualmente. O autor, citando Habermas, diz que não deve ocorrer necessariamente uma igualdade na forma de tratamento prevista em lei, deve existir, sim, uma equiparação nos direitos e “na forma efetiva em que participam do processo de elaboração da norma” (GODOI, 1999 apud SOUZA CRUZ, 2005, p.12).

Por fim, só se pode conceber uma sociedade como democrática a partir do momento em que se garante a igualdade. A possibilidade de se permitir a inclusão de diferentes projetos de vida numa sociedade pluralista, ainda que assim se permita a aplicação desigual do direito por meio de mecanismos de inclusão, é que permite a autocompreensão de uma sociedade como democrática (GALUPPO, 2002 apud SOUZA CRUZ, 2005).

 

3. DISCRIMINAÇÕES: CONCEITOS E (I)LEGITIMIDADE

3.1. DISCRIMINAÇÕES ILÍCITAS

Antes de se aprofundar no tema proposto, que é as ações afirmativas, é importante definir o conceito de discriminação e fazer uma diferenciação entre as possibilidades de se discriminar de forma lícita e ilícita. O constitucionalista Álvaro Ricardo de Souza Cruz, se valendo das convenções internacionais sobre a eliminação de todas as formas de discriminação, assim define a referida expressão:

Entendemos a discriminação como toda e qualquer forma, meio, instrumento ou instituição de promoção da distinção exclusão, restrição ou preferência baseada em critérios como raça, cor da pele, descendência, origem nacional ou étnica, gênero, opção sexual, idade, religião, deficiência física, mental ou patogênica que tenha o propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer atividade no âmbito da autonomia pública ou privada (SOUZA CRUZ, 2005, p.15).

A discriminação,em suas diversas manifestações, se configura como forma de “valorização generalizada e definitiva de diferenças, reais ou imaginárias, em benefício de quem a pratica, não raro como meio de justificar um privilégio”. A discriminação é um apontamento ou uma invenção de uma diferença, que é valorizada ou absolutizada, por meio de uma atividade intelectual com o intuito de obter um privilégio ou praticar uma agressão (GOMES, 2001, p.18).

 

A discriminação intencional (ou tratamento discriminatório), de acordo com o ministro Joaquim B. Barbosa Gomes, é a forma mais comum de se praticar essa agressão. A pessoa recebe um tratamento desigual e desfavorável na relação de emprego ou em outras atividades por causa de sua cor, raça, sexo, origem ou qualquer outro fator que a diferencie da maioria. Essa é uma modalidade que contém a maioria dos casos de discriminação e é a que grande parte das normas constitucionais ou infraconstitucionais antidiscriminatórias criadas se direcionam (GOMES, 2001).  

Ao se observar o Direito Comparado, percebe-se que a mera proibição dessas práticas discriminatórias não traz resultados satisfatórios. Essa medida é insuficiente haja vista ser praticada aliada à completa abstração de dois fatores importantes:

a) O aspecto cultural, psicológico, que faz com que certas práticas discriminatórias ingressem no imaginário coletivo, ora tornando-se banais, e, portanto, indignas de atenção salvo por aqueles que dela são vítimas, ora se dissimulando através de procedimentos corriqueiros, aparentemente protegidos pelo Direito; b) os efeitos presentes da discriminação do passado, cuja manifestação mais eloqüente consiste na tendência, facilmente observável em países de passado escravocrata e patriarcal, como o Brasil, de sempre reservar a negros e mulheres o posto menos atraente, mais servis do mercado do mercado (sic) de trabalho como um todo ou de um determinado ramo de atividade (GOMES, 2001, p.20).

Sob outro prisma, essa forma de discriminação, por ter como elemento a intenção, impõe a quem a alega o ônus da prova. Assim, em países como o Brasil, que possui uma manifestação discriminatória velada, dissimulada, ocorre um efeito nefasto nas políticas antidiscriminatórias adotadas, criando uma estigmatização do cidadão que tem a coragem de desafiar o status quo, gerando um isolamento e uma sensação de impotência em face do aparelho estatal que, “sendo por natureza hostil às suas reivindicações, utiliza-se do argumento processual da ausência da prova para tornar sem efeito as raras iniciativas individuais voltadas ao combate das práticas discriminatórias e racistas”(GOMES, 2001, p.20/21).

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, diferentemente do ministro Joaquim B. Barbosa Gomes, acredita que a discriminação intencional é uma forma rara de se discriminar no Brasil. Apesar disso, afirma o autor, essas manifestações são tipificadas pela legislação penal brasileira. O constitucionalista assevera que a “tentativa de se extirpar o mal da discriminação pela via penal beira o ridículo, uma vez que não temos conhecimento de alguém que tenha cumprido pena por condenação criminal com amparo nesta legislação” (SOUZA CRUZ, 2005, p.30).

Assim como a discriminação intencional, existe a discriminação de fato, que é bastante comum no Brasil. Ela se configura quando o discriminador a comete sem ter a consciência de estar afetando o outro. As piadas politicamente incorretas são um exemplo disso e estão se tornando cada vez mais comuns no país, além da “política de neutralidade e de indiferença do aparato estatal para com as vítimas de discriminação”. O mito da democracia racial brasileira é reforçado por essa forma de manifestação preconceituosa (SOUZA CRUZ, 2005, p.30/31).

Em certas situações, como ocorre nas relações de emprego, a discriminação é tão incontestável, que o Direito a considera como presumida ou manifesta. Tal forma de manifestação é considerada como “Prima Facie Discrimination”pelo Direito americano. Nesses casos, deixa de se aplicar a obrigatoriedade do ônus da prova aos ofendidos, que vão ao judiciário para obter alguma medida de caráter injuntivo ou declaratório. A ausência do ônus da prova, porém, não se aplica nas postulações de caráter indenizatório. Uma das formas de se constatar a discriminação supra é por meio de dados estatísticos: demonstra-se, por exemplo, a sub-representação de uma determinada minoria em certos setores de atividades tendo como base a representação social dos grupos dentro da sociedade ou no mercado de trabalho. A técnica apresentada para combater a “Prima Facie Discrimination” não é utilizada pelo Direito brasileiro, sendo, contudo, um importante instrumento de inclusão social do sistema jurídico americano (GOMES, 2001).

A forma mais comum de se combater a discriminação é a coibição de tratamento discriminatório advindos de atos concretos ou manifestação expressamente ilícita. Apesar disso, existe a discriminação indireta, que se configura como “práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas aparentemente neutras, porém dotadas de grande potencial discriminatório”. Essas práticas são conhecidas como impacto desproporcional ou adverso, e são, à luz de um conjunto expressivo de doutrinadores americanos, a forma mais perversa,

eis que dissimula, quase invisível, raramente abordada pelos Compêndios de Direito, voltadas em sua maioria ao tratamento do amorfo conceito de igualdade perante a lei, sem levar na devida conta o fato de que muitas vezes a desigualdade advém da própria lei, do impacto desproporcional que os seus comandos normativos pode ter sobre certas pessoas ou grupos sociais (GOMES, 2001, p. 23).

A teoria da discriminação por impacto desproporcional é de origem norte-americana e se baseia no princípio da proporcionalidade. Essa discriminação viola o princípio da igualdade material quando a sua incidência resulta em efeitos nocivos a determinados grupos sociais. Diferentemente da discriminação intencional, ela não possui o elemento intencionalidade. O que ocorre é a violação da igualdade sem o intuito deliberado de discriminar. São práticas já aceitas socialmente no cotidiano e, por esse motivo, não são percebidas pelas pessoas, sendo legitimadas até mesmo por operadores do Direito (GOMES, 2001).

Um bom exemplo da utilização da teoria do impacto desproporcional é a avaliação para ingresso em universidades por exame de proveniência escolar, ou seja, de quais escolas vem o aluno. Em primeira leitura parece que isto é absolutamente aceitável, entretanto considerando que a maioria negra provém de escolas consideradas de péssimo ou baixo nível, a medida toma um novo cunho porque em resultado possibilitará o ingresso apenas de pessoas brancas, pelo menos em sua maioria esmagadora (...) (ALMEIDA, 2005).

Além das discriminações já descritas, existe outra grave modalidade de diferenciação ilícita, qual seja a discriminação na aplicação do direito. Assim como na discriminação por impacto desproporcional, naquela, pelo menos em sua forma mais ostensiva, não se configura o fator intencionalidade no ato normativo ou na decisão concreta questionada (GOMES, 2001).

São duas as modalidades de discriminação na aplicação do direito. Numa primeira forma, existe uma discriminação, apesar de a “norma aplicável à situação concreta ser facialmente neutra, isto é, não trazer nenhum indicativo de que tenha sido adotada com o propósito de discriminar este ou aquele grupo socialmente excluído”. Para que se conclua pela ilicitude, é necessário fazer uma análise dos resultados obtidos com a aplicação da norma, tendo como observação o favorecimento desproporcional de um grupo em face de outro. Outra forma se dá quando “a lei ou ato normativo de regência de uma determinada relação jurídica, embora facialmente neutro, isto é, vazado em linguagem destituída de qualquer conotação discriminatória, pode no entanto ter sido concebido com o propósito não declarado de prejudicar um determinado grupo social”(GOMES, 2001, p. 27).

3.2. DISCRIMINAÇÕES E INCONSTITUCIONALIDADE

A discriminação não autorizada na Constituição da República brasileira é considerada como ato inconstitucional. José Afonso da Silva (2006, p.228) divide essa inconstitucionalidade em duas formas:

a)   Conceder benefício legítimo a uma determina parcela de pessoas ou grupos, discriminando-os de forma favorável em face de não auxiliar outros grupos ou pessoas em situação equivalente. O ato é inconstitucional por não tratar de forma equânime ambos os casos. Contudo, o ato é constitucional em relação ao grupo que foi beneficiado, já que possuía o direito de recebê-lo. É necessário estender o benefício aos discriminados que requererem diante do judiciário, analisando caso a caso.

b)   “Impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer outro sacrifício a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outras mesmas situações que, assim, permaneceram em condições mais favoráveis”. O ato também é inconstitucional por ferir a isonomia, porém, deve ser considerado inconstitucional para quantas as pessoas o solicitarem, haja vista que não é admissível em direito impor uma situação jurídica detrimentosa a todos, sendo considerada uma forma de constrangimento não permitida (SILVA, 2006, p.228/229).

3.3. DISCRIMINAÇÕES LÍCITAS

Em situações excepcionais, a discriminação é prevista pelo Direito. Para que ocorra a discriminação legítima é preciso existir o caráter inevitabilidade, seja pela situação ou atividade que exige a diferenciação, separando por princípio e uma dose de razoabilidade alguns grupos sociais, seja também por certas característicasexistentes em determinado indivíduo. A justificativa de se separar em certas atividades é a existência de uma natureza que impossibilite a inclusão de todos os grupos. A exclusão de homens ou mulheres é um exemplo utilizado pelo ordenamento jurídico brasileiro para se fazer essa diferenciação: é legalmente admissível a exclusão de homens para exercerem o cargo de guarda em presídio feminino e é previsto a restrição às mulheres de trabalharem em alguns cargos das Forças Armadas do país (GOMES, 2001).

A discriminação positiva (“reverse discrimination”) ou ação afirmativa é outra forma de discriminação legítima. Consiste em discriminar de forma vantajosa um grupo historicamente marginalizado, de forma a inseri-lo no “mainstrean”, evitando que o princípio da igualdade formal funcione como mecanismo perpetuador da desigualdade.Tem como função tratar de maneira preferencial aqueles grupos tidos como minorias em direito, tentando colocá-los em patamar similar aos outros. Esse tipo de discriminação, “de caráter distributivo e restaurador, destinado a corrigir uma situação de desigualdade historicamente comprovada, em geral se justifica pela sua natureza temporária e pelos objetivos sociais que se visa com ela atingir” (GOMES, 2001, p.22).

 

4.  AS AÇÕES AFIRMATIVAS

4.1 CONCEITO

A neutralidade estatal é uma marcante característica da sociedade liberal-capitalista, que se esquiva de interferir nas esferas econômica, espiritual, na intimidade das pessoas. No Direito não poderia ser diferente: há restrições quanto ao envolvimento estatal em questões que se referem aos seus diferentes grupos sociais e à interação entre eles. Em uma parte considerável de nações pluriétnicas e pluriconfessionais, a abstenção do Estado

se traduziu na crença de que a mera introdução nas respectivas Constituições de princípios e regras asseguradoras de uma igualdade formal perante a lei de todos os grupos étnicos componentes da Nação, seria suficiente para garantir a existência de sociedades harmônicas, onde seriam assegurados a todos. Independente de raça, credo, gênero ou origem nacional, efetiva igualdade de acesso ao que comumente se tem como conducente ao bem-estar individual e coletivo (GOMES, 2001, p.36).

A ideia de neutralidade estatal, de acordo com Joaquim B. Barbosa Gomes, se mostrou um fracasso na história, principalmente em sociedades que no passado possuíam grupos minoritários em situação de subjugação, sendo tal status legitimado por lei, tal como nos países de passado escravocrata. Esses mesmos países, que hoje possuem dispositivos constitucionais que visam cessar a situação de desigualdade ainda existente, não lograram êxito na busca pela efetivação do princípio da igualdade. O mesmo se pode dizer da não efetivação dos dispositivos constitucionais em relação à situação de inferioridade a que está submetida a mulher (GOMES, 2001).

A simples proclamação de normas jurídicas, sejam elas constitucionais ou normas de inferior hierarquia, é insuficiente para reverter um quadro de desigualdade social, em que uma parcela da população acredita poder exercer o papel de dominação em detrimento a outro grupo que aceita a condição de subordinação. É importante reconhecer também que a mudança dessa situação já idealizadae aceita no imaginário popular ocorrerá quando o Estado renunciar à posição de neutralidade em questões sociais, passando a assumir uma posição mais ativa (GOMES, 2001).

Os Estados Unidos da América, por meio de uma atuação mais ativa na sociedade, conceberam as ações afirmativas, que hoje já são adotadas em vários países do mundo, sendo adaptadas às peculiaridades de cada região (GOMES, 2001).

Essa expressão se consolidou na década de 60 nos Estados Unidos, na ExecutiveOrdern. 10.965, de março de 1963, de iniciativa do presidente democrata John F. Kennedy, passando, a partir de então, para a denominação generalizada de qualquer iniciativa tendente à promoção da integração, do desenvolvimento e do bem-estar das minorias (SOUZA CRUZ, 2005, p.143).

A ação afirmativa (affirmativeaction), que como dito foi utilizada na ExecutiveOrder n° 10925, tinha como objetivo, naquela época, criar um órgão que fiscalizava e reprimia as discriminações no âmbito do mercado de trabalho. Através daquele ato, ficou estabelecido queera proibida a discriminação do candidato a vaga de trabalho ou funcionário por fatores como cor, raça, credo ou nacionalidade. (MARINHO, 2005).A implantação dessas medidas de políticas públicas tinha como objetivo a ampliação do mercado de trabalho para os grupos marginalizados socialmente, fazendo com que tivessem iguais condições em relação a outros segmentos da sociedade na competição por vagas (CARREIRA, 2005).

Por volta do final da década de 60 e início da de 70, provavelmente pela observação de que os antigos procedimentos eram ineficazes, o instituto das ações afirmativas foi sendo modificado, passando a associar-se à ideia de igualdade de oportunidades por meio da utilização de cotas rígidas, que permitiam o acesso de grupos marginalizados a setores do mercado de trabalho e de instituições de ensino. As ações afirmativas eram vinculadas a metas estatísticas baseadas no ingresso de negros e mulheres nos referidos setores (GOMES, 2001).

Atualmente, para Joaquim B. Barbosa Gomes, as ações afirmativas atingiram outro patamar, sendo definidas como:

um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária, e visam a evitar que a discriminação que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo (GOMES, 2001, p. 40/41).

Flávia Piovesan acredita que para se implementar o direito à igualdade é necessário se combater a discriminação de forma emergencial. Contudo, a autora defende que esse simples combate é insuficiente, sendo necessário proibir a discriminação, bem como implementar políticas compensatórias com o intuito de acelerara igualdade enquanto processo. A simples proibição mediante legislação repressiva será insuficiente, sendo de fundamental importância estabelecer “estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e a inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais” (PIOVESAN, 2010, p. 198).

Há um binômio inclusão-exclusão pairando sob a igualdade e a discriminação. Se de um lado a igualdade implica inclusão social, de outro, a discriminação se refere a formas violentas de exclusão e intolerância à diferença e diversidade. Por isso, não necessariamente a proibição de práticas excludentes iráresultar na inclusão. Assim, Piovesan afirma ser importante a “adoção de medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos, com vista a promover a sua ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais”. Essas medidas são as chamadas “discriminações positivas”, também conhecidas como “ações afirmativas”, que, para a autora, se definem como

medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade substantiva por parte dos grupos socialmente vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, dentre outros grupos. Enquanto políticas compensatórias adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um passado de discriminatório, as ações afirmativas objetivam transformar a igualdade formal em material e substantiva, assegurando a diversidade e a pluralidade social (PIOVESAN, 2010, p. 198).

4.2. A CONSTITUCIONALIDADE DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL

Cármem Lúcia Antunes Rocha (1996) acredita que o preâmbulo da Constituição de 1988 possui uma declaração de um momento novo no Brasil: “a ideia de que não se tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi elaborado para que se chegue a tê-los”. O país possui uma série de problemas a ser resolvidos, como a desigualdade social, econômica, regional.

Por isso mesmo é que, mesmo não tendo força de norma, mas tendo a função de elucidar o rumo palmilhado pelo constituinte, o preâmbulo traduz a preocupação de se “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,... a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna pluralista e sem preconceitos...”.  (ROCHA, 1996, p. 91)

Assim,percebe-se que a instituição da Constituição da República não teve como único fim a proibição do que é tido como desigualdade, mas também teve a intenção de criar instituições democráticas que assegurem o direito à igualdade, princípio reconhecido como “valor supremo definidor da essência do sistema estabelecido (ROCHA, 1996, P.91).

A nova concepçãodo princípio da igualdade implicou a exigência da efetivação não somente da igualdade formal, mas também da material. A inércia do Estado, que se preocupou apenas em proibir condutas discriminatórias, não foi satisfatória, gerando ainda mais exclusões. Com efeito, o Estado teve que buscar nas ações afirmativas uma forma de resposta, objetivando o “resgate e a inclusão social das classes menos favorecidas”(CECCHIN, 2006, p. 328).

(...) a definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positivapromove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias (ROCHA, 1996, p.88).

No Brasil, de acordo com Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2005), as ações afirmativas estão previstas no art. 3° da CF/88, quando o texto constitucional coloca como objetivo fundamental a promoção do bem geral, “que deve passar necessariamente pela superação de preconceitos discriminatórios”. Outros dispositivos que possibilitam a aplicação das discriminações positivas, de acordo com o autor, são: a) “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (art. 5°, XLII, CF/88); b)”é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5°, VI, CF/88); c) “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (art. 5°, I, CF/88); d) os entes federativos devem “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (art. 23, II, CF/88). Além disso, é dever do país “apoiar e incentivar a difusão de diferentes manifestações culturais, pretendendo-se como uma sociedade democrática, plural e multirracial (SOUZA CRUZ, 2005, p.144)”.

De acordo com Luiz Alberto David de Araújo (ARAUJO, 2008 apud ONIMARU; AMARAL, 2011, p. 7), o constituinte cuidou de proteger grupos que mereciam um tratamento diferenciado, haja vista a histórica realidade de marginalização social e situação de hipossuficiência a que eram submetidos. Para tanto, “cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofrerem as mesmas espécies de restrições”.

Cármem Lúcia Antunes Rocha (2006), como Souza Cruz, ensina que o art. 3°, inciso IV, da Constituição da República, legitima as ações afirmativas. A autora, contudo, acrescenta que os incisos I e III também são fundamentais para a constitucionalidade do referido instituto:

Art. 3°. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – Construir uma sociedade livre, justa e igualitária;

III – Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988).

Rocha (2006)leciona que todos os verbos utilizados nos incisos supracitados, quais sejam construir, reduzir, promover, exprimem ação, “vale dizer, designam um comportamento ativo”. Por isso, pode-se concluir que os objetivos fundamentais da República representam obrigações transformadoras da política, das questões sociais, econômicas e regionais. Esses objetivos têm como fim a aplicação do princípio da igualdade, que é um valor supremo a fundamentar o Estado Democrático de Direito (2006, p.92).

Airton José Cecchin (2006, p. 332) afirma que os incisos supra são normas programáticas, com eficácia imediata, uma vez que visam “à implementação de planos e programas sociais, com a participação da sociedade em geral e do Estado, representado pelo Poder Executivo, Legislativo e Judiciário”. Marco Aurélio Mendes de Faria Mello também defende a aplicação imediata das ações afirmativas, já que o parágrafo 1° do art. 5° prescreve que “as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (2001, p.6).

Uma conclusão que se pode chegar ao analisar o art. 3° é que a República Federativa do Brasil não é justa, livre e solidária:

O art. 3° traz uma declaração, uma afirmação e uma determinação em seus dizeres. Declara-se, ali, implícita, mas claramente, que a República Federativa do Brasil não é livre, porque não se organiza segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para o exercício dos direitos, pelo que, não dispondo todos de condições para o exercício de sua liberdade, não pode ser justa.

Não é justa porque plena de desigualdades antijurídicas e deploráveis para abrigar o mínimo de condições dignas para todos.

E não é solidária porque fundada em preconceito de toda sorte (ROCHA, 2006, p.92).

Outra afirmação encontrada no art. 3° é a de que apesar de não se possuir uma autêntica República Democrática no país, o Direito possibilitou um modelo de Estado que tem como intuito concretizá-la. Por isso que o artigo citado tem como primeiro inciso a previsão de se construiu uma nova sociedade brasileira, segundo os paradigmas constitucionalmente garantidos (ROCHA, 2006).

Mais especificamente, o inciso IV pode ser visto como o que se mais relaciona com as ações afirmativas. O verbo promoverdá a ideia de ação, e o que se tem como objetivo é a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, assim, percebe-se uma intrínseca ligação entre o instituto e o inciso. “Significa que universaliza-se a igualdade e promove-se a igualação: somente com uma conduta ativa, positiva, afirmativa, é que se pode ter a transformação social buscada como objetivo fundamental da República”. Caso o legislador quisesse apenas manter a situação já existente, ele iria estabelecer que o objetivo fundamental fosse a de manter a igualdade sem preconceitos, o que não é o caso (ROCHA, 2006, p. 93).

Não foi o que pretendeu a Constituição de 1988. Por ela se buscou a mudança do conceito, do conteúdo, da essência e da aplicação do princípio da igualdade jurídica, com relevo dado à sua imprescindibilidade para a transformação da sociedade, a fim de se chegar a seu modelo livre, justa e solidária. Com a promoção de mudanças, com a adoção de condutas ativas, com a construção de novo figurino sócio-político é que se movimenta no sentido de se recuperar o que de equivocado antes se fez (ROCHA, 2006, p. 93).

Marco Aurélio Mendes de Faria Mello (2001, p.4/5) acredita que a partir do art. 3° da CF/88 não resta dúvida de que haja uma legitimação à ação afirmativa. Para o autor, a única forma de se corrigir as desigualdades é “colocar o peso da lei, com imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é descriminado, que é tratado de forma desigual”. Por meio dessa premissa, são objetivos fundamentais da República:

primeiro, construir – preste-se atenção a esse verbo – uma sociedade livre, justa e solidária; segundo, garantir o desenvolvimento nacional – novamente temos aqui o verbo a conduzir, não a uma atitude simplesmente estática, mas a uma posição ativa; erradicar a pobreza e a marginalização, e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e, por último, no que nos interessa, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Pode-se afirmar, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam, em si, mudança de óptica, ao denotar “ação”. Não basta não descriminar. É preciso viabilizar – e encontramos, na Carta da República, base para fazê-lo – as mesmas oportunidades (MELLO, 2001, p. 4/5).

4.3. ASAÇÕES AFIRMATIVAS NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS

O Direito Internacional dos Direitos Humanos começou a se desenvolver a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), mediante a criação de tratados com o intuito de proteger os direitos fundamentais. Essa primeira fase se pautou no princípio da igualdade formal, e tinha como tônica a proteção geral, expressada pelo temor pela diferença, justificado pelo terror do extermínio nazista.Basta se ter em mente que tanto a Declaração de 1948 quanto a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio (1948) puniam a intolerância baseada na destruição do outro em razão da raça, etnia, religião e nacionalidade (PIOVESAN, 2005).

Tratar o indivíduo de forma genérica, abstrata e geral tornou-se insuficiente, sendo “necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade”. Assim, passou-se a perceber que certos sujeitos de direitos e violações legais exigem uma forma diferenciada e específica de resposta (PIOVESAN, 2005, p. 46).

Vale dizer, na esfera internacional, se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença, percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isso significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos, mas, ao revés, para sua promoção (PIOVESAN, 2005, p.46).

A população negra, as mulheres, as crianças e demais grupos devem ser vistos em sua particularidade, sendo analisados tendo em vista a condição social em que se encontram. Além do princípio da igualdade, é importante garantir também outro direito fundamental, o direito à diferença, que assegura a diversidade, oferecendo um tratamento diferenciado para os diversos grupos sociais (PIOVESAN, 2005).

Gilmar Ferreira Mendes (2010, p.5) leciona que “pensar a igualdade segundo o valor da fraternidade significa ter em mente as diferenças e as particularidades humanas em todos os aspectos”. A tolerância, segundo o princípio da igualdade, exige a consideração do outro respeitando as suas peculiaridade e idiossincrasias. A igualdade só pode ser igualdade numa sociedade pluralista quando há reconhecimento do direito à diferença e, em consequência, aceitação das minorias.  

Antônio Augusto Cançado Trindade acredita que a comunidade internacional tem passado por notáveis transformações, fazendo com que a indiferença histórica em relação aos direitos culturais seja superada (TRINDADE, 2003).

(...) o recrudescimento das diferenças, em um mundo cada vez mais transparente, parece haver realçado em nossos dias a importância da questão da proteção das minorias (culturais, étnicas, lingüísticas, religiosas, dentre outras) e, sua condição como resultado de distintas formas, inaceitáveis, de dominação e exclusão (cultural, política, econômica, social e até mesmo legal). É inegável que o fato de pertencer a uma minoria - e.g., étnica ou religiosa – às vezes, e não raro, se torna uma fonte de insegurança pessoal, - como ilustra o crescimento e agravamento da xenofobia em diferentes partes do mundo (TRINDADE, 2003, p.313).

Marco Aurélio MarsiglioTrevisotambém crê que um dos temas de grande relevância na contemporaneidade é o princípio da igualdade, sendo de fundamental importância assegurar a igualdade entre homens e mulheres, em relação às raças, estrangeiros e classes sociais. Desde a Carta da ONU de 1948, a igualdade de direito entre todos os homens ficou garantida, bem como na Constituição da República (TREVISO, 2009).

Além de prescrever o princípio da igualdade, o texto constitucional adotou um princípio de direito internacional, qual seja a proibição da discriminação. As enumerações previstas no texto são apenas exemplificativas, deixando clara a sua aversãoem relação a qualquer tipo de discriminação. Há a previsão do princípio da proibição da discriminação considerando o seu aspecto negativo, bem como o seu aspecto positivo. Logo, além de se impossibilitar atos discriminatórios ofensivos, é mister garantir a promoção de atitudes discriminatórias positivas, buscando-se atingir a igualdade real. Além da previsão do princípio da igualdade real na Constituição, diversos tratados internacionais trataram do assunto (LIMA, 2008 apud TREVISO, 2009).

Em 1965, as Nações Unidas aprovaram a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que foi ratificada por 167 estados, incluindo o Brasil, que é signatário desde 1968. Já no preâmbulo, a Convenção condena a discriminação racial e as doutrinas de superioridade baseadas em diferenças raciais, tratando como urgência a adoção de medidas com a finalidade de eliminar a discriminação racial em suas diversas formas de manifestações e o combate a doutrinas e práticas racistas (PIOVESAN, 2005). “Ao ratificar esta Convenção, os Estado assumem a obrigação internacional de, progressivamente, eliminar a discriminação racial, assegurando a efetiva igualdade” (PIOVESAN, 2010, p. 197).

A Convenção supramencionada, por meio de uma “vertente promocional, pela qual é dever dos Estados promover a igualdade”(PIOVESAN, 2010, p. 198), prevê, em seu art. 1°, parágrafo 4°, a adoção de discriminações positivas (ações afirmativas):

Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos (ONU, 1968).

Outra Convenção da ONU foi inspirada na vertente promocional eprevê a adoção das ações afirmativas, qual seja a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, criada em 1979. O documento possui a dupla função: eliminar a discriminação e assegurar a igualdade (PIOVESAN, 2010).

Contudo, apesar de ser um dos tratados que mais tiveram adesão dentre os tratados de direitos humanos (perdendo apenas para a Convenção sobre os Direitos da Criança), é o que recebeu maior número de ressalvas formuladas pelos Estados. Grande parte dessas reservas feitas foi em relação à cláusula que versa sobre a igualdade entre homens e mulheres na família, sob o argumento de que tal dispositivo teria como fim praticar “imperialismo cultural e intolerância religiosa”. Os países que assim argumentaram tinham como base a ordem cultural, religiosa e até mesmo legal (PIOVESAN, 2010, p. 202/203).

(...) Isso reforça o quanto a implementação dos direitos humanos das mulheres está condicionada à dicotomia entre espaços públicos e privado, que, em muitas sociedades, confina a mulher em espaço exclusivamente doméstico da casa e da família. Vale dizer, ainda que se constate, crescentemente, a democratização do espaço público, com a participação ativa de mulheres nas mais diversas arenas sociais, resta o desafio de democratização do espaço privado – cabendo ponderar que tal democratização é fundamental para a própria democratização do espaço público (PIOVESAN, 2010, p. 203).

Em relação às pessoas portadoras de deficiência física, em 13 de dezembro de 2006, a ONU adotou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Tal tratado era tido como uma forma de resposta dos países signatários à histórica discriminação, exclusão e desumanização dessa minoria. A Convenção veio como importante instrumento de inclusão, que tinha como objetivomudar a forma de se compreender a deficiência, para, assim, reconhecer a essas pessoas o direito de alcançar plenamente o seu potencial (PIOVESAN, 2010).

A conceituação de deficiência prevista no texto é inovadora, posto que compreende “toda e qualquer restrição física, mental, intelectual ou sensorial, causada ou agravadapor diversas barreiras, que limita a plena e efetiva participação na sociedade”. A inovação está em se reconhecer a deficiência não como algo apenas intrínseco ao sujeito, mas “um resultado da interação entre indivíduos e seu meio ambiente”, ou melhor, se admite que os ambientes econômico e social possam ser nocivos aos deficientes (PIOVESAN, 2010, p.224/225).

A convenção propõe o “reasonableaccommodation”, impondo ao Estado a adoção de “ajustes, adaptações, ou modificações razoáveis e apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o exercício dos direitos humanos em igualdade de condições com as demais” (PIOVESAN, 2010, p.224/225).

Na Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, ocorrida entre os dias 31 de Agosto e 7 de Setembro de 2001 em Durban, foi apresentado um documento oficial brasileiro que continha a previsão de ações afirmativas em favor da população afrodescendente nas áreas da educação e trabalho:

O documento propôs a adoção de ações afirmativas para garantir o maior acesso de afrodescendentes às universidades públicas, bem como a utilização, em licitações públicas, de um critério de desempate que considere a presença de afrodescendentes, homossexuais e mulheres no quadro funcional das empresas concorrentes. A Conferência de Durban, em suas recomendações, pontualmente nos seus parágrafos 107 e 108, endossa a importância dos Estados em adotarem ações afirmativas, enquanto medidas espaciais e compensatórias voltadas a aliviar a carga de um passado discriminatório daqueles que foram vítimas da discriminação racial, da xenofobia e de outras formas de intolerância correlatas (PIOVESAN, 2008, p. 892).

A conferência de Durban, no que toca aos trabalhos elaborados para o evento e à agenda nacional pós-Durban, foi de fundamental importância para que se evoluíssem os debates acerca das ações afirmativas. Foi por meio desse processo que houve avanços nos estudos sobre as cotas para afrodescendentes nas universidades públicas, assim como na elaboração do Estatuto da Igualdade Racial (PIOVESAN, 2008).

Os direitos humanos são uma resposta a um sistema opressor que restringe grande parte dos bens a um pequeno grupo de pessoas: aquelas que se beneficiam de um sistema capitalista opressor. Assim, é necessário conceder às minorias marginalizadas meios concretos para que se permita o acesso a bens necessários para uma vida digna. É razoável se adotar políticas públicas que propiciem uma economia de mercado aberta a todos. Assim, os direitos humanos devem, de forma correta e concreta, afetar o sistema neoliberal de forma que se possibilite a criação de instrumentos de progresso e igualdade com o fim de se eliminar as desigualdades. Nesse contexto, nascem as ações afirmativas - que aparecem como instrumento de inclusão dos grupos menos favorecidos, “concedendo-lhes a possibilidade de adquirirem as condições mínimas necessárias para o acesso aos bens materiais e imateriais para uma vida digna” (TREVISO, 2009).

4.4. AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

A democracia, em última análise, significa igualdade no exercício de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Não há que se falar em democracia sem se falar na busca pela efetivação da igualdade de condições dos direitos humanos elementares (PIOVESAN, 2005). Com efeito, A adoção das ações afirmativas é justificada para que se atinjam fins que não poderiam ser atingidos por uma política meramente punitiva das discriminações ilícitas. Não basta proibir, é importante promover por meio de ações que consagrem os princípios da diversidade e do pluralismo, de tal maneira que ocorra uma mudança na mentalidade e no comportamento social, que muitas vezes se move por tradições, costumes e pela história (GOMES, 2001).

Além de se efetivar o princípio da igualdade, é salutar a transformação da realidade nas esferas culturais, pedagógicas e psicológicas, para que se possa modificar o quadro no que tange à irreal ideia de supremacia/subordinação de uma maioria em relação a uma minoria. Para que se possa atingir a esse fim, necessária é a “implantaçãode uma certa diversidade e de uma maior representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada” (GOMES, 2001, p. 47).

Por outro lado, a implantação da diversidade acarreta inegáveis benefícios para o próprio país, que, como se sabe, vê a cada dia acentuar-se o seu caráter multicultural. Assim, o erro estratégico consiste em não oferecer oportunidade efetivas de educação e de emprego a certos segmentos da população pode revelar-se num futuro bem próximo altamente prejudicial à competitividade e à produtividade econômica do país. Portanto, agir afirmativamente significa também zelar pela pujança econômica da nação (GOMES, p.48, 2001).

Vale dizer também que a aplicação das ações afirmativas possibilita a criação de exemplos para as futuras gerações no que se refere à noção de mobilidade social. Um integrante de uma minoria ao ver o outro ocupando posições de prestígio e poder poderia se sentir motivado em suas metas profissionais e pessoais. Pode se considerar, pois, as ações afirmativas como um incentivo à educação e “ao aprimoramento de jovens integrantes de grupos minoritários” (GOMES, p. 48, 2001).

Dayse Coelho de Almeida (2005) ensina que “a coerência com os fatores sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos é uma premissa inafastável para a formulação das políticas públicas”, sendo as discriminações positivas a representação do amadurecimento de um povo, que, por meio de seus representantes, visa atender suas necessidades, principalmente corrigindo injustas distorções geradas pela nossa própria história.

Podemos dizer, então, que, se no passado a igualdade meramente formal foi instrumento ideológico que serviu para ocultar a diferença existente entre os povos, na atualidade, a igualdade material ou substancial deve ser concretizada através da adoção de políticas que passam da mera enunciação do princípio da igualdade perante as leis para o campo da efetivação da igualdade entre todos. E, neste particular, as ações afirmativas transformam-se num importante instrumento em prol da caracterização dos princípios ora explicitados (TREVISO, 2009).

O Brasil, que é o segundo país do mundo com o maior contingente de população afrodescendente, possuindo 45% de sua população composta por negros, perdendo apenas para a Nigéria, foi o último país ocidental a abolir a escravidão. Daí se percebe a necessidade urgente de se adotar medidas eficazes que tenham como objetivo “romper com o legado de exclusão étnico-racial, que compromete não só a plena vigência dos direitos humanos, mas também a própria democracia no país – sob pena de termos democracia sem cidadania” (PIOVESAN, 2005).

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) produziu um relatório que tinha como objetivo avaliar a diferença entre brancos e negros no Brasil:

Os brancos obtiveram, em 1999, um IDH de 0,805 que colocaria esta comunidade na 46ª posição de todos os países do mundo, comparável a alguns países do Leste europeu, como a Croácia. Já os negros obtiveram índice de 0,691 comparável ao de países pobres como Argélia e o Vietnã (SOUZA CRUZ, 2005, p.106).

A pessoa dotada de deficiência também necessita de uma política de inclusão. É importante uma atenção especial no “campo da locomoção, coordenação de movimentos, compreensão da língua falada ou escrita ou no relacionamento com outras pessoas”.Para esses cidadãos, a prática de tarefas simples se torna árdua, tendo em vista as deficiências existentes. Para se ter uma idéia, apenas 200.000 portadores de deficiência possuem carteira assinada, tendo em vista que existem 9 milhões com idade economicamente ativa. Logo, é importante que se incorpore essas pessoas no campo da cidadania, posto que somos parte integrante de uma sociedade plural e inclusiva. “Dessa forma, em vez de realçarmos a deficiência do cego, devemos valorizar a sua audição, sua voz e os demais sentidos que certamente serão mais apurados do que àquelas pessoas consideradas normais” (SOUZA CRUZ, 2005, p.95/97).

Em relação ao homoafetivo, se engana quem defende que a questão da discriminação a esse grupo se restringe ao campo moral. O Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2002, concluiu que o Brasil é o país onde ocorrem mais assassinatos de homoafetivo. Os estudos mostram que de 1980 até 2001 morreram 2.092 pessoas, tendo 104 mortes violentas como média por ano, e apenas 25% dos casos são identificados pela polícia e levados a julgamento (SOUZA CRUZ, 2005, p. 77/76).

Somente podemos baixar esses níveis implantando cursos de educação sexual em todos os níveis escolares, aprovando leis que punam exemplarmente a discriminação e a violência contra homossexuais e mobilizando a comunidade homossexual a defender seus direitos humanos (MOTT, 2002 apud SOUZA CRUZ, 2005, p. 78).

A questão sexual sempre foi um fator de discriminação. A mulher, no decorrer da história, sempre teve o papel secundário, sendo inferiorizada na ordem jurídica. As conquistas adquiridas na vida social e jurídica são bastante recentes. Com muita dificuldade, a mulher está conseguindo conquistar uma situação paritária em relação ao homem. A Constituição da República “deu largo passo na superação do tratamento desigual fundado no sexo, ao equiparar os direitos e obrigações de homens e mulheres” (SILVA,2006, p. 223/224). Apesar disso, a discriminação por gênero ainda é intensa nos tempos atuais:

Nenhuma estatística atual é capaz de refletir a realidade quantitativa e qualitativa da violência doméstica que sofre a mulher. Espancamentos, surras, estupros continuados não são revelados a público por razões ligadas a aspectos sociais e psicológicos das vítimas. Assim, a violência doméstica refletida em números pelas delegacias de mulheres, de fato, expressa um valor pouco significativo, valendo, apenas, como amostragem de um quadro triste de brutalidade ainda presente no Brasil atual (SOUZA CRUZ, 2005, p. 40).

No Brasil, um país que se diz republicano e democrático,

o cidadão ainda é uma elite, pela multiplicidade de preconceitos que subsistem, mesmo sob o manto fácil do silêncio branco com os negros, da palavra gentil com as mulheres, da esmola superior com os pobres, da frase lida para os analfabetos... Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que não lhe rebuscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história feita pelas mãos calejadas dos discriminados (ROCHA, 1996, p. 99).

Não há como negar a necessidade de se criar políticas públicas e privadas em favor das classes sociais marginalizadas. É importante dar um tratamento jurídico diferenciado às ações afirmativas no que tange a sua utilização como instrumento de efetivação e resgate da dignidade da pessoa humana. O princípio da igualdade material, em sua acepção mais moderna, “não admite mais normas e princípios de caráter meramente proibitivo”. A própria utilização das ações afirmativas também se justifica pela inércia do poder público e entidades privadas em contribuir para o aperfeiçoamento moral, ético e social dos cidadãos (CECCHIN, 2006, p.351).

Infelizmente, percebe-se que no Brasil a adoção de meditas baseadas numa política prioritariamente repressiva/proibitiva não foi suficiente para se atenuar as diferenças sociais entre as diversas classes. Além disso, as medidas inclusivas praticadas por meio de ações afirmativas foram bastante tímidas, não trazendo um resultado satisfatório (SOUZA CRUZ, 2005).

Assim, é salutar que o direito garanta e legitime a construção de uma sociedade justa e igualitária. Não se pode admitir a inércia estatal perante o tratamento desigual em relaçãoaos grupos marginalizados social e historicamente (ONIMARU; AMARAL, 2011).

Ao garantir os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, a Constituição de 1988 possibilitou a adoção de ações afirmativas, com o fim de “atenuar os efeitos da discriminação, as desigualdades sociais e oferecer oportunidades iguais a todos os indivíduos”. Portanto, cabe à sociedade possibilitar que a justiça social seja concretizada para que, enfim, “a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, sem qualquer tipo de preconceito” seja consolidada (ONIMARU; AMARAL, 2011).

5. CONCLUSÃO

Numa democracia em processo de consolidação como a do Brasil, é inadmissível a existência de desigualdades sociais tão acentuadas. Como visto, a situação de marginalização a que se encontram os negros, mulheres, deficientes físicos e homoafetivos não se baseiam em retórica, mas em dados alarmantes.

Um país que tem como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária não pode se esquivar de intervir diretamente nesses problemas sociais, deixando a intitulada “mão invisível” resolver sozinha tais deformações. A visão liberal de se abster em certos problemas sociais, priorizando os direitos e garantias negativas, em detrimento a uma maior intervenção estatal, se mostrou frágil na efetivação da justiça social. Há que se promover, de forma positiva, a busca pelo bem-estar social, pela igualdade de fato.

Com efeito, as ações afirmativas são a forma de concretização da igualdade jurídica em seu aspecto material. O que se visa através dessas ações é a promoção de políticas públicas com o intuito de discriminar de forma positiva o cidadão que é discriminado negativamente pela sociedade. Objetiva-se colocar em um patamar de dignidade aquele homem que, de fato, não tem a oportunidade de participar da democracia.

Além de serem constitucionais, as ações afirmativas são legitimadas por tratados e convenções internacionais. Desde a década de 60, como visto, já existiam normas internacionais que garantiam as discriminações lícitas em defesa das minorias. Assim, não é razoável que um país que teve a sua construção econômica, política e cultural baseado na diversidade de povos, não reconheça esse legado.

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